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Crimes sexuais: Suprema Corte dos EUA versus privacidade individual
Demócrito Reinaldo Filho*
Determinados tipos de criminosos carregam uma probabilidade
de reincidência bem maior que outros. É o caso, por exemplo, dos criminosos
sexuais, pois a prática desse tipo de crime geralmente indica um traço da
personalidade ou envolve uma predisposição comportamental e elemento
psicológico [1]. Diante dessa verdade científica, é justo sujeitá-los ao ônus
de ter seus dados processuais divulgados publicamente, inclusive na Internet,
mesmo depois de já terem cumprido suas penas? A iniciativa de proteção do
interesse público nesse caso, de resguardar pessoas da sociedade contra
eventuais novos ataques de condenados por abusos sexuais, não poderia ferir os
direitos individuais deles, protegidos constitucionalmente?
No meio desse embate de interesses, esteve recentemente a Suprema Corte dos
EUA, quando decidiu pela constitucionalidade de duas versões da "Megan's
Law" - a lei original ganhou esse apelido por ter sido editada depois da
morte da garota Megan Kanka, de New Jersey, assassinada por um maníaco sexual.
Em síntese, a lei permite que o Governo coloque fotografias e nomes de
condenados sexuais na Internet, como forma de ajudar os cidadãos a rastreá-los
na vizinhança -. Ambos os casos (decididos em 05 de março deste ano) adquiriram
muita repercussão por colocar em destaque a utilização da Internet como meio de
divulgação de informações do sistema judiciário, bem como o velho conflito dos
tradicionais princípios da privacidade e liberdade de informação. Alguns
advogados e ativistas de grupos e entidades defensores das liberdades civis
temem que a disseminação dos registros criminais na Internet não somente poderá
embaraçar condenados que procuram a ressocialização, mas também levar a um alto
grau de vigilância pessoal. Shelley Sadin, um advogado que representava o réu
John Doe, que se negava a cumprir as exigências da lei, argumentou que ela
"impunha um estigma governamental" para o condenado [2].
As decisões da Suprema Corte, no entanto, não foram tomadas sob o enfoque da da
cláusula protetora da privacidade, mas de outros princípios constitucionais que
preservam a liberdade individual.
No primeiro dos casos (Connecticut Department of Public Safety v. Doe)
julgados, uma versão da "Megan's Law" do Estado de Connecticut exigia
que pessoas condenadas por crimes sexuais (ou consideradas inimputáveis por
motivo de insanidade mental) se registrassem junto ao Departamento de Segurança
Pública (Department of Public Safety) logo após a soltura, devendo essa
divisão governamental colocar seus nomes, endereços, fotografias e descrição
num site na Internet. A obrigação de se registrar permanece por 10 anos e, toda
vez que o condenado intencione mudar de endereço, tem que comunicar sua
intenção com cinco dias de antecedência. O objetivo da lei, portanto, é
propiciar que pessoas da comunidade tenham conhecimento da vida pregressa de um
vizinho criminoso sexual. Tanto isso é verdade que na base de dados do site que
hospeda as informações, em atendimento à exigência da lei, as pesquisas são
feitas pelo código postal e nome da cidade.
John Doe, um condenado por crime sexual, ajuizou uma ação alegando que a lei
violava a 14ª. Emenda da Constituição americana, que resguarda a cláusula do
"devido processo" (due process clause) [3]. A corte distrital
que inicialmente conheceu do caso proibiu a divulgação pública das informações
dos condenados. A corte recursal (The Second Circuit Court of Appeals)
manteve a decisão inferior, concluindo que a lei privava o indivíduo do direito
à liberdade e feria a cláusula do devido processo legal. Segundo esse
entendimento, sem sequer exigir uma análise antes de submeter o indivíduo ao
registro, de forma a estabelecer seu grau atual de periculosidade, tal medida
equivale a uma espécie de juízo prévio, sem o necessário processo legal. Seria
como uma presunção antecipada de que o indivíduo volte a delinqüir. A Suprema
Corte, todavia, reverteu esse julgamento. Para ela, a cláusula do "devido
processo legal" não poderia ser invocada para o indivíduo fazer prova de
um fato - de que não apresenta periculosidade - quando a lei não assumiu a
materialidade dele. Como observou William Rehnquist, cuja opinião foi seguida
pela unanimidade dos outros juízes [4], em algum momento foi informado no website
que as pessoas nele registradas ofereciam uma atual ameaça; o site apenas
dispunha "o fato da prévia condenação, não o fato de atual
periculosidade" [5]. O fato que gera a obrigação de registro, portanto,
está na condenação criminal anterior, resultado de um processo regular, onde o
condenado já experimentou previamente o seu direito à ampla defesa.
