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Análise de um caso concreto à luz das teorias de Kelsen e Dworkin





Edson Ferreira de Carvalho*







1. INTRODUÇÃO





O jornal O Rio Branco, da Capital do Estado do Acre, do dia 05.03.99, página 05, estampou em letras garrafais a seguinte manchete: JUIZ MANDA DESPEJAR 200 FAMÍLIAS. A seguir passo a transcrever a reportagem, na íntegra, mas com nomes fictícios, para preservar as identidades das partes e do Juiz.



"Mais de 200 famílias terão que desocupar uma área de terra localizada no bairro Paraíso, na cidade de Rio Branco, invadida há dois anos por pessoas de classe baixa que vieram do meio rural. Além de estarem passando fome, eles não têm onde morar e, a qualquer momento, podem ficar morando na rua.



A área, que encontrava-se abandonada há 10 anos, pertencia ao empresário Paulo Guety, que resolveu entrar na justiça pedindo reintegração de posse e ganhou. O mandado foi expedido pelo Juiz da 9a Vara Civil, Hans Normativino da Silva, ordenando que os Oficiais de Justiça, acompanhados de policiais militares, desocupassem toda a área durante o dia de ontem, mas isso não aconteceu graças ao esforço do presidente do bairro, Pedro Silva. Com isso, ele evitou um possível conflito entre a polícia e os sem-tetos, já que os invasores estavam revoltados quando souberam que a casa construída com muita dificuldade ia ser destruída.



Pedro disse que quando soube que aquelas 200 famílias iam ficar na rua foi até o gabinete do juiz Normativino, localizado no prédio do Fórum, situado no centro da cidade, e pediu prazo de 15 dias para tentar uma negociação com o dono da terra para que o problema fosse resolvido sem ninguém sair prejudicado.



Antes, o presidente do bairro já tinha se reunido com o empresário Paulo Guety para que loteasse os terrenos para vender aos sem-tetos. "Ele concordou, mas o preço que Paulo queria por cada lote varia de dois a seis mil reais e ninguém tem esse dinheiro, até porque muitos pais de família encontram-se desempregados e não têm condições nem de dar de comer a seus filhos", disse o presidente.



Por volta do meio-dia de ontem, um oficial de Justiça foi até o local da invasão para cumprir o que estava no papel, ou seja, retirar os invasores, mas como o juiz prorrogou o prazo por mais 15 dias, ninguém foi despejado. Agora, dentro do prazo estipulado, se os sem-tetos e o proprietário da terra não chegarem a um acordo, o mandado de reintegração de posse será cumprido e a miséria vai se alastrar mais ainda.



* Prof. Doutor, Universidade Federal do Acre, 69915-900 - Rio Branco -AC





No meio de 200 famílias, relatar o drama de cada um seria uma tarefa reveladora de dor, doença, abandono, fome, desemprego, violência, infelicidade, desesperança e ausência do Estado. A seguir o relato do jornalista, que descreve a situação de uma família:



O diarista Mansueto Lopes, 62 anos, e sua esposa Maria Lopes, mãe de 14 filhos, sendo 12 menores de idade, moram num barraco construído com madeira e lona, vão ficar na rua nos próximos dias, caso ninguém tome providência. Essa família residia num seringal situado no município de Porto Real, mas segundo Mansueto, para ficar mais próximo do filho mais velho que encontra-se na Colônia Penal, eles resolveram vir para Rio Branco, onde se instalaram na invasão do Bairro Paraíso.



Eles pensavam que as condições de vida por aqui era melhor que no seringal, mas se enganaram. Desde quando chegaram em Rio Branco, essa família composta por 16 pessoas passa necessidade, ou melhor, vive na miséria sem receber ajuda de ninguém, a não ser de alguns vizinhos.



Há muito tempo as crianças não sabem o que é pão e nem leite, muitas vezes dormem sem comer, porque o pai está desempregado e só ganha dinheiro quando limpa quintal, mesmo assim, o que recebe é muito pouco para sustentar os filhos.



Ontem por volta das 10 hs da manhã, na casa dessa família só tinha uma panela com arroz, alimento que serviu para matar a fome de todos eles na hora do almoço, isso por que um vizinho deu. "Na noite anterior, todos nós dormimos sem jantar porque não tinha nada para comer, pelo jeito, hoje vai acontecer o mesmo por que esse arroz só dá para o almoço", disse a mãe.



Além de passarem fome, nenhum dos 14 filhos de Maria, estuda. "Eu não tenho condições de comer, quanto mais colocá-los na escola, porque lá a diretora vai exigir farda e material e ninguém tem como comprar", explicou a mãe.



Além de passar fome todos os dias, essa família está na lista das pessoas que serão despejadas pela Justiça dentro dos próximos dias, caso não haja negociação com o proprietário da terra. A verdade é que, se hoje esse terreno custasse cem reais, Mansueto, chefe de uma família de 16 pessoas, não teria condições de comprar, quanto mais dois mil reais, o preço que o dono da terra está pedindo. "Se ele destruir nosso barraco, o jeito é ir para debaixo da ponte com minha mulher e os filhos", lamentou Mansueto.





2. AS TEORIAS DE KELSEN E DWORKIN ? EXISTE UMA ÚNICA

SOLUÇÃO JUSTA OU CORRETA ?





Antes de analisar o caso concreto à luz das teorias de Kelsen e Dworkin, faz-se necessário uma breve descrição dos fundamentos das idéias dos autores. Não há pretensão de se fazer estudo aprofundado do tema, mas apenas dar fundamentação à discussão do caso em tela.



Kelsen foi o sistematizador máximo do positivismo legalista. A teoria do direito em Kelsen é a teoria do direito positivo. Sua preocupação foi criar uma ciência que tivesse por objeto um direito puro, reduzido à pura expressão normativa, despido das dimensões definidas como axiológicas ou fáticas. Nesse sentido, toda consideração acerca de questões exteriores às fronteiras perfeitamente definidas pelas normas jurídicas positivadas devem ser ignoradas pelo jurista, sob pena de avançar em domínios estrangeiros do saber jurídico, prejudicando ou pondo a perder a própria autonomia da ciência do direito.



A fundamentação feita a seguir, encontra-se no capítulo sobre interpretação da Teoria Pura do Direito de Kelsen (1994). Para Kelsen, