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Crise no Ensino
Luiz Flávio Gomes
Ser diplomado não significa
ser capacitado
O ensino jurídico no nosso
país acha-se submetido a pelo menos três crises: (a) científico-ideológica, (b)
político-institucional e (c) metodológica.
A primeira relaciona-se com o
equivocado paradigma científico do qual se parte. Necessitamos na atualidade
(cada vez mais) conhecer os dois ordenamentos jurídicos vigentes, o
constitucional e o legal (que por sinal, com freqüência, são antagônicos). Nas
faculdades, entretanto, em geral (há exceções honrosas), ensina-se só metade do
que devemos aprender (a perspectiva positivista legalista do Direito e dos
direitos).
Isso decorre do pensamento do
Estado Moderno, da revolução francesa, do código napoleônico, onde reside a
origem da confusão entre lei e Direito; os direitos e a vida dos direitos
valeriam pelo que está escrito (exclusivamente) na lei; quando o correto é
reconhecer que a lei é só o ponto de partida de toda interpretação (que deve
sempre ser conforme a Constituição).
A lei pode até ser, também, o
ponto de chegada, mas sempre que conflita com a Carta Magna, perde sua
relevância e primazia, porque, nesse caso, devem ter incidência (prioritária)
as normas e os princípios constitucionais. A lei, como se percebe, foi
destronada. Mesmo porque, ao contrário do que pensava Rousseau, o legislador
não é Deus e nem sempre representa a vontade geral, ao contrário, com
freqüência atua em favor de interesses particulares (ou mesmo escusos).
Primeira conclusão: o ensino
jurídico no terceiro milênio não pode continuar ancorado na ideologia
científica (estatalista e legalista) do século XVIII.
Do ponto de vista
político-institucional a crise não é menos profunda. Faculdade de Direito
deveria ser o lugar apropriado para o aluno aprender a pesquisar, raciocinar,
compreender e, sobretudo, argumentar, redigir arrazoados etc. No entanto, está
se mercantilizando vergonhosamente. Em qualquer esquina "dizem"
acha-se uma delas. Exagero à parte, certo é que temos (já) quase 450 cursos em
funcionamento no país e o Ministério da Educação agora está pretendendo
reduzi-los para três anos, com abrandamento das exigências curriculares (veja a
crítica pertinente de Carlos Miguel Aidar, Folha de S. Paulo de 04.07.02, p.
A3).
Já não é, portanto, e o será
menos ainda em breve, o lugar onde se conquista uma profissão ou onde se tem
garantia de emprego. Nada mais disso é verdadeiro, salvo em algumas
pouquíssimas ilhas de exuberância acadêmica. Se você acha hoje chocante
recomendar a alguém que faça escola de datilografia, saiba que algumas
faculdades ainda são desse tempo. Na era digital já não se pode ensinar
analogicamente!
Com raras exceções, as
faculdades estão se transformando (simplesmente) num degrau obrigatório para se
conquistar um diploma. Mas ser diplomado não significa ser capacitado. Somente
19% dos bacharéis estão passando no exame da Ordem dos Advogados. Menos de 1%
dos inscritos estão sendo aprovados nos concursos da magistratura e do
ministério público (cf. Folha de S. Paulo de 06.07.02, p. A2).
Segunda conclusão: durante o
período escolar, enquanto alguns fazem de conta que ensinam, outros fazem de
conta de aprendem. O governo, por sua vez, faz de conta que fiscaliza (com seus
provões) e as instituições (em geral) fazem de conta que são fiscalizadas, que
contam com uma biblioteca atualizada etc... Quem assim procede vive uma ficção
(enganosa). As drásticas conseqüências de tudo isso pronto aparecem e o dia do
desespero não tarda! O aluno, depois de diplomado, ao cair "na real"
(!), sente-se vítima de um engodo.
Mas é preciso reconhecer que
muitas vezes esse engodo foi bilateral (há também vítimas ávidas por
vitimização). Durante cinco anos muitos alunos enganaram os outros (pais,
parentes etc.) e, principalmente, enganaram-se a si mesmos (às vezes, até
comprando pela internet o trabalho final de conclusão do curso) (cf. Folha de
S. Paulo de 01.07.02, p. C12).
Mas chega o dia em que ele
tem que definir seu destino, sua profissão, seu futuro e, agora, não tem como
enganar ninguém mais. Esse é o dia do desespero e também o dia de começar o
jogo (da vida) para valer! É o momento de procurar sérios cursos de extensão
universitária e fazer cinco anos em um.
