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Mídia e Privacidade (*)

Regina Gloria Nunes de Andrade

 

Apresentação

Este trabalho é parte de uma trilogia de exercícios de interpretação que buscam relacionar conceitos da psicanálise e mecanismos de funcionamento dos meios de comunicação, sobretudo tomando como exemplos os temas referentes a intimidade tratados no jornalismo. As articulações do imaginário com a comunicação são seu o fio condutor. Este trabalho pretende compreender por que a privacidade atualmente representa tão pouco em nossa subjetividade.

Bases da privacidade.

Sigmund Freud, criador da psicanálise escreveu, provavelmente em 1908, um pequeno artigo ressaltando a constituição do sujeito em seu ambiente familiar. Este texto recebeu em português o título de Romances Familiares na Edição Standard Brasileira (Imago, 1976). Nele, os pais são tão valorizados que o psicanalista considera que

estes constituem para a criança pequena a autoridade única e fonte de todos os conhecimentos. O desejo mais intenso e mais importante da criança nesses primeiros anos é igualar-se aos pais (isto é, ao progenitor do mesmo sexo), e ser grande como seu pai e sua mãe (1)

Esta seria, digamos, a reação da criança em âmbito geral. Este primeiro estágio que é considerado como assexuado, assim como o que dá origem à comunicação familiar.

O romance familiar é o estágio seguinte, que favorece ao sujeito o afastamento dos pais e gera o neurótico. Começa quando a criança passa, a saber, a diferença entre os papéis desempenhados por pais e mães. Enquanto o pai é exaltado, a origem materna é posta em dúvida – contrariando a antiga expressão legal ‘pater semper incertus est’, e criando uma curiosa restrição. Esse segundo estágio do romance familiar, já considerado como sexuado, vai propiciar à criança um processo imaginário ativo onde ela passa a fantasiar relações eróticas cuja força motivadora é o desejo de colocar a mãe em situações de infidelidade secreta e casos de amor secretos.

Nenhuma outra influência foi valorizada por Freud, pois o mundo interno do sujeito era considerado como pré-determinado dentro das relações familiares. Mas já havia uma alternativa de liberdade – neurótica bem verdade –, que seria a necessidade de o sujeito se libertar do jugo familiar através da imaginação. Dentro deste núcleo estaria formada a subjetividade sobretudo no que diz respeito à autoridade única dos pais como fonte de todos os conhecimentos. Também são vividas as primeiras impressões de hostilidade fraterna ou de rejeição aos pais ou dos pais, o que constituiria os grandes mitos da história da família para o sujeito.

Freud chama a atenção para o fato de que neste tempo está presente uma atividade imaginativa acentuada que segue dois objetivos principais um erótico e o outro ambicioso constituindo ambos os materiais necessários para a formação do neurótico, da individualidade e da subjetividade. Este modelo de família propõem uma intimidade discreta onde os relacionamentos se passariam através de um processo imaginativo cujas fantasias coordenariam as relações entre os membros da família e cujos valores máximos seriam o segredo e a privacidade.

Mas mesmo assim continua sendo valor a atividade imaginativa que agora é deslocada para o social. O que quero chamar a atenção é que de certa forma a comunicação interna da família foi perdida e substituída por uma outra intimidade agora com os meios de comunicação, onde o jornalismo tem lugar especial. Dessa forma é esperado que ela, a mídia, catalise grande parte dos objetivos eróticos e ambiciosos os quais a família estava destinada.

O que Freud chama de objetivos eróticos e ambiciosos ?

No texto Fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade, (1909) considera os devaneios ocorridos na infância como fonte comum e protótipo normal de todas as criações da fantasia, sendo que os de natureza erótica são das mulheres e os ambiciosos e os eróticos são dos homens. Mas a resposta é pouco esclarecedora. Por um lado os objetivos poderiam ser representantes da força da libido em suas direções de eros e tanatus – de vida e de morte. Por outro poderiam ser as pulsões, que só aparecem em um ponto relativamente tardio da seqüência de seus trabalhos. Antes, eram utilizados termos como excitações, idéias afetivas, impulsos volitivos, estímulos endógenos para representar este conceito das pulsões .

