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19.12.2002 - A Outra
Face da Pirataria
- Pedro Antonio Dourado de Rezende
A Outra Face da Pirataria
Prof. Pedro Antonio Dourado de Rezende
Departamento de Ciência da Computação
Universidade de Brasilia
04 de Dezembro de 2002A
Associação Brasileira de Software (Abes) está realizando uma
campanha de conscientização contra a pirataria de softwares, principalmente
contra a instalação de softwares sem a devida licença em computadores novos.
Neste caso, o comprador assume o risco de multa altíssima,
se seu micro for alvo de fiscalização. Porém, ao comprá-lo, ele deveria saber
que existem opções para instalações gratuitas legítimas. Sistemas de software
livre, tais como o GNU/Linux ou o FreeBSD, tem licença de uso gratuita. Nesse
caso o conceito de pirataria é outro.
Pirataria com software livre é quando algum programador ou
empresa se apropria do código fonte do programa para incorporá-lo em algum
outro programa que não seja livre. Quanto a este tipo de pirataria, são os
associados da ABES que se vêem tentados, como a raposa com as uvas, e não o
consumidor. Pirataria de software é pois um conceito relativo, derivado do
modelo de negócio em torno dele.
Houve tempo em que a indústria operando o modelo hoje ainda
predominante de produção e negócio de software, baseado na comercialização da
licença de uso, fazia vista grossa à pirataria do consumidor doméstico. Com
isso os consumidores desenvolviam hábitos e dependências que os fidelizariam à
marca dos produtos, através de sua vida profissional.
Porém, com a fadiga deste modelo, revelada em custos
exorbitantes de produção, licença e administração de direitos autorais, o
combate à pirataria virou moeda de troca em acordos internacionais, como WIPO,
OMC (Trips), ALCA, etc, e em lobbies legislativos a favor da asfixia ou da
criminalização de modelos alternativos, como o do software livre, por meio de
leis e iniciativas como DMCA, UCITA e TPCA, nos EUA, para falar das mais
importantes.
Os custos explodem porque, no modelo proprietário, a evolução
do software é ditada pelo fluxo de caixa do produtor, e não pela aculturação do
consumidor. O produtor precisa criar novas necessidades para o software, na
forma de novas funcionalidades, e levar o consumidor a acreditar que precisa
delas.
Enquanto a propaganda bastava para induzir esta crença,
ninguém se sentia tolhido. Acontece que, como todo programador experiente sabe,
falhas e vulnerabilidades crescem exponencialmente com o tamanho do software, e
portanto junto com ele a relação preço/qualidade, de forma que propaganda já
não basta.
Se agora quisermos comprar um novo computador com uma
licença legítima do Windows 98 não achamos quem o venda, enquanto sua pirataria
é pintada como crime hediondo. Muitos técnicos especializados em Windows acham
que a versão 98 ainda é a melhor na relação custo-benefício, pelo que cabe a
pergunta: por que não podemos optar hoje por uma versão legítima anterior à do
Windows XP? É como proibir a venda de carro usado para garagem nova e
descontinuar a "produção de compactos" feitos de bits. Os bits,
diferentemente das suas garagens, não envelhecem enquanto a gasolina encarece,
fazendo desta proibição uma armadilha.
As licenças da linha XP são verdadeiros contratos de
aluguel. Mas piores, pois são contratos de adesão aos quais o comprador adere
sem conhecer preço e data de vencimento das prestações seguintes. Não bastasse
isso, são contratos que dão à produtora o direito de alterar sorrateiramente
dados em arquivos do licenciado, como na gravação de links do Office, e de
implodir remotamente sua instalação se ele usar o software para publicar
material que "denigra" os produtos, serviços ou parceiros da empresa,
como na licença do FrontPage.
São, assim, muito parecidos com os contratos que certos
fazendeiros avarentos oferecem a peões indefesos recrutados para trabalho na
roça, que vez por outra aparecem na mídia como exemplos de trabalho escravo.
Esse tipo de licença de software é muito mais lesivo do que
os anteriores e não resistiria a isenta análise pela luz da jurisprudência do
direito contratual brasileiro, muito menos à do nosso código de defesa do
consumidor, não sendo à toa que, nessas licenças, o foro para pacificação de
disputas é o do produtor. Temos aí um paralelo gritante com os extertores do
modelo escravagista da agroindústria, com o advento da era industrial.
