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A Ilegalidade dos juros praticados nos contratos agrários
Incidência de juros ilegais no mútuo rural
ALYSSON THOMASI
1.1. INTRODUÇÃO
Os juros, na concepção clássica do direito, eram considerados como «a renda do
capital». Hoje esta perspectiva se transformou e os juros são considerados como
sendo «o preço pago pelo uso do capital». Ou seja, os juros serão os frutos
civis do capital mutuado, e serão pagos pelo mutuário remunerando o mutuante
por ficar privado de seu capital e pelo risco em que incorre de não mais o
receber.
Mas o mutuante, após a entrada em vigor da denominada 'Lei da Usura', Decreto
22.626, de 17 de abril de 1933, não pode mais estipular a seu alvitre as taxas
de juros que incidiriam sobre o contrato, pois seu art. 1º limitou as mesmas em
no máximo 1% (um por cento) ao mês: «É vedado, e será punido nos termos desta
lei, estipular em quaisquer contratos taxas de juros superiores ao dobro da
taxa legal (Código Civil, art. nº 1.062).»
A partir deste momento, em nenhum contrato de mútuo, inclusive nos bancários,
as taxas de juros puderam ser superiores a 12 % (dose por cento) ao ano, sendo
vedado receber a pretexto de comissão, taxas maiores do que esta, sendo nula a
estipulação em contrário.
Este decreto também proibiu em seu art. 4º a contagem de juros sobre juros: «É
proibido contar juros dos juros; esta proibição não compreende a acumulação de
juros vencidos aos saldos líquidos em conta-corrente de ano a ano.»,
assegurando ao devedor a repetição do que houvesse pagado a mais ao credor em
seu art. 11: «O contrato celebrado com infração desta lei é nulo de pleno
direito, ficando assegurado ao devedor a repetição do que houver pago a mais.»
Até o ano de 1964, foi a Lei da Usura que regulamentou todos os contratos, sem
distinção entre eles, mas com a criação do Conselho Monetário Nacional, feita
pela Lei 4.595, de 31 de dezembro de 1964, as coisas mudaram, pois foi lhe
atribuído, através de seu art. 4º, incs. VI e IX, a competência para
«disciplinar o crédito em todas as suas modalidades e as operações creditícias
em todas as suas formas»«limitando, sempre que necessário, as taxas de juros,
descontos, comissões e qualquer outra forma de remuneração de operações e
serviços bancários ou financeiros, inclusive os prestados pelo Banco Central do
Brasil, assegurando taxas favorecidas aos financiamentos que se destinem a
promover: recuperação e fertilização do solo; reflorestamento; combate a
epizootias e pragas, nas atividades rurais; eletrificação rural; mecanização;
irrigação; investimentos indispensáveis às atividades agropecuárias.»
Após a criação do Conselho Monetário Nacional ocorreu lamentavelmente um
retrocesso em nosso direito, haja visto que o judiciário, infelizmente aqui
representado pelo Supremo Tribunal Federal, determinou em sua Súmula 595 que
«as disposições do Decreto nº 22.626/33 não se aplicam às taxas de juros e aos
outros encargos nas operações realizadas por instituições públicas ou privadas
que integram o sistema financeiro nacional.» entendendo que a Lei 4.595 teria
retirado às instituições financeiras públicas e privadas do âmbito limitativo
da Lei da Usura.
Retrocesso este que, data vênia, não procede, e é o que demonstraremos a
seguir.
1.2. VIGÊNCIA DO DECRETO 22.626/63
A Lei de Introdução ao Código Civil determinou em seu art. 2º que «a lei não se
destinando à vigência temporária, e terá vigor até que outra a modifique ou
revogue» e prosseguiu definindo no §1º as hipóteses de revogação: «A lei
posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela
incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que trata a lei
anterior.» (Grifo nosso).
Em apenas três hipóteses a lei nova revoga a lei anterior, e em nenhuma delas
encontramos amparo legal para justificar a decisão do Supremo Tribunal Federal.