Novas formas familiares e a mídia.

Os princípios que acabamos de citar e norteavam a família tal como Freud a observava mas vão sofrer modificações aceleradas. Inicialmente cabe ressaltar que importantes mudanças ocorreram com a família a partir dos anos 60. Ela perde seu papel regulador, e firma compromisso com o diálogo e com a comunicação. As reformas do processo institucional a que foi submetida provocaram em cada indivíduo a questão da responsabilidade em relação a si mesmo e ao outro – sejam pais ou filhos. Mas desaparece a intimidade do casal. Estudando ou observando estes anos nota-se que estes foram o palco de saída do segredo e do silêncio da vida privada.

Ao mesmo tempo, a comunicação é valorizada e a mídia passa a ocupar um lugar de juízo crítico, sobretudo pela divulgação de situações particulares e íntimas.

As transformações seguem. Nos anos 70, assistimos a publicação da intimidade familiar, e finalmente nos anos 80 e 90 a publicitação da vida íntima, privada e particular. Este movimento nos leva a crer que o erotismo e a ambição, antes vividos em família, encontram agora outra via. A libido se desloca para o social e se projeta sobre os meios de comunicação porque deles recebe estímulos. O cinema, a televisão – e recentemente o computador – passam a ser o receptáculo das atividades imaginárias.

Até mesmo as mudanças na família terminam abastecendo a mídia de pautas. Particularmente, os movimentos sociais de afirmação do indivíduo, como feminismo, luta homossexual, direito ao aborto, serviços de ajuda psicológica por telefone, a popularização da psicoterapia individual e de grupo, as técnicas de corpo. Ehrenberg analisa que, esses movimentos

dão lugar a uma nova subjetividade no imaginário coletivo, e produzem uma realidade de forma cada vez mais dividida (2 ).

Uma divisão que traz algo de estranho, de incompreensível, porque por vezes os temas são tão íntimos que se tem a impressão de que não deveriam estar ali, expostos. Mas a conseqüência direta é que a sociedade torna-se tolerante com as transgressões. Neste tempo, a educação familiar se pulveriza e passa a sofrer importantes influências provenientes dos fatos sociais. Muitos hão de lembrar-se dos inúmeros estudos feitos nos anos 60 e 70 sobre a perniciosa influência da televisão, por exemplo, para crianças, famílias e casais.

Mais do que invasão à vida privada, há criações de estilos de vida, configurando uma linguagem especial para eventos desta natureza. A primeira vez que se observou este processo foi por volta dos anos 30, quando Hollywood cunhou suas estrelas de cinema formatando um perfil de vida íntima a ser desejado pelo público. As pesquisas que desenvolvi para a tese de doutorado A Cena Iluminada (3)- sobre as personagens femininas do Cinema Novo brasileiro – assinalam que o Star Sistem não existiu em nosso país. Conseqüentemente não havia por que invadir a vida íntima dos atores. Um exemplo claro foi com relação á atriz Leila Diniz, que apesar de ter tido uma vida pública, só foi divulgada e conhecida após sua morte.

A televisão americana até hoje aplica a maneira hollywoodiana de tratar as personalidades aos políticos. Por volta dos anos 50, os Estados Unidos inauguraram a divulgação do aspecto privado do homem público. A imagem passa a ter o caráter de censura e se imiscui nos escritórios ou nos templos da política como o Congresso ou mesmo na vida familiar do homem público para mostrar o que é correto e o que não é. Uma linguagem super- egoica se estabelece. Determinados padrões de comportamento moral são estabelecidos, e a mídia passa a desenvolver o controle moral sobre a política. Os repórteres indignados anunciam com estardalhaço os fatos da intimidade de figuras públicas.

Bem mais tarde, o uso da tecnologia favoreceu aos escândalos de invasão da privacidade dos políticos dos quais Water Gate é o mais famoso até o evento Clinton – Lewinsky, ocorrido em 1988.