De acordo com a Abes, uma pesquisa da Price Water Coopers
revela que se o índice de pirataria de software brasileiro, atualmente em 56%,
fosse reduzido para o equivalente dos países desenvolvidos, em torno de 25%, o
setor deixaria de perder R$ 1,7 bilhão em faturamento e quase 25 mil novos
empregos seriam gerados, com aproximadamente R$ 1,2 bilhão arrecadados em
impostos diretos e indiretos. Mas alto lá.
A indústria não perde 1.7 bilhão por ano. Este valor
corresponde à sua expectativa de lucro caso quem pirateia acima da média não
tivesse alternativa, nem para escolher software livre nem para instalar
software pirata. A conta honesta seria outra. Desses 56%, quantos instalariam
software livre ou deixariam de comprar o computador se não pudessem piratear?
Descontados estes, o que a indústria perde é apenas o valor das licenças
restantes. Valor que não se obriga a corresponder às expectativas de lucro das
empresas, mas ao que o poder aquisitivo dos agentes econômicos consegue
absorver, como bem mostra a atual crise da telefonia privatizada.
Ademais, esses 25 mil novos empregos não seriam gerados
todos aqui. A maioria, e certamente aqueles que demandam formação tecnológica,
seriam gerados na empresa produtora, que arrecadaria o grosso desse 1,7 bilhão.
Aqui ficariam uns poucos empregos de estafetas e apertadores de botões. Ao
passo que se investisse em software livre, a economia brasileira estaria
gerando todos esses empregos aqui mesmo, inclusive os de base tecnológica, pois
a indústria de serviço ao software livre tende naturalmente a expandir-se para
o desenvolvimento, já que o código é aberto e as demandas dos clientes são
específicas. Sem falar na cultura e autonomia tecnológicas.
Quanto à arrecadação extra de impostos, 1,2 bilhão é também
o que o governo gastou no ano com licença de uso de software proprietário,
segundo seus próprios levantamentos. Se optasse por software livre, o mesmo
montante poderia ser economizado tanto pelo contribuinte como pelo estado, que
poderia investi-lo em educação, saúde, etc, ao invés de onerá-lo à sociedade já
asfixiada por um arroxo fiscal inusitado, atrelado a juros abusivos fixados por
agiotas globais. E pior, onerado através de contratos sem licitação que em
cinco anos acumulam, só com licença de software e serviços à microsoft, despesa
irregular de R$ 15,8 bilhões, segundo a revista Isto É de 5/12/02.
Mesmo se este montante for contestado por revendedoras, o
que importa é o modus gastandi. A solução salomônica seria o uso de software
livre onde possível, e software proprietário onde necessário.
Mas estamos em meio a uma guerra ideológica na esfera
jurídica da propriedade intelectual, onde os produtores de software
proprietário acabam de consagrar o direito de cobrarem pelo uso dos padrões
digitais inteligíveis aos seus programas.
A sentença condenatória da microsoft por prática monopolista
predatória, lavrada no dia 1 de novembro último pela juíza Coleen
Kollar-Kottely (United States District Court for the District of Columbia:
"Microsoft Case - 11/01/02"
http://www.dcd.uscourts.gov/microsoft-2001.html), gera tal jurisprudência, o
que tende a levar à asfixia ou ao isolamento o software livre, destruindo o
fantástico edifício semiológico de interoperabilidade na esfera digital
alcançado pela internet de hoje.
O exercício deste direito seria como o de um cartório que
cobra não só pelas escrituras que lavra, mas que passa a cobrar também, de
qualquer tribunal, advogado ou despachante, pelo uso do "jargão cartorial"
em qualquer documento, sentença, petição ou escritura que venham a produzir,
podendo discriminar nesta cobrança contra aqueles de quem não gosta.
O custo adicional de licença na compra de um novo micro pode
ser zero se os softwares forem livres, tais como os sistemas operacionais
GNU/Linux e FreeBSD, os pacotes para escritório OpenOffice, versões anteriores
do Star Office, os navegadores Netscape, Opera, o banco de dados MySQL, e
muitos outros. Mas pode dobrar o preço da compra, ou mesmo tornar este custo
imprevisível ou imponderável ao longo do tempo, se o comprador quiser aderir às
"promoções" da microsoft, do tipo "A licença do XP custa só 20%
da licença perpétua do Windows 98" (fica faltando dizer que é só a
primeira prestação do aluguel). Quando a ABES se pronuncia em defesa dos seus
associados agindo como se o software livre não existisse faz propaganda
enganosa com o apoio autista da grande mídia, e deveria responder por este tipo
de falsidade publicitária.
http://www.cadejur.com.br/