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 Ética Jurídica, Informática e Telecomunicações

A abordagem sobre a ética jurídica, a informática e as telecomunicações está inserida em um contexto amplo que envolve, entre outros assuntos, o ciberespaço e sua definição. Trata-se, por ora, da confecção de análises genéricas, com o objetivo de abordá-la e trazê-la para o centro da discussão de problemas atuais. A ética, por si só, materializa o estudo dos juízos de valor sobre a conduta humana. Porém, se constitui em poderosa ferramenta da atuação humana e organização social, como geradora de comportamentos e, por conseguinte, influenciadora de fatos concretos. Tais características importam ao trabalho em curso.

Há várias formas de manifestação da ética, constituindo utilidades diversas, e vários são os aspectos a serem abordados. Ética profissional, pessoal, pedagógica, de guerra, de libertação, etc. Devem ser analisados alguns elementos para que se possa saber do que estamos falando quando dizemos "ética". Porém, merece destaque uma situação particularizada, a ser analisada mais adiante: qual a utilidade dessa figura, sob a ótica jurídica, no ciberespaço, e quais as suas principais características.

Contudo, antes de abordar a questão, são necessárias considerações gerais e breves sobre a ética jurídica. Na esfera profissional, no âmbito da OAB, o estudo dos julgamentos axiológicos assume contornos eminentemente prescritivos, codificado no Estatuto, no Título I, "Da Ética do Advogado", com sete capítulos assim dispostos: Das Regras Deontológicas Fundamentais; Das Relações com o Cliente; Do Sigilo Profissional; Da Publicidade; Dos Honorários Profissionais; Do Dever de Urbanidade; e Das Disposições Gerais.

Há uma dubiedade sobre o conteúdo de tais enunciados, identificada por Pasold

Porém, são normas impositivas

Verifica-se, sob tal referencial, uma função prescritiva e sancionadora, modelo adotado também em outras corporações e instituições, de uma ética obrigatória, positivada e oficial, reconhecida como instrumento hábil à estruturação de condutas.

Porém, se aplicarmos o instituto ao problema da Guerra, não há o mesmo reconhecimento. Como diz Gustav Radbruch

"A ética é incapaz de resolver o problema. Os juízos de valor próprios da Ética não podem recair sobre o facto-guerra em si mesmo nem sobre o da decisão que ela pode constituir. Tais juízos só podem ter por objecto a participação dos indivíduos na guerra, a sua culpa nesta ou a sua ausência de culpa".

Nesse âmbito, trata-se de construções desprovidas de conteúdo sancionador jurídico impositivo. Uma ética jurídica puramente deôntica. Na abordagem analisada, verifica-se uma situação concreta na qual a ética não serve para desempenhar uma função organizadora. Não é dificil a conclusão de que o clima de guerra destrói os referenciais éticos.

Existem, pois, variadas formas de incidência da ética jurídica sobre o homem, e pode-se dizer que ela é algo que orienta as ações deste, mas, mesmo assim, há situações nas quais ela simplesmente não incide. Mas a ordem de valores éticos pode, ainda, configurar outra função, emancipatória, captada por Wolkmer. Descrita como um dos fundamentos de um novo tipo de pluralismo jurídico, a "ética concreta da alteridade" surge diante da constatação do exaurimento do modelo cultural vivenciado na atualidade, apontada como crise ética da modernidade. Produto de uma consistente análise de importantes pensadores da sociologia, filosofia e do direito, a construção reafirma um importante referencial, qual seja, a libertação, como pode ser visto

"A "ética da alteridade" é uma ética antropológica da solidariedade que parte das necessidades dos segmentos humanos marginalizados e se propõe a gerar uma prática pedagógica libertadora, capaz de emancipar os sujeitos históricos oprimidos, injustiçados, expropriados e excluídos. Por ser uma ética que traduz os valores emancipatórios de novas identidades coletivas que vão afirmando e refletindo uma práxis concreta comprometida com a dignidade do "outro", encontra seus subsídios teóricos não só nas práticas sociais cotidianas e nas necessidades históricas reais, mas igualmente em alguns pressupostos epistemológicos da chamada Filosofia da Libertação".

Há duas ressalvas: 1) a construção é originariamente dirigida à pedagogia; 2) muitos dos elementos referidos merecem extensa e particularizada análise. Porém, a afirmação de emancipação, solidariedade e libertação trazem importante referência ao estudo em curso, razão pela qual inserimos a referência.

Após a visualização do grupo de abordagens apresentado, podemos retornar à questão inicial, a ética e o ciberespaço. Trata-se da identificação de detalhes que possibilitem um passo no sentido de futuros esclarecimentos sobre a atuação do direito no ambiente das grandes redes de informática e telecomunicações, sob a ótica, aqui, da ética.