REVOGAÇÃO EXPRESSA:
Primeiramente porque não houve uma declaração expressa, haja visto que a Lei
4.595 em nenhum de seus artigos determinou expressamente que as instituições
financeiras estariam fora do âmbito limitativo da lei da usura.
INCOMPATIBILIDADE ENTRE AS LEIS:
Em segundo lugar, não houve uma incompatibilidade da lei nova em relação a
anterior, como tentou demonstrar o Supremo Tribunal Federal na fundamentação de
sua decisão, e três são os pontos a serem analisados.
a) Art. 3º, inc. VI,
da Lei 4.595 - Este artigo estabelece que: «A política do Conselho Monetário
Nacional objetivará: ... VI - zelar pela liquidez e solvência das
instituições financeiras.» (Grifo nosso).
b) Art. 4º, inc. XXII,
da Lei 4.595 - Este artigo define a competência do Conselho Monetário Nacional
para «Estatuir normas para as operações das instituições financeiras públicas,
para preservar sua solidez e adequar seu funcionamento aos objetivos desta
Lei». (Grifo nosso).
Estes artigos, segundo a colenda Corte, seriam incompatíveis com as disposições
da Lei da Usura, o que para nós não tem a menor razão de ser, haja visto que
existem muitos países que possuem taxas de juros bem abaixo de 12% (dose por
cento) ao ano, como é o caso dos Estados Unidos da América e da maioria dos
países integrantes da União Européia, e mesmo assim as instituições financeiras
destes países são fortes e respeitadas no mundo todo.
Na realidade, a elevada taxa de juros brasileira existe por razões bem diversas
daquela apresentada pelo Supremo Tribunal Federal, como demonstra JOSÉ REINALDO
COSER: «Nossa dívida interna é tão assustadora quanto a nossa dívida externa e,
ao passo em que transcorre o tempo, por fatores óbvios, ela vem crescendo cada
vez mais. As contas do governo com esses credores vencem diariamente e em
valores expressivos. Assim, com uma política de juros altos se oferece no
mercado financeiro diversos tipos de investimentos, muito mais atrativos do que
os investimentos populares - p. ex., caderneta de poupança -, captados pelas
instituições financeiras e repassados ao governo federal, através do Banco
Central do Brasil - BACEN, que assim 'empurra com a barriga suas contas', ou
seja, paga e 'rola' a dívida, por curto prazo, através dos recursos recolhidos,
diariamente.» (JUROS, 1ª ed., Leme, LED - Editora de Direito Ltda., 2000, p. 54
e 55.).
SÉRGIO BORCHARDT, que possui o entendimento categórico no sentido de que não
existe tal incompatibilidade, afirma que: «... Não se percebe onde esse
dispositivo legal contém incompatibilidade com a limitação dos juros.» e ainda
define a solução do problema de solvabilidade, que segundo ele se resolveria da
seguinte maneira: «Basta regular a captação, para que se preserve a
solvabilidade. Ou melhor, basta que se fixe o limite para que automaticamente a
captação se auto-regule.» (JUROS, ob. cit., p. 75 e 76.).
c) Art. 4º, inc. IX,
da Lei 4.595 - Este artigo definiu a competência do Conselho Monetário Nacional
para: «Limitar, sempre que necessário, as taxas de juros, descontos, comissões
e qualquer outra forma de remuneração de operações e serviços bancários ou
financeiros, ..., assegurando taxas favorecidas aos financiamentos que se
destinem a promover: recuperação e fertilização do solo; reflorestamento;
combate a epizootias e pragas, nas atividades rurais; eletrificação rural;
mecanização; irrigação; investimentos indispensáveis às atividades
agropecuárias.» (Grifo nosso).
Não conseguimos vislumbrar aqui também qualquer incompatibilidade entre as duas
normas jurídicas, pois a competência atribuída ao Conselho Monetário Nacional
foi a de limitar os juros e não para criar taxas de juros. Se a Lei determinou
o teto máximo em 12% (doze por cento), caberá ao Conselho, sempre que
necessário, limitar as taxas em índices inferiores a este estabelecido pela Lei
da Usura, assegurando sempre taxas favorecidas a atividade rural.
SERGIO BORCHARDT, neste sentido, afirma que: «... Se a legislação já contém um
teto e a lei nova não revoga o teto, o poder limitador há de ser exercido para
baixo. Mormente quando, pela leitura do dispositivo, vê-se que o Legislador
quis privilegiar determinadas atividades com taxas de juros mais favorecidas.
Estranha maneira essa (vislumbrada pelo colendo STF, em que se privilegiam
atividades jogando juros para cima do limite a que até então se atrelava toda a
sociedade).» (JUROS, ob. cit., p. 76.)
Também o Decreto 58.380/66 que regulamentou o crédito rural no país determinou
em seu art. 3º, inc. III, que o crédito rural terá como um de seus objetivos
«possibilitar o fortalecimento econômico dos produtores rurais, notadamente
pequenos e médios.» determinando ainda em seu art. 18, §2º que «as taxas das
operações, sob qualquer modalidade de crédito rural, serão inferiores em pelo
menos 1/4 (um quarto) às taxas máximas admitidas pelo Conselho Monetário
Nacional para as operações bancárias de crédito mercantil.» (Grifo nosso).
LEI NOVA REGULAR INTEIRAMENTE A MATÉRIA TRATADA PELA LEI ANTERIOR:
Esta hipótese aqui também não se configura, haja visto que a Lei 4.595 não
disciplinou os juros em sua totalidade, pelo contrário, definindo apenas alguma
das regras relativas aos Sistema Financeiro Nacional, não regulando, nem
revogando qualquer questão sobre os juros que dizem respeito a toda a
sociedade.
E o art. 2º da Lei de Introdução ao Código Civil, em seu §2º estabelece ainda a
necessidade da hermenêutica harmonizadora entre a lei nova e a anterior: «A lei
nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes,
não revoga nem modifica a lei anterior.» (Grifo nosso).
Enfim, em face do demonstrado, resta comprovado a compatibilidade das normas, e
demonstrado que em nosso ordenamento jurídico, após a criação da Lei da Usura,
em nenhum contrato, seja ele agrário ou não, os juros nunca poderiam ter sido
superiores a 12% (doze por cento) ao ano.
1.3. OS JUROS E A CONSTITUIÇÃO DE 1988
Com o advento da Constituição Federal de 1988, foi introduzido em nosso
ordenamento uma nova sistemática jurídica. Primeiramente porque a Constituição
determinou, em seu art. 22, inc. VI e VII, a competência exclusiva da União
para legislar sobre o «sistema monetário» e «política de crédito.»
Também determinou em seu art. 48, inc. XIII, que caberia ao Congresso Nacional
dispor sobre todas as matérias de competência da União, especialmente sobre:
«matéria financeira, cambial e monetária, instituições financeiras e suas
operações.» Para finalizar, o art. 25 dos Atos das Disposições Constitucionais
Transitórias determinou a revogação, a partir de 180 (cento e oitenta) dias da
promulgação da Constituição, de todos os dispositivos legais que atribuam ou
deleguem a órgão do Poder Executivo competência assinalada na Constituição ao
Congresso Nacional, especialmente no que tange a ação normativa.
Ou seja, a partir de 04 de abril de 1.999 todos os dispositivos legais que
atribuíssem ou delegassem ao Poder Executivo competência assinalada ao
Congresso Nacional estariam revogados, como seria o caso do inc. IX do art. 4º
da Lei 4.595.
Só que o mesmo dispositivo que determinou a revogação de todos os dispositivos
legais que atribuam ou deleguem a órgão do Poder Executivo competência
assinalada na Constituição ao Congresso Nacional, a partir de 180 dias da
promulgação da Constituição, também determinou que este prazo poderia ser
prorrogado por lei.
Como não poderia ser diferente no Brasil, inúmeras Leis foram editadas para
'ressuscitar' os antigos poderes do Executivo, que foram extintos pela
Constituição Federal. É o caso do Conselho Monetário Nacional, que é órgão do
Poder Executivo e continua limitando até hoje as taxas de juros que incidem no
País, contrariando expressamente aos arts. 22 e 48 da Constituição Federal, que
determinam esta competência ao Congresso Nacional.