Já a decisão do segundo caso (Smith et al. v. Doe et. al) foi tomada por
maioria de votos (6 votos a 3). Envolveu a constitucionalidade de uma lei do
Alaska [6], que obriga criminosos sexuais a se registrarem e fornecerem nome,
apelido, descrição física, foto, local de trabalho, data de nascimento, data e
local da condenação, duração e condições da sentença, endereço e outras
informações, 30 dias após a soltura ou, se estiver em liberdade, dentro de um
dia após sua condenação ou entrada nesse Estado. A lei prevê a obrigação de atualização
das informações periodicamente, que são publicadas na Internet. A obrigação de
registro tem efeito retroativo, ou seja, alcança não apenas os futuros, mas
também os criminosos já condenados.
Dois condenados por crimes sexuais que já tinham inclusive cumprido programa de
reabilitação se insurgiram contra a obrigação de registro, ajuizando uma ação
buscando invalidar a Lei, sob a alegação de violação do princípio da não
retroatividade [7], argumento acatado pela Corte para o 9º. Circuito. A Suprema
Corte dissentiu desse entendimento, por enxergar que a obrigação de registro
tem caráter não punitivo e, assim sendo, sua aplicação retroativa não fere a
disposição constitucional.
A Suprema Corte não examinou a questão da publicação de informações pessoais de
condenados na Internet sob o prisma da proteção da privacidade individual, como
se viu. Poderá, no entanto, vir a fazê-lo se a "Megan's Law" for
questionada sob esse prisma. Os juízes que participaram do julgamento deixaram
bem claro que só examinaram os fundamentos constitucionais invocados pelos
recorrentes.
Notas de rodapé:
[1] Segundo artigo publicado no Journal of the American Medical Association,
a pedofilia, p. ex., é uma desordem psiquiátrica crônica, que se manifesta pela
atração sexual exclusiva ou em parte por crianças em idade prepubescente.
Embora possa a pedofilia ficar limitada a fantasias, na maioria dos casos o
pedófilo assume comportamento ativo, o que justifica a preocupação do sistema
criminal. Existe tratamento voltado a prevenir os impulsos comportamentais de
um pedófilo na sociedade. Os métodos geralmente são terapia de grupo ou, quando
indicado, o uso de medicação redutora dos níveis do hormônio andrógeno, que
pode agir suprimindo o apetite sexual. Os tratamentos aqui mencionados são a
melhor solução para prevenir o comportamento dos pedófilos, que apresentam uma
alta taxa de reincidência na prática de crimes sexuais.
[2] Cf. reportagem publicada no site NewsCom - http://news.com.com.
[3] A Seção 01 da Emenda 14, entre outras coisas, estabelece que "Nenhum
Estado deve fazer ou executar qualquer lei que restrinja privilégios e
imunidades dos cidadãos dos Estados Unidos; nem deve qualquer Estado privar
qualquer pessoa da vida, liberdade ou propriedade sem o devido processo legal;
("No state shall make or enforce any law which shall abridge the
privileges or immunities of citizens of the United States; nor shall any state
deprive any person of life, liberty, or property, without due process of
law;").
[4] Essa decisão foi tomada por 9-0.
[5] Na decisão de outubro de 2001, a Corte de Apelações para o Segundo Circuito
(Second Circuit Court of Appeals) havia decidido que a leis
"falhava em acomodar os direitos constitucionais de ex-condenados por
crimes sexuais que são tachados como periculosos sem qualquer consideração se
de fato ainda são ou não".
[6] Alaska Sex Offender Registration Act.
[7] O princípio da
irretroatividade da lei está previsto na cláusula Ex Post Facto da
Constituição dos EUA (Art. 1º., par. 10, cl. 1). Diz o
seguinte, no original: "No bill of attainder or ex post facto Law shall be
passed".
Revista Consultor
Jurídico, 7 de abril de 2003.
Demócrito Reinaldo
Filho é juiz de
Direito em Recife/PE, presidente do Instituto Brasileiro da Política e do
Direito da Informática (IBDI), coordenador do livro "Direito da
Informática - Aspectos Polêmicos" (Edipro, 2002) e responsável pelo site InfoJus.
Retirado
de: http://conjur.uol.com.br