Privacidade e Mídia

Para Ehrenberg, estes fatos foram resultado de dois fenômenos. O primeiro é a conversão de inúmeros problemas privados em problemas políticos. O segundo, decorrente deste, é a promoção dos sistemas relacionais, onde se destacam a psicanálise e o desenvolvimento de terapias corporais que incentivavam a sensibilidade de si próprio como grandes movimentos de avant-garde. Gostaria de fazer uma ressalva: a psicanálise sempre apostou no segredo ou na proteção à vida privada .

No texto Sobre o Início do Tratamento (1913) em que Freud discorre sobre a técnica da psicanálise, a proposta da privacidade é clara:

certos pacientes querem que seu tratamento seja mantido secreto, freqüentemente porque mantiveram secreta sua neurose, e não lhes ponho obstáculos. O fato de que, em conseqüência disso, o mundo nada saiba de algumas das curas mais bem sucedidas é, naturalmente, consideração que não pode ser levada em conta. (4).

Freud diz claramente que prefere não avançar na ciência a expor os segredos de seus pacientes. Ehrenberg provavelmente está se referindo à manipulação da psicanálise feita eventualmente por pacientes. Esta observação aponta para a invasão da comunicação de massa em todos os setores da vida privada, inclusive nos consultórios e nas matérias sobre conceitos psicanalíticos. Nunca se leu tantos artigos sobre psicanálise, em jornais e revistas não especializadas, quanto nos anos 70.

É certo que outras instituições também foram responsáveis pela invasão à privacidade do sujeito. Nos anos 60 e 70 houve especialmente a pressão do Movimento de Liberação Feminino (MLF), expondo o sofrimento corporal das mulheres resultantes de violências sexuais ou as reivindicações de direito ao prazer. Neste tempo a linguagem se esmerava em palavras médicas onde gozo, prazer, sexualidade , orgasmo eram evidenciadas.

Os anos 80 trazem a legitimidade do movimento Gay e ou de movimentos de minorias. Logo adiante, a prevenção da AIDS inicialmente a homossexualidade e mais tarde a sexualidade em geral ficam expostas.

Invasão de Privacidade

A principal conseqüência das desmitificações e invasões de privacidade foi o início da dissociação entre vida privada e vida pública . Divulgou-se, no início dos anos 80, a convicção de que estávamos diante da aparição de um novo modelo cultural cujo centro difusor eram os meios de comunicação de massa.

Áreas tão díspares como semiótica, lingüística ou psicanálise revindicaram um autêntico corte epistemológico dentro das ciências sociais. Para caracterizar esta nova área de estudo, a maioria dos autores separa comunicação interpessoal de comunicação de massa. Essa distinção provoca uma série de equívocos, porque associa à primeira sempre a psicologia enquanto deixa os estudos da comunicação sem estatuto definido.

Com efeito, sempre houve na comunicação de massa um clima que privilegia a expressão das relações latentes e subjacentes (por que não dizer inconscientes), cuja interpretação técnica exerce grande influência sobre o pensamento de amplos setores da população. Por vezes a explicação de um psicanalista sobre determinado evento social foi fundamental para a sua compreensão pelos consumidores da informação – e do espetáculo. Pior ainda: alguma vezes justificava ou explicava eventos sem sentido maior, como crimes ou violência social. Havia verdadeiras traduções psicológicas sobre os acontecimentos , e quase sempre com termos especializados da própria teoria psicanalítica. Complexo de Édipo, narcisismo, sadismo, voyerismo , eram termos que campeavam na mídia.

Felizmente, a mídia – em especial os jornais – está mais atenta às supostas fontes de informação que na realidade buscam promoção pessoal. Hoje, seus agentes procuram filtrar a opinião de especialistas buscando termos comuns.

