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A imprensa , as ocorrências policiais e a dignidade humana
Raul de Mello Franco Júnior
O acidente que envolveu Diana Spencer tornou obrigatório, em todo o mundo, o saudável debate sobre a responsabilidade da imprensa e os limites de sua atuação.
No
Brasil, também pesaroso pelo passamento da princesa, o tema engrossou as
polêmicas em torno do projeto da nova lei de imprensa, que tramita no
Congresso, e a questão parece ter reforçado o acerto da recente portaria do
delegado-geral da Polícia Civil de São Paulo, disciplinando a execução de
diligências policiais (Portaria DGP nº
018/97).
Pela
referida portaria fica proibido, nas atividades investigatórias, o acesso, a
participação e o acompanhamento de pessoas estranhas às carreiras policiais. Os
agentes públicos também foram incumbidos, sob pena de responsabilidade
administrativa (sem prejuízo de dos reflexos civis e criminais da omissão), de
zelar pela preservação dos direitos à imagem e à privacidade dos investigados e
de seus familiares. Os envolvidos em ocorrências policiais somente serão
fotografados, entrevistados ou expostos publicamente se o consentirem de forma
expressa, por termo escrito e assinado.
A
limitação imposta pelo delegado-geral tem fundamento nos princípios
constitucionais e em dispositivo do Código de Processo Penal, até hoje
desconsiderados. O reforço chegou em boa hora. Também aqui, diuturnamente,
deparamo-nos com os nossos paparazzi de
repartições policiais, especialistas na vendagem de periódicos desqualificados
ou na obtenção de audiência à custa da privacidade alheia. Embora desprovidos
de alta tecnologia, são potencialmente mais perniciosos, vez que os seus
ataques não se limitam às personalidades famosas ou integrantes da “nobreza”
nacional.
A
Constituição da República, repudiando qualquer forma de censura, tutela a
liberdade de expressão, de comunicação e de informação jornalística, como
corolário da democracia. Mas, paralelamente, busca assegurar a inviolabilidade
da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas (e não é
necessário que sejam príncipes ou monarcas para terem este direito), cuja
dignidade está consignada no primeiro artigo da Carta Magna como um dos
princípios fundamentais do Estado brasileiro.
Se
a liberdade de imprensa colide com os direitos individuais, urge alcançar o
equilíbrio, de modo que nenhuma das garantias seja obrigada a suportar,
sozinha, as conseqüências da indevida expansão da outra.
Mas,
da maneira como as coisas caminhavam, somente a inexistência de censura,
invocada em altos brados, estava sendo preservada. Se observada a portaria,
devem ter fim as deprimentes cenas de autuados tentando ocultar o rosto (e a
vergonha) a qualquer custo, de repórteres ofegantes transitando entre agentes
policiais em plena atividade, dos
abutres de delegacia, à caça de um escândalo qualquer, ávidos para
convolar boletins de ocorrência em lenha de noticiários pobres daquilo que é
verdadeira informação.
O
que se espera das autoridade policiais é uma mudança radical de postura, seja
em prol do indivíduo, seja em favor da investigação. Quantas vezes não
assistimos nos canais de TV ou vimos nos jornais a imagem de cidadãos,
acompanhada de texto que lhes imputava taxativamente a prática de crime grave ? Bastava ligar o rádio pela manhã e os
noticiários estavam coalhados de relatos do que acontecera na madrugada. Ali,
pouco era poupado: dizia-se abertamente o nome e endereço de autores de crimes,
os detalhes de suas peripécias (sempre tomadas como verdadeiras) e a informação
sobre vítimas e familiares, sem que se indagasse, em qualquer momento, se
alguma delas desejava ser exposta ao grande público.
Ora,
não é sobre o manto da “livre imprensa” que qualquer jornalista (e nem todos
merecem o qualificativo na sua acepção mais pura) adquire o direito de, em
público, elaborar o seu próprio julgamento, rotular, da maneira que bem
entende, o autor de um delito e, por fim, sem direito de defesa, impingir-lhe a
pena do vexame. Na fase investigatória não existem réus ou culpados. Existem
indiciados, ou seja, indivíduos sobre as quais pesam indícios da prática de um
delito. Não são poucas as ocasiões em que aquele fato inicial que ilustra o
histórico de um boletim de ocorrência (quase sempre confeccionado a partir do
relato unilateral de um dos envolvidos), acaba por se mostrar sem substância,
desprovido de provas, distorcido, mentiroso, atípico, gerando a absolvição do
réu em Juízo ou mesmo o anterior arquivamento dos autos de inquérito. A esta
altura, porém, a imprensa já tinha usado toda a sua força para esmagar a vida
pessoal ou familiar daquele infeliz. E o pior: o deslinde em favor do
indigitado “criminoso” não gera interesse jornalístico. Não há como fazer
sensacionalismo em cima do que “não foi” ou “não aconteceu”. E o desventurado
segue amargando, pelo resto de suas dias, a injusta pecha de marginal.
Os
abusos, é bom que se diga, não acontecem apenas com os autores de crimes. Será que existe alguma família que iria
aprovar uma manchete dando detalhes do suicídio de um de seus membros ? Será
que alguém, ludibriado pelos espertalhões de plantão, gostaria de ver informado
o seu nome, associado ao “conto do vigário”, com a divulgação pública de que,
por ser ingênuo ou humilde, foi enganado ?
Qual marido sentir-se-ia satisfeito com a notícia, transmitida em alto e
bom tom, de que sua esposa ou filha fora vítima de estupro ? Como se sentem os
filhos quando a briga dos pais é contada em minúcias na manhã seguinte,
enquanto se dirigem à escola ? Como se sentem os pais que, levando vida
honrada, acabam atirados na arena da mídia por atos praticados por seus filhos,
como se fosse possível monitorá-los vinte e quatro horas por dia ? E isso tudo
sem questionar as ações do âmbito civil, onde os flagelos impostos podem
assumir maiores dimensões. Mas, diriam os espalhafatosos: - “é a liberdade de
imprensa”...
Para
abusar da ironia, cabe dizer que o cuidado que se tem com a privacidade alheia
pode ser comparado à cautela do sujeito que fustiga um touro no hall de entrada de uma loja de cristais.
Pouco importa para onde irão os cacos !
É
impossível cobrar da sociedade o reconhecimento dos valores que a dignificam,
quando os meios de comunicação são os primeiros a tratar coisas sagradas
(intimidade, vida privada, honra das pessoas) como produtos de fim de feira.
Quem sabe a nova lei de imprensa venha a criar mecanismos mais eficazes de
responsabilização civil e criminal dos maus profissionais, aqueles que,
vestindo a armadura dos paladinos da moralidade e insatisfeitos com a
retransmissão de um fato, se comprazem em nomear e adjetivar seus autores, além
de prejulgá-los. Enquanto não vem a nova lei e não desabrocha a consciência e o
efetivo respeito à privacidade, só merece encômios a portaria do
delegado-geral. Ao menos tentaremos impedir que a semente das investigações
policiais (que somente é plantada para instrumentalizar o Ministério Público)
sirva de combustível para as máquinas de nossos paparazzi.
Raul
de Mello Franco Júnior
Promotor de Justiça de Araraquara-SP
Professor de Direito Constitucional da
Faculdade de Direito de Araraquara.
e-mail: raul@raul.pro.br
Retirado de: http://www.geocities.com/Broadway/6683/