Para nós, essas sucessivas normatizações são ilegais e não podemos pactuar com
elas, haja visto que objetivam fraudar as intenções do poder constituinte,
retardando a criação de uma nova lei que regulamente totalmente a matéria, como
ordena a Constituição. E mais, o texto constitucional de 88 não só reservou ao
Congresso Nacional a função de legislar sobre a matéria de remuneração de capital,
como repeliu a delegação de poderes normativos, estando assim extinta a
competência do Conselho Monetário Nacional para legislar a sobre juros.
Este foi o entendimento da Egrégia 4ª Câmara Cível do Tribunal de Alçada do Rio
Grande do Sul, que assim decidiu em 11 de abril de 1996: «Com o advento da CF
de 1988, por força do art. 25 do ADCT, revogadas ficaram todas as instruções
normativas e, de resto, o próprio poder normativo, em matéria de competência
legislativa do Congresso Nacional. Por conseguinte, o poder normativo a
respeito de juros bancários, que a Lei nº 4.595/64 concedia ao CMN restou
revogado. A única lei federal limitadora de juros é a Lei de Usura, que hoje
regra os contratos de toda a sociedade, inclusive os bancários'».
As taxas de juros fixadas pelo Conselho Monetário Nacional também afrontam
outro normativo da Constituição Federal, embasando ainda mais nosso
entendimento.
O constituinte de 88, na mesma linha filosófica das Constituições de 1.934,
1.937 e 1.946, propugnou pela repulsa à prática usurária, determinando em seu
art. 192, §3º que: «As taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e
quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de
crédito, não poderão ser superiores a 12 % ao ano; a cobrança acima deste
limite será conceituada como crime de usura, punido em todas as suas
modalidades, nos termos que a lei determinar.»
Sabidamente quando uma norma traz em seu contexto elementos capazes de
determinar, com clareza seu objetivo final, ela será de eficácia plena, pois
não depende de outra norma para regulamentar a sua aplicação. Neste ponto o
constituinte foi claro, objetivo e taxativo, e com a devida vênia aos que
possuem outro entendimento, entendemos por isso mesmo que a norma será
auto-executável.
É fato conhecido e notório que o Supremo Tribunal Federal já se pronunciou no
sentido de que a norma contida no art. 192, §3º da Constituição Federal é
simplesmente programática, estando a merecer ainda regulamentação
infraconstitucional para que se possibilite sua aplicabilidade.
Como ainda não estamos sujeitos ao efeito vinculante das decisões dos Tribunais
Superiores, temos a plena liberdade de atacar estas decisões, que para nós e
para muitos juristas de renome, não é a mais correta.
As normas constitucionais, mormente as de índole proibitiva, são dotadas de
eficácia plena, ou seja, têm auto-aplicabilidade. Segundo a doutrina
contemporânea, a grande maioria das disposições constitucionais possui eficácia
imediata, inclusive aquelas que até bem pouco tempo atrás eram consideradas
apenas como princípios programáticos. Com isto, torna-se mais efetiva a outorga
de direitos e garantias sociais inscritas na Constituição.
E é por isso que afirmamos, com veemência, que nada justifica a existência de
uma norma proibitória, como a do art. 192, §3º, que limita a incidência de
juros acima de 12% ao ano, não tenha incidência imediata, aguardando
indefinidamente uma regulamentação que, na prática, obrigatoriamente deverá
vergar-se ao percentual máximo de 12%.
Pelos fundamentos deduzidos, firmamos aqui nossa posição no sentido da
auto-aplicação da norma contida no art. 192, §3º da Constituição Federal, e
reafirmamos que o único normativo jurídico que estabelece regras sobre os
juros, recepcionado pela Constituição, foi a Lei da Usura, estando vigente nos
dias atuais em nosso País.
ALYSSON THOMASI
FORMADO PELA PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ
MEMBRO DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE DIREITO AGRÁRIO
ADVOGADO MILITANTE NA ÁREA DE CRÉDITO RURAL NA CIDADE DE PRIMAVERA DO LESTE,
MATO GROSSO.
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