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Falta
de congruência
Rodrigo Guimarães Colares*
Você já recebeu um e-mail, contando uma estória comovente sobre uma
criança que se encontra doente ou desaparecida e que pedia o repasse imediato
da mensagem para todos os seus conhecidos? Na carta eletrônica havia menção
sobre uma forma de pagamento à família da tal infante, algo em torno de
cinqüenta centavos, que seria feito por uma grande empresa, por cada e-mail
presente na lista de pessoas que recebeu e repassou a mensagem?
Se você reenviou esta mensagem ou outras similares a esta [1], há uma grande
possibilidade de que seu e-mail esteja presente nos inúmeros cadastros que
atualmente se vendem pela Internet, visando ao envio de mensagens não
solicitadas, geralmente de cunho comercial, o famoso SPAM. Caso, dentro
de alguns dias, passe a receber vários e-mails de remetentes que você
certamente não conhece, não se assuste, você foi vítima de spammers
(como são conhecidos os que enviam spam).
A primeira consideração a ser feita é que não se conhece, até a presente data,
nenhuma forma de remuneração por quantidade de cartas eletrônicas enviadas. Em
segundo plano, ao se deparar com algum tipo de pedido de ajuda no mundo
virtual, procure o site institucional da empresa referida na mensagem
que estaria financiando a assistência. Se a campanha de solidariedade não for
um boato, muito provavelmente será encontrado algum anúncio sobre ela.
A verdade é que essa corrente, aparentemente inofensiva, pode ser uma tentativa
fraudulenta de se tentar obter contas ativas de correio eletrônico [2] para
confecção de cadastros gigantescos, com endereços eletrônicos de usuários de
Internet. Esses cadastros, geralmente, são elaborados por empresas que têm o intuito
de vendê-los para outras empresas, ou pessoas físicas, constituindo-se uma
espécie de mala direta eletrônica.
Na esfera cível, essa conduta de se constituir cadastros fere o Código de
Defesa do Consumidor, que em seu artigo 43, § 2º [3], estipula a proibição de
inserção de pessoas, ou de seus dados, em listas cadastrais, sem que haja sido
conferida sua prévia anuência, podendo ensejar, àqueles que se sentirem
lesados, a devida reparação pelos danos sofridos. Além disso, no âmbito penal,
tal atitude pode configurar crimes de fraude e se enquadrar em delitos graves,
como os de falsa identidade ou estelionato, ou até mesmo formação de quadrilha
para prática de crime.
Estas listas de e-mails, uma vez compradas por terceiros, muito provavelmente
servirão para o envio de mensagens eletrônicas não solicitadas, chamadas de spam
ou junk mail. A maioria das mensagens veiculadas por esse tipo de
marketing cibernético advém de administradores de sites pouco
conhecidos, que procuram sua rápida e barata divulgação, ou de empresas
prestadoras de serviço, que acabam obtendo pouca credibilidade no mercado por
adotarem tal atitude, considerada antiética pela maioria internauta.
O spam consiste em uma atitude condenável, em que se obriga o destinatário da
mensagem a despender tempo e dinheiro em energia elétrica, telefone, provedor
de Internet, etc., para baixar uma informação não solicitada e que, na maioria
das vezes, não tinha interesse algum em receber. Por isso, aquele que adota
esse péssimo tipo de "marketing", ao invés de fazer com que
"milhares de usuários tenham acesso ao seu produto", vincula sua
empresa a uma imagem antiética e a uma prática que muitos advogados
especializados consideram invasão de privacidade, nos termos do artigo 5º,
inciso X, de nossa Constituição da República.
Nos Estados Unidos, onde o fluxo de informações pela Internet é bem maior, foi
baixado em 2001 o Anti-Spamming Act (Lei Contra o Spam), segundo o qual
se procura coibir, por todo o Estado norte-americano, essa indesejável prática
que, como uma peste, vem tomando conta do ambiente cibernético. Entretanto,
antes desse diploma legal regular a matéria no nível federal, muitos
estados-membros norte-americanos já a disciplinavam de alguma forma, prevendo
até penas para aqueles que descumprissem a norma [4].