A terceira crise do ensino
jurídico no Brasil está relacionada com a (total e absoluta) falência do método
clássico de ensino, que padece de muitas anomalias.
Esse ensino vem respaldado
por currículos repletos de informações, de teorias e de princípios científicos
(em tese úteis e até interessantes) mas que no dia-a-dia da faculdade não são
ministrados. E quando ministrados não são devidamente aprendidos (senão
decorados). E o que é aprendido (decorado) não é usado (porque não se aprende
fazendo e#8722; learning doing e#8722;; aprende-se para depois saber fazer).
A velha concepção, em suma, é
a seguinte: primeiro adquirir conhecimentos, para depois aprender a usá-los.
Primeiro a sistematização de tudo, depois a problematização. Primeiro a teoria,
depois a prática. Esse método de ensino está completamente equivocado!
Aliás, a faculdade que
continua nele ancorada está com os dias contados (em termos de reputação),
porque está colocando na rua toneladas de bacharéis subinformados (nada ouviram
sobre coisas importantes) ou super(mal)informados (ouviram falar de muitas
teorias, mas pouco uso sabem fazer delas).
É o bacharel "hipo"
(hipoinformado, hipocapacitado etc.) ou "Vasa"(cf. Cláudio de Moura
Castro, em VEJA de 29.05.02, p. 22, que nos recorda a seguinte passagem
histórica: "O rei Gustavo Adolfo da Suécia, para defender-se de seus
inimigos, decidiu criar o mais poderoso navio de guerra. Importou os melhores
construtores navais, e os cofres públicos foram sangrados para produzir um
barco invencível. Mas o rei o queria ainda mais invencível e mandou instalar
mais um deque superior, com mais peças de artilharia. O navio, com o nome de
Vasa, enfunou as velas em 1628 e, sob um vento suave, singrou a baía de
Estocolmo. Mas, subitamente, apenas deixando o porto, vira e afunda. Era
instável, pelo excesso de canhões e pela falta de lastro").
Professores e faculdades, na
atualidade, se querem sobreviver, têm que saber desenvolver competência, que
"é a capacidade do sujeito de mobilizar recursos cognitivos visando a
abordar uma situação complexa" (Vasco Pedro Moretto, Justilex ano 1, n. 4,
abril/2002, p. 69).
O novo método de ensino deve
partir da situação complexa para em seguida escolher os meios (os conteúdos, as
teorias, as leis, os princípios etc.) adequados para sua abordagem e solução.
Como se vê, é preciso inverter a crença convencional de que devemos primeiro
adquirir conhecimentos para depois usá-los.
Terceira conclusão:
learning-doing, isto é, aprender fazendo, aprender a partir de situações
concretas. Nenhum ensino pode mais pretender só transmitir informações: deve
também desenvolver em cada aluno competência, que é a habilidade para enfrentar
situações complexas.
A distância (abismal) entre a
provecta metodologia do ensino jurídico e a realidade fica mais do que
evidenciada quando vemos a artificialidade de muitos dos problemas jurídicos
enfocados em salas de aula ou em concursos públicos. Aliás, já a forma bizarra
e grotesca de apresentação deles (Semprônio tinha inequívoca intenção de matar
Caio, que morava na Tanzânia em companhia de um bebê de proveta chamado Tício,
que nasceu no mesmo dia que Mélvio...) revela o quanto se afastam da vida comum
dos mortais.
Um último e delicado problema
do ensino jurídico reside na precaríssima formação do professor: ser juiz,
advogado ou promotor, ainda que titulado (doutor ou mestre), não significa
nenhuma garantia de ser bom professor.
Quarta conclusão: bom
professor hoje (especialmente em cursos de graduação ou de extensão
universitária) é o que parte da definição de um problema concreto, reúne tudo
quanto existe sobre ele (doutrina, jurisprudência, estatísticas etc.) e
transmite esses seus conhecimentos com habilidade (que requer muito
treinamento), em linguagem clara, direta, objetiva e contextualizada,
direcionando-a (adequadamente) a cada público ouvinte. Além de tudo isso, ainda
é fundamental administrar o controle emocional (leia-se: deve estar motivado
para transmitir tudo que sabe, a um aluno que deve ser motivado para aprender).
Luiz Flávio Gomes é doutor em
Direito Penal pela Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito Penal
pela USP e diretor-presidente do IELF - Instituto de Ensino Jurídico Professor
Luiz Flávio Gomes
Fonte: Consultor Jurídico
Retirado de: www.academus.com.br