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A incompatibilidade entre a função de juiz e a de testemunha
De acordo com o tradicional aforismo, "secundum
allegata et probata partium debet judex judicare, non secundum sua
conscientiam", o juiz não pode se utilizar, em juízo, de sua
informação sobre os fatos da causa, deve ele decidir segundo o que foi alegado
e provado pelas partes. Tal máxima contém duas regras determinantes: "secundum
allegata decidere debet" e "secundum probata decidere
debet".
Enquanto
a primeira regra encontra sua justificação no principio dispositivo, a segunda
se encontra no âmbito restrito do direito probatório, mesmo em um sistema
processual, como é o penal, que prescinde do princípio dispositivo.
Dentre
as várias razões que são adotadas para justificar a proibição da utilização no
processo da ciência privada do juiz, Calamandrei [01] e Stein
[02] explicam que a mais persuasiva é aquela deduzida da
incompatibilidade psicológica entre a função de juiz e a de testemunha, eis
que, dados os defeitos congênitos, seu depoimento não pode ser utilizado no
processo, se não quando esteja submetido, por parte de um crítico sereno e
desapaixonado elaborando um trabalho paciente, que podemos chamar de
"purificação", voltado a liberá-lo o quanto possível de tudo aquilo
que representa a objetiva autenticidade do fato, em troca de uma superestrutura
secundária e sucessiva, derivada da subjetiva reelaboração do testemunho. Este
trabalho de valoração do testemunho é o que de mais delicado e mais difícil se
pode pedir ao juiz no processo.
Ele
deve, para chegar a resultados satisfatórios, começar a estudar e levar em
consideração aquele instrumento de percepção, que é a testemunha, porque só
conhecendo suas condições, características e seu nível intelectual e moral
poderá deduzir qual seja o valor a atribuir às suas afirmações. Deve tentar
refazer o caminho lógico, através do qual a testemunha pode chegar à conclusão
por ela referida, e reconstruir de eventuais obstáculos derivados de suas
condições subjetivas que possam tê-la perturbado durante esse caminho. Ele
deve, em uma palavra, para chegar a julgar os fatos testemunhados, passar a
julgar também aquele que os afirma.
Por
esse motivo, como poderia cumular-se em uma só pessoa, nesta importantíssima
fase de valoração das provas, a função daquele que julga com a daquele que é
julgado ?
Entende
ainda Calamandrei, que se fosse permitido ao juiz utilizar no processo suas
próprias informações extrajudiciais e atingir livremente as obscuras reservas
da memória, para trazer dos resíduos das observações ocasionais tudo aquilo que
por ventura se refere aos fatos da causa, ele, sob as vestes de juiz,
cumpriria, na realidade, função de testemunha. Assim, os perigos da inexata ou
incompleta percepção, da arbitrária representação e da inconsciente
parcialidade, que são inerentes a todo testemunho, ficariam neste caso sem
correção nenhuma, porque ele não interferiria para afastar ou atenuar a
valoração objetiva de pessoa diferente da testemunha.
Acrescenta
Calamandrei, que o juiz, apurado crítico do testemunho dos outros, não
conseguiria ser um crítico eficaz do testemunho próprio. Sobre a exatidão da
própria observação, sobre a firmeza de sua memória, para ele não haveria
dúvida. No confronto com outras testemunhas, ele acabaria sempre dando razão a
ele mesmo. E, em conclusão, mesmo que sobre ponderado e despreocupado confronto
de diversos depoimentos e de distintos elementos psicológicos de cada um, a
averiguação dos fatos estaria sempre baseada numa testemunha só, ou seja, ele
mesmo, preferido em relação a todas as outras e escolhido às cegas, sem reserva
e sem crítica, apenas por razão de amor próprio.
Por
esse motivo, mesmo tendo sido o juiz testemunha ocular do fato da causa, ao
julgá-la deve despir-se dessa condição de testemunha, pois secundum allegata
et probata partium debet judex judicare, non secundum sua conscientiam.
Notas
01 -
Piero Calamandrei – Per la definizione del fatto notorio. Rivista di Diritto Processuale Civile,
1925.
02 -
Friedrich Stein – El conocimiento privado del juez. Pamplona, Espanha, 1973.
PALAIA, Nelson. A incompatibilidade entre a função de juiz e a de testemunha. Disponível em <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8469>. Acesso em 05/06/06.