A prática de spam per se, no Brasil, não tem amparo legal específico e
por isso não é prevista punição, penal ou civil, específica para ela. Para
tentar suprir esta lacuna do ordenamento jurídico, o Projeto de Lei nº
6.210/02, que se encontrava em tramitação na Câmara dos Deputados, procurava
limitar o envio de mensagem eletrônica não solicitada. Entretanto, este PL foi
arquivado em 31 de janeiro de 2003, por força do artigo 105 do Regimento
Interno da Câmara dos Deputados (Resolução nº 17, de 1989) [5]. Apesar disso,
antes de seu arquivamento, em 6 de agosto de 2002 já havia sido apresentado um
projeto renovado sobre spam: o PL nº 7.093/02 [6].
Causa-nos surpresa constatarmos que tanto no texto do PL nº 6.210/02 quanto no
do PL nº 7.093/02, vê-se a adoção do sistema opt-out, pelo qual o
destinatário tem que expressar a vontade de não mais receber spams,
posicionamento que vai diametralmente de encontro ao disposto no artigo 43,
parágrafo 2º do Código de Defesa do Consumidor (CDC) [7]. O CDC, apesar de ser
lei ordinária, visa à manutenção das boas relações de consumo e, no que for
mais benéfico ao consumidor - parte mais fraca da relação jurídica, deve-se
buscar sua preservação e não-colisão com futuras leis ordinárias, que o poderiam
abrogar.
Ao contrário disso, deve-se enveredar pelo sistema do opt-in, segundo o
qual deve o consumidor previamente expressar sua vontade de receber
informativos ou propagandas - condição esta sine qua non para o envio da
mala direta eletrônica. Este sistema, sim, atende ao finalismo buscado pela mens
legis quando da elaboração do nosso CDC.
Face às possibilidades de regulamentação do spam e à falta de congruência
dessas com a legislação de proteção ao consumidor vigente, parece-nos que o
Brasil ainda se encontra longe de trilhar um caminho sensato e que procure
proteger a privacidade dos usuários de Internet.
Notas de rodapé:
[1] RODRIGUES, Giordani. Doação de alimentos é usada em golpe eletrônico, in
Revista InfoGuerra, 28 de junho de 2002. http://www.infoguerra.com.br/infonews/viewnews.cgi?newsid1025262699,13139,/
acessada em 09 de abril de 2003.
[2] Contas ativas de correio eletrônico são aquelas que se encontram, à data do
spam, em efetivo uso por seu titular. Como é comum se registrar um e-mail e, em
pouco tempo, deixar-se de usá-lo, as contas ativas são valiosíssimas para os
spammers, pois não perderiam tempo enviando propagandas que não seriam
recebidas.
[3] Código de Defesa do Consumidor, art. 43, § 2º - "A abertura de
cadastro, ficha, registro e dados pessoais e de consumo deverá ser comunicada
por escrito ao consumidor, quando não solicitada por ele".
[4] REINALDO FILHO, Demócrito. Estudo comparativo das leis anti-spam
nos EUA, in Revista Consultor Jurídico, 19 de agosto de 2002. http://cf6.uol.com.br/consultor/view.cfm?id=12627&ad=a
acessada em 29 de agosto de 2002.
[5] KAMINSKI, Omar. Projeto de lei sobre Internet e tecnologia são
arquivados, in Revista InfoGuerra, 04 de fevereiro de 2003.
http://www.infoguerra.com.br/infonews/viewnews.cgi?newsid1044368865,94772,/
acessada em 10 de abril de 2003.
[6] KAMINSKI, Omar. Projeto de Lei contra spam é renovado, in
Revista InfoGuerra, 08 de agosto de 2002.
http://www.infoguerra.com.br/infonews/viewnews.cgi?newsid1028829050,33701,/ acessada
em 10 de abril de 2003.
[7] SILVA NETO, Amaro Moraes e. Legismania pátria, in Revista
Consultor Jurídico, 09 de março de 2002.
http://cf6.uol.com.br/consultor/view.cfm?id=9281&ad=a acessada em 02 de
setembro de 2002.
Retirado de: www.conjur.com.br