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Por um ensino constitucional







Luís Carlos Valois

Manaus-Am, 22 de fevereiro de 2001

Artigo para o site da Faculdade de Direito da Universidade do Amazonas





Convidado para escrever uma artigo para a página da Faculdade de Direito, primeiramente pensei em escrever sobre alguma discussão doutrinária, mas a natureza do site me fez pensar em expor certas críticas à política com que é tratado o ensino no país. Enfim, para unir as duas coisas, resolvi falar sobre a forma com que normalmente se ensina direito, fazendo da lei, da doutrina e da jurisprudência, principalmente a do Supremo Tribunal Federal, algo incontestável, em detrimento do estudo do direito em si e da sua finalidade maior, a justiça.



O aluno, tão preocupado com provão e coeficiente, acaba perdendo o senso crítico, bitola-se, deixa de raciocinar, impedindo que a faculdade se transforme em um centro de idéias novas e, conseqüentemente, geradora de mudanças e desenvolvimento social. A independência que hoje tanto se defende para os órgãos jurisdicionais, nos combates às súmulas vinculantes e aos atos de arbítrio disfarçados de medidas provisórias, resta seriamente comprometida no momento em que os futuros profissionais daqueles órgãos já nascem limitados à cultura jurídica que se impõe nas escolas.



A faculdade acaba transformando-se em cursinho para aprovação em concursos, enquanto o direito como ciência fica em segundo plano. E para iniciar uma mudança nesse estado de coisas não é necessário nenhuma incursão em subjetividade filosófica ou em ideologia política negadora da lei, pois bastaria uma simples modificação na forma por que atualmente se estuda a Constituição Federal.



Tenho percebido a dificuldade do aluno em conceber a Constituição como lei suprema, acima das outras, e atribuo tal fato à separação do seu estudo do estudo das demais disciplinas. Não deveríamos ensinar um Direito Constitucional separado de um Direito Civil, Processual ou de um Direito Penal, mas sim lecionar um Direito Civil Constitucional, um Direito Penal Constitucional e assim por diante, para que ficasse evidente ao aluno, tanto o vínculo quanto a subsidiariedade das normas.



Um estudante que faz uma prova de Direito Processual Penal, por exemplo, acompanhado apenas do Decreto-Lei 3.689, de outubro de 1941, isto é, do nosso Código de Processo Penal, sem consultar a Constituição Federal, nunca vai imaginar que a prisão cautelar, disciplinada em tantos dispositivos do Decreto-Lei, é uma medida de extrema ratio, apesar de talvez lembrar das aulas de Direito Constitucional, quando estudou sobre uma norma que parecia vaga, ligada a um princípio denominado: "da presunção de inocência".



A nossa Constituição cidadã, com suas normas democráticas, muitas vezes entra em conflito com as leis ordinárias de nosso país, estas feitas às pressas e na onda legiferante da época, razão pela qual só o confronto da Carta Magna com as demais leis já traria para o aluno de direito alguma visão crítica que, no futuro, poderia amadurecer.



O artigo mais importante do curso de direito das faculdades deveria ser o artigo 1º da Carta Constitucional, onde, no parágrafo único, encontramos a disposição de que "todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição", isto é, todo poder, toda lei, todo ato praticado em desacordo com a Constituição é ilegítimo, inconstitucional.



Luiz Flávio Gomes, escrevendo sobre os juízes, questionando o modelo jurídico positivista-legalista e defendendo uma postura constitucionalista, assim se manifesta: "No Estado 'Constitucional e Democrático de Direito', no entanto, a lei nem sempre significa a definitiva palavra em termos de regramento da sociedade. É a Constituição a fonte primeira de todo o Direito. E sempre que a vontade do legislador derivado (ordinário) conflita com a do constituinte (originário), há de prevalecer esta última, que ocupa posição de destacada conforme a doutrina da pirâmide jurídica de Kelsen. Doutrina e jurisprudência, no entanto, em muitas ocasiões, continuam exageradamente apegadas ao positivismo-legalista". ("Justiça e Democracia", vol.2, RT, jul/dez, 1996)



O mestre ressalta ainda que de nada adiantam os textos constitucionais e internacionais, com toda carga liberal e humanitária que ostentam, se os mesmos não se incorporarem à praxe judicial. Pois não é difícil perceber que a dificuldade em modificar a consciência dos juízes e demais operadores do direito deriva da base que estes tiveram, ou deixaram de ter, quando ainda estudantes de direito, nas faculdades.