Para pesquisas em comunicação cuja ferramenta são conceitos da psicanálise, são relevantes os aspectos ideais intrínsecos à comunicação de maneira generalizada. Os conteúdos e mensagens, assim como suas formas de criação e difusão, mostram-se como o grande campo de análises dos efeitos intencionais e não-intencionais de sua cultura implícita. Não há mais dúvidas de que as difusões das mensagens de comunicação de massa produzem o que chamamos de ‘materiais’, ‘conteúdos’ ‘significantes’ nos campos confusos da consciência e/ou do inconsciente . Nesta convicção não estamos sós, pois Blanca Muñoz acrescenta que definitivamente as crenças morais, as categorias do pensamento coletivo, a ideologia, os comportamentos religiosos, se explicam em estreita interdependência nas constantes comunicativas (5).

As questões de invasão da vida privada e cotidiana estão influenciadas pelas novas tendências da sociedade. Lipovetskky no livro Crepúsculo do Dever (1994), capítulo Éden , Éden assinala duas novas correntes em nossa sociedade. Uma delas intensifica o culto consumista regido pelo hedonismo e pelo culto individualista do presente. A outra privilegia a gestão racional do tempo e do corpo, o profissionalismo em todas as áreas e a obsessão por excelência, qualidade de saúde e higiene. Ora, ambas podem ser consideradas extremamente invasivas à privacidade do sujeito. Provocam uma descartabilidade íntima e estimulam a onipotência.

As manifestações imaginárias só podem ser compreendidas através de novos postulados de desconstrução oferecidos por trabalhos de análise textual ou pelo avanço dos estudos sobre as imagens. A partir da valorização dos fatos, a comunicação transformou a informação em espetáculo, onde o princípio de neutralidade obriga a mídia a expor vários pontos de vista, informando tudo ao público para que ele forme suas opiniões. Há uma sutileza neste movimento mediático: a informação passa a ser uma mercadoria e sob estas condições oferece uma ambigüidade onde neutralidade e sensacionalismo estão tão presentes quanto objetividade e espectacularidade. Um dos exemplos mais claros deste fenômeno é a televisão, que abusa das imagens chocantes, dos escândalos, da violência exacerbada, produzindo uma vida cotidiana hiper-realista e emocionante.

Se considerarmos a importância dos meios de divulgação, de comunicação ou as novas normas da informática na comunicação eletrônica estaremos diante de dois fatos novos. O primeiro diz respeito a uma nova maneira de encarar os dados do imaginário e o segundo nos coloca frente a frente com novos pressupostos de ética e moral (6).

O exemplo Clinton- Lewinski

Durante quase um ano e meio a imprensa mundial se ocupou do affair Bill Clinton e Monica Lewinski. Inúmeros depoimentos, imensas entrevistas, fotos de todas as maneiras se multiplicaram a partir da foto modelo onde o presidente dos E.U.A. abraça sua estagiária.Foram notícias sobre sexo, poder e política que dificilmente deixam de ser divulgadas: ao contrário, normalmente elas são colocadas em primeiro plano.

Mesmo que a notícia seja uma indiscreta ou uma massiça invasão da privacidade e da sexualidade de pessoas que tenham algum poder social ou político elas são escancaradas e tem como objetivo principal provocar o escândalo. Sabe-se que grande parte de notícias de caráter íntimo podem ser "compradas" para que não sejam publicadas, mas sabe-se também que a maioria delas configura o "furo jornalístico" oferecendo à opinião pública o que ela espera da mídia através de instrumentos que desempenhem o papel de revelador da vida íntima. Em princípio não é difícil que a imprensa assuma que a proeminência social de um líder esteja diretamente relacionada a seu trabalho de divulgação. Para tal é necessário que certas regras sejam obedecidas e que haja um mínimo de relacionamento entre líder e mídia. Tanto que há departamentos específicos em qualquer governo para que estas relações sejam bem estruturadas. Nestes casos os acordos podem ser montados . mas , quando se trata de um líder importante do governo , o melhor que os órgãos de notícias pública tem a fazer é divulgar com detalhes os acontecimentos.