Para tanto, é necessária uma pincelada nas principais questões jurídicas atualmente conectadas a tal ambiente. São questões ora globais, ora individuais, ora da informática, ora das telecomunicações. Porém, têm, hoje, um importante ponto de contato: a Internet, que pode ser assim definida

A amplitude do instituto é grande, assim como o espectro de discussões que possa gerar. Vamos aos casos concretos, embora esparsos e aleatórios, encontrados hoje, entre diversos outros, ligados à internet de formas variadas:

E- Law. A Environmental Law Alliance Worldwide foi formada por ecologistas de vários paídes do mundo com o objetivo de potencializar atividades jurídicas de ação ambiental, valendo-se do correio eletrônico e de conferências, materializando um espaço nitidamente marcado pelos interesses comunitários.

Alta velocidade. Na legislação americana, alta velocidade significa gigabits por segundo. Mesmo lá, essa marca ainda é uma expectativa de uso em larga escala, que vai gerar facilidades nas atividades diárias. Porém, já podemos perceber hoje, as velocidades tendem a apresentar diferenças entre os países, gerando uma natural dificuldade de padronização de procedimentos de diversas espécies, inclusive e principalmente os burocráticos e jurídicos.

Tráfego comercial. A necessidade de estabelecer regras e restrições fez surgir mecanismos denominados de "estratégias", entre as quais destaca-se a Acceptable Use Policy (Estratégia de Uso Aceitável) da NSFNET, a qual privilegia, nessa "rede" central, informações de apoio a atividades de pesquisa e acadêmicas, vedando as comerciais. As publicações especializadas titubeiam no momento de estabelecer a fronteira e definir "tráfego comercial", chegando a aceitar a divulgação de software como ação não comercial.

Mecanismos de controle. Há poucos e muitos. Várias são as formas de controle, mas a National Science Foundation, nos EUA, é a principal, fortemente influenciada pelo governo. A rede central de distribuição naquele país, a NSFNET, foi formada com fundos da NSF, a qual define políticas e gestiona uma parte da Internet no País.

Domínios. Os espaços específicos destinados a determinadas atividades (*.com, *.edu, *.mil, *.org, *.gov, *.net) recebem o nome de domínios, ou DNS, de Domain Name System, onde os dados são "colocados no ar". Pois bem, a rede é mundial, e surge um notório questionamento sobre a permissão para o registro e utilização de um domínio, já que o InterNIC Internet Registration Service, operado pela Network Solutions, Inc., "deveria" estar limitado à realidade Americana.

Contratos. Existem afirmações no sentido de que a utilização de programas e dados criptografados constitui uma forma segura de celebração de negócios jurídicos nos moldes tradicionais. Porém o ciberespaço já desenvolveu uma forma específica de celebração, envolvendo um raciocínio próprio. Trata-se dos "shrink-warp", uma espécie de contrato de adesão, conforme Cerquiera

. Seguindo um protocolo interativo na obtenção e recebimento do programa, o agente estaria praticando atos semelhantes à assinatura, aderindo ao contrato. Refere-se, principalmente, à distribuição de software.

Provedores. As instituições destinadas a "pegar o usuário pela mão" e permitir sua caminhada pelas Net's são a "interface" institucional entre a sociedade privada e o ciberespaço, principalmente no Brasil. Como tal, devem ser tratadas institucionalmente. Níveis de acesso, formas de pagamento, cláusulas contratuais sobre os serviços, sanções, privilégios e benefícios, são aspectos a serem debatidos e definidos.

Segurança. Técnica: trata do equipamento, da conservação dos arquivos, da integridade do equipamento, da proteção contra infortúnios da natureza, perda, defeitos, etc. Jurídica: muito importante. A internet é considerada uma rede aberta e compartilhada. Há, pois, o risco de invasões e violação ou destruição de dados. Há dois enfoques. Um, antecedente, refere-se às medidas adotadas para evitar a violação e deter o intruso. Outro, posterior, aborda as autenticações e senhas, com identificação e responsabilização, através de auditorias. Tais sistemas ainda são de eficácia singela, exigindo muito esforço e pesquisa. Uma das principais tarefas do Direito consiste na estabilização de mecanismos teóricos e normativos de segurança. Cabe ressalvar que a disparidade de importância entre dados é muito ampla. Um determinado conjunto de bits pode ser algo muito frugal (um jogo ou texto), ou, pelo contrário, muito complexo e relevante (códigos de disparo de armas nucleares, senhas bancárias e governamentais).

Pirataria. Consiste na cópia de programas sem a devida autorização. É tema originário do direito autoral, porém já ampliou suas dimensões a ponto de as normas nacionais e internacionais não estarem mais conseguindo resolver boa parte dos problemas. Trata-se de uma moeda de dois lados. De um ponto, deve haver proteção do trabalho contido nos produtos de programação e sistematização. Porém, de outro, tais protecionismos estão se tornando uma forma exagerada e rápida de provocar a excessiva capitalização de empresas e pessoas. O discurso oficial da indústria do software é o do medo e da punição. Tais características, historicamente, estão ligadas a movimentos opressores e arbitrários. O argumento da "venda da segurança", utilizado por uma grande corporação americana, lembra o discurso da máfia italiana.

