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Quem é o dono da
informação na Internet?
Ronaldo Lemos
"A informação
deve ser livre como o ar", disse o juiz da Suprema Corte Norte-Americana
Louis Brandeis, referindo-se a todas as obras que se encontram em domínio
público, como as expressões de fatos e todas as manifestações que não atendem
ao requisito mínimo de constituírem "criações do espírito" para serem
protegidas pelo direito autoral.
Hoje, grande parte das expressões
intelectuais humanas encontra-se sob domínio público. O prazo de proteção
conferido pelo direito autoral é de setenta anos. Uma vez transcorrido, a obra
torna-se res commune, isto é, bem de todos, como o ar. Outras informações já
nascem livres: são os textos legais, os nomes próprios, os resultados
esportivos, os fatos, os números de telefone, os endereços etc. Faltam-lhes o
requisito da "criatividade" e por isto são também res commune.
Esta abundância de bens comuns é
pré-requisito para o progresso científico, tecnológico e para a preservação e
transmissão da cultura de um povo de geração para geração. Este patrimônio
coletivo encontra-se, não obstante, ameaçado. A União Européia adotou em 1996
uma diretiva criando um direito "sui generis", destinado a proteger
os assim chamados bancos de dados. Por este novo direito, tudo aquilo que é
inserido em um banco dados, mesmo que seja parte do bem comum, passa a ser de
propriedade do criador do banco de dados. O único requisito é que tenha havido
investimento "substancial".
Assim, arrisca-se tudo o que é livre a ter
dono. A diretiva define "banco de dados" do modo mais amplo possível,
como sendo qualquer coleção "de trabalhos independentes, de informações ou
de outros materiais, organizados de modo sistemático ou metódico e acessáveis
individualmente por meio eletrônico ou outros meios." Um website, um
CD-Rom, um livro ou mesmo os autos de um processo, todos podem ser vistos como
um "banco de dados", dependendo da interpretação. Mesmo a lei poderia
ter dono. Quem citasse um artigo legal inserido em uma compilação, poderia ter
de pedir licença ao compilador.
A posição da União Européia não só
permaneceu isolada mas sofreu duras críticas. A reação geral nos Estados
Unidos, por exemplo, foi de que a adoção do direito "sui generis" tem
um impacto devastador sobre o domínio público. Isto não bastasse, outras razões
foram levantadas contra tal modificação legislativa: o aumento generalizado de
custos para obtenção de informações, a concentração de conhecimento em torno do
capital, danos à capacidade de pesquisa científica, dentro outros.
Felizmente, o legislador pátrio foi sábio o
bastante para refutar o modelo Europeu. Nossa lei de direitos autorais de 1998
mencionou expressamente que a proteção aos bancos de dados "não abarca os
dados ou materiais em si mesmos". Por isto, não decorre da inclusão em uma
base de dados o surgimento de nenhum direito de propriedade extravagante. Se os
dados são livres antes da inclusão, assim continuam depois.
Entretanto, a idéia da criação de um
direito "sui generis" no Brasil, como o da União Européia, de tempos
em tempos teima em ressuscitar. Vez ou outra o poder judiciário depara-se com a
questão. Nestes momentos, o que está em jogo é o patrimônio de informações
comuns e livres, em oposição a um futuro em que toda informação tem dono. Se o
ar tivesse dono, a vida humana seria uma penúria. Se toda a informação tivesse
dono, também.
* Ronaldo Lemos, Mestre em direito pela
Universidade de Harvard, coordenador de Direito e Tecnologia da Escola de
Direito da Fundação Getúlio Vargas no Rio de Janeiro, organizador do livro
"Conflitos sobre Nomes de Domínio e outras Questões Jurídicas da
Internet". E-mail: rlemos@fgv.br
Retirado de: www.cbeji.com.br