Mas a narração de um evento é muito mais complexa do que possa parecer. Para Jacques Lacan a narração necessita de uma ação específica que são representadas em cenas. No Seminário da Carta Roubada (1978) Lacan diz que :

Estas cenas são duas, das quais viemos desde já designar a primeira sob o nome de cena primitivas e não por desatenção, visto que a segunda pode ser considerada como sua repetição, no sentido que está aqui mesmo na ordem do dia (7).

A primeira cena , cena primitiva, cena primária , cena originária ou protocena, necessária aos processos de narração, representa a hipótese de que a criança participa em realidade ou em fantasia do coito dos pais. A conseqüência da observação do coito parental é a presença de excitação sexual na criança e ao mesmo tempo a base da angústia de castração. Esta conjugação de desejo e de medo que ocorre no imaginário está na base da ambivalência e é um dos elementos que favorecem a repetição neurótica.

Assim a eficácia da notícia está na capacidade de se repetir criativamente. Quanto mais ângulos da questão possam ser colocados em evidencia e mais outros houverem melhor será a notícia.

Observando a grosso modo o poder a política e o sexo formam um triângulo de emoções e evocam a presença gritante , quase novelesca da presença de hipocrisias , mentiras e de invejas. Se o caso Clinton –Lewinski não tivesse apresentado vários pontos de vista e não tivesse inúmeras repetições onde a sexualidade de um homem poderoso surgiu de várias formas , esta notícia se esvaziaria. A notícia gerada na opinião pública sobre o caso extra conjugal do presidente americano provocou uma interação na sociedade. Os Estados Unidos tem uma indústria da pornografia grande , a taxa de divórcio supera 50% dos casais e a tradição puritana exige dos americanos superioridade moral sobre o resto do mundo. Este conflito reflete-se quando na mesma sociedade há a exigência pública de um retaliamento do presidente e conseqüente punição. A primeira delas é o agenciamento do impeachment que quer dizer a retirada vergonhosa do poder onde o lider deve ser execrado pela sociedade sem perdão e a outra punição esperada faz parte do binômio adultério- divórcio , uma espécie de impeachment íntimo onde o presidente seria punido e humilhado pela esposa que foi ofendida. Estas seriam as conseqüências esperadas diante do delito do presidente dos Estados Unidos.

Mas essas especulações não trazem absolutamente nada de conclusivo nem ao affair , nem ao casamento, mas inventa um modelo inédito de casamento. Ao perdoar o marido pela infidelidade mais pública do planeta, Hillary Clinton, nem o abandonou, nem se vitimou , nem deixou de lado seu projeto político . Ao contrário cada apoio que dá ao marido infiel cresce em popularidade frente ao povo americano. A questão básica do affair concentra-se na compreensão do sujeito sobre a agressividade. Há sempre, em casos violentos como este , a busca do dolo que reflete atos conscientes de alguém na indução da má fé, do logro, ou da mentira.

Conclusões

Seria justo dizer que a mídia não respeita a privacidade do indivíduo? Ou a invasão é resultado dos próprios artifícios da comunicação? A frase de Andy Warohl – segundo o qual todos gostaríamos de ser famosos pelo menos por cinco minutos – é uma evidência de que fama parece não ter relação direta com a falta de privacidade. Exibir sua vida íntima por cinco minutos não deve ser tão atrativo quanto ser famoso pelo mesmo tempo.

Neste ponto trabalhamos com uma ambigüidade cruel porque a própria tecnologia nos expõe. As relações impróprias usadas pelo Presidente Clinton para definir seu adultério quase que inauguram campo da linguagem para se falar de privacidade. O uso indiscriminado do telefone celular nos faz dividir a intimidade de um cidadão desconhecido sem pudor algum, apenas porque ele fala ao telefone sobre si próprio ao nosso lado.