Para contestar, adquirir uma visão crítica, o aluno deve igualmente deixar de ver os legisladores e doutrinadores como deuses e vê-los como seres humanos passíveis de erros. A mesma imagem deve-se ter do julgador, dos criadores da jurisprudência, pois todos, em suas análises, deixam imbutidos implicitamente os seus posicionamentos políticos, seus recalques e até seus preconceitos.



O respeito que se deve cultivar pelos doutrinadores, legisladores e juízes não pode impedir que seja dada a oportunidade necessária aos alunos para que estes tomem suas próprias conclusões, limitados apenas às técnicas jurídicas, mesmo que deduzam de forma contraria ao posicionamento dominante, pois só assim haverá construção e evolução do saber.



O posicionamento crítico será útil em qualquer atividade que o acadêmico resolva seguir no futuro, seja exercendo independentemente a magistratura ou o Ministério Público, seja no exercício da advocacia, em busca da justiça para o caso concreto, mesmo quando em tese a lei ordinária e a jurisprudência não permitam.



Com relação à jurisprudência especificamente, muitos, até mesmo juízes, ainda pensam que estão vinculados às decisões dos órgãos superiores, principalmente quando se trata de acórdão do Supremo Tribunal Federal, ainda que a súmula vinculante até então não passe de projeto que se modifica permanentemente no Congresso Nacional.



Aqui é bom fazer um parêntese e explicar que se não existe súmula vinculante, muito menos há o acórdão vinculante, seja de que órgão jurisdicional ele se origine, e que quando há uma decisão em algum processo esta transita em julgado sim, mas só entre as partes, nada impedindo que o mesmo direito seja discutido e decidido de forma diferente em outra ação. Por essa singela razão o profissional do direito não pode nascer submisso, nem se submeter à primeira decisão contrária aos seus posicionamentos.



As decisões do Supremo Tribunal Federal têm efeito vinculante apenas quando esse tribunal exerce o controle concentrado de constitucionalidade, o qual se dá por meio de ação direta, sendo a única hipótese em que a ação pode ser proposta contra lei em abstrato, sem a necessidade de um prejuízo concreto, na forma do §2º, do art. 102, da Constituição Federal. Nos demais casos, o Supremo Tribunal Federal age apenas como mais um órgão do Poder Judiciário, por vezes em nível recursal e em outras com competência originária, mas sempre prestando a tutela jurisdicional nos limites da ação e com eficácia inter partes, isto é, apenas para o caso concreto, mesmo que decida incidentalmente questão constitucional.



Dalmo de Abreu Dallari, defendendo a independência do judiciário contra a "ameaça" da súmula vinculante, assim se manifestou: "Obrigar juízes e tribunais a decidirem acolhendo plena e automaticamente as decisões do Supremo Tribunal Federal, mesmo quando estiverem convencidos de que tais decisões foram erradas e injustas, é negar a própria razão de ser do Poder Judiciário". (O Poder dos Juízes, Saraiva, 1996)



Mas os alunos, futuros juízes e promotores, no atual sistema, já nascem para o Direito vinculados às leis ordinárias, aos acórdãos e aos doutrinadores (normalmente nessa ordem), sem capacidade de elaborar suas próprias conclusões acerca da constitucionalidade de determinada norma e tornam-se, não operadores do direito, mas simples imitadores. Ficando a sociedade sempre passível de se ver à mercê de um novo AI-5, reconhecido como válido pelo Supremo, perdendo suas garantias e direitos fundamentais em favor do humor de qualquer déspota.



Luís Carlos Valois













Retirado de: http://www.internext.com.br/valois