Imposto do modem. Pasme, leitor, mas isso já foi cogitado, há alguns anos, na capital americana. O FCC Modem Tax Scare chegou a ser objeto de discussões preliminares no congresso americano, sem que fosse adiante. Provavelmente nenhum tecnoburacrata palaciano nacional tomou conhecimento de tal possibilidade, e nem deve. O tributo teria vários inconvenientes, entre outros: tributa desigualmente as pessoas, pois trata igualmente grandes e pequenos contribuintes; materializa provável tributação dobrada; limita a melhor utilização de outros mecanismos tributários; impõe ao ente tributador a dificil tarefa de explicar os mecanismos tradicionais de justificação e caracterização do imposto. Cabe uma explicação: os tributos são um importante instrumento de organização das sociedades contemporâneas e não têm conseguido desempenhar suas funções mais nobres. Além de financiar o Estado, servem para a intervenção na economia de produção e para redução das desigualdades econômicas individualizadas(ou deveriam servir). São um instrumento político por excelência. Desgastá-los com aplicações e instituições inapropriadas é desrecomendável.

Distribuição de programas. Existem discussões sobre a aplicação dos direitos autorais na distribuição de programas. Uma vez realizada a descarga, é gerada uma cópia do programa, o que tem semelhança com a cópia de um texto, embora não seja a mesma coisa. No âmbito da Comunidade Européia há preocupações positivadas com a autorização para distribuição, como aponta Cerqueira

Porém as coisas não são tão simples. Assim como no Processo Penal, o mecanismo funciona quando há uma pessoa de um lado e outra de outro, numa relação bipolar simples. Mas o direito adjetivo dos delitos demonstra uma incrível ineficiência histórica quando trata de questões plurisubjetivas, mal que também atingiu o Direito Penal pátrio, embora em menores proporções. O exemplo mais proeminente, que serve para demonstrar a dupla ineficácia, no Brasil, entre diversos outros, é o lamentável caso Collor no STF. Com relação ao tema específico, está surgindo, na área da distribuição do software em redes, o programa "frankenstein", que conta com a participação de diversas pessoas e corporações, sendo extremamente difícil precisar quem fez o quê. Igualmente, a proliferação de versões "shareware" e "freeware" de partes ou totalidade de programas está mudando o eixo de referência do trabalho individual auxiliado pelos recursos lógicos da informática. As noções de conhecimento compartilhado, presentes nas Net's, tendem a gerar novas formas de apreciação do problema.

Telefonia. Além de outras formas físicas de conexão, a telefônica prepondera na configuração das redes, principalmente nos denominados acessos remotos. Então, as recentes discussões nacionais sobre a normatização jurídica dessa área são relevantes. Vamos mais longe: há uma tendência de considerar as telecomunicações, entre outros, como um dos fatores de geração do ciberespaço. Cogita-se da possibilidade da existência de uma legislação tratando do assunto no Brasil.

Hiperdocumentos. É um documento eletrônico que combine hipertexto com diagramas, podendo ainda incluir multimídia, outros programas e até sistemas especialistas, conforme Martin

. Há algum tempo a produção dos documentos jurídicos não possibilita a busca de formas alternativas. Textos legais e autos processuais têm tido seus mecanismos de construção formal absolutamente petrificados diante da história. No caso de termos de atos judiciários, é possível uma experiência interessante: pega-se um termo de audiência de 1967. Outro de 1995. Elimina-se a data e as marcas físicas do envelhecimento (o que importa é analisar o texto). Provavelmente não será possível diferenciá-los cronologicamente. Isso é um mau sintoma de excesso de conservação, denotando que as rotinas jurídicas básicas, no contato do Estado com os fatos, permanecem praticamente inalteradas por muito tempo. E, sabemos, não são eficazes. Por outro lado, o sistema normativo é, normalmente, tão grande e complexo que seus usuários perdem muito tempo buscando informações, com elevados índices de imprecisão. A utilização adequada de hiperdocumentos, segundo especialistas, reduz o problema.

A enumeração de questões não tem fim. Existem ainda diversas outras importantes, como vírus, BBS, moderadores, relações de trabalho, publicação, produção e registro das "home page", etc.

Todas têm um ponto em comum, qual seja, o contato com a questão introdutória, à qual não é possível, de imediato, apresentar integral e satisfatória resposta. Inobstante, cabem algumas considerações:

1) há incidência da ética (pura e jurídica) nas ações de caráter individual (não invadir arquivos, não quebrar senhas). Porém, a sanção fica praticamente reduzida à mesma esfera;

2) a ética coletiva está sendo a grande normatizadora da internet, através de protocolos e estratégias materializadores de institutos de autogestão, fato que pode constituir, com cautelas e ressalvas, um espaço marcado pela autonomia, embora existam tópicos a serem, ainda, abordados de forma mais propícia pelo direito tradicional.

HUGO CESAR HOESCHL

Retirado de: http://www.iaccess.com.br/~ciberjur/etica.html