Mas não são só as figuras públicas quem expõem sua privacidade. As religiões em seus cultos , seus ritos , suas crenças já foram de domínio privado e íntimo . Hoje a religião eletrônica divulgada pela televisão abusa dos problemas psicológicos e provoca verdadeiras expiações públicas que vão ao ar sem nenhum critério seletivo. Ao contrário do que preservaria a intimidade , quanto mais íntimo promíscuo e grotesco for uma confissão pública , mais valor ela tem porque poderá atrair mais público ou mais pessoas que queiram fazer parte desta crença.

De fato há a exploração de territórios sem fronteiras, numa linguagem nova e especial, e de espaços na vida cotidiana que pouco definem o público e o privado ou mesmo que os confundem. Espaços denominados por Jameson, em Limites do Pós-Moderno,(1995) de terra-de-ninguém que faz lembrar as utopias de Terra em transe (1966) de Glauber Rocha , mas que nem chegam a assustar porque :

tais concepções da terra-de-ninguém não devem ser tomadas como pesadelo : elas não apresentam como é sugerido anteriormente,nada da alteridade austera da clássica fantasia distópica , e a própria libertação do terror estatal confere à violência dessa terra-de-ninguém o valor de um tipo diferente de práxis - exitação antes que medo- cujo espaço de aventura substitui a antiga paisagem medieval do romance , com um espaço infinito plenamente construído e pós-urbano, onde a propriedade corporativa de algum modo aboliu a antiga propriedade privada individual sem se tornar pública (8).

E se o desvelamento da privacidade é só um mal de fin de siècle ou de debut-de-siécle, que veio para transformar nossas vidas para que sejam entregues à atividade imaginativa dos que estão próximos , só nos resta nos rendermos à ficção imaginária do cotidiano e daí esperar saber se viver será uma realidade sustentável ou uma imaginária leveza - nestes tempos - insustentável .

NOTAS

1- Nota do editor em inglês, 1950. Citação de FREUD, S. no texto "Romances Familiares". In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, Imago 1976, volume IX p. 241.

2 - EHRENBER, A . L’individu incertain . p. 233

3 - ANDRADE , R. A Cena Iluminada- Psicanálise e Cinema. Tese de Doutorado. Escola de Comunicação UFRJ, novembro de 1988.

4 FREUD, S. Sobre o início do Tratamento .Volume XII, p.179.

5 - MUÑOZ, B. Teoria da Pseudocultura, p. 39.

6 - LIPOVETSKY, G. O Crepúsculo do Dever, p. 66.

7 -LACAN , Escritos., 1978, p. 19

8-JAMESON, F. Espaço e Imagem, p. 198.

BIBLIOGRAFIA

ANDRADE, Regina. A cena iluminada. Tese de Doutorado. Escola de Comunicação da UFRJ. Rio de Janeiro, 1988.

EHRENBERG, Alain. L’individu incertain. Paris: Calmann-Lévy, 1995.

FREUD, Sigmund. Edição standard brasileira das obras completas. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976.

Especialmente:

"Romance familiar" (1908). In: ESB (9)Volume IX, 1908.

"Fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade" (1909) In: ESB (9)

"Sobre o início do tratamento" (1913). In: ESB (12).

"Sobre Narcisismo" (1914). In: ESB (14).

"As pulsões e suas vicissitudes" (1915). In: ESB (14).

JAMESON, Fredric. Espaço e imagem. Teoria do Pós- Moderno e Outros Ensaios. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1995.

LACAN, Jacques. Escritos- Seminário da Carta Roubada. Editora Perspectiva. Rio de Janeiro, 1978.

LIPOVETSKY, Gilles. O Crepúsculo do dever: a ética indolor dos novos tempos democráticos. Portugal: Publicações Dom Quixote, 1994.

MUÑOZ, Blanca. Teoria de la Pseudocultura. Estudios de Sociologia de la Cultura y de la Comunicación de Masas. Espanha: Editorial Fundamentos Coleccíon Ciencia, 1995.

(*) Este texto é uma indicação editorial da professora Marialva Barbosa.


Regina Gloria Nunes de Andrade é professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

 

Artigo retirado de: http://www.uff.br/mestcii/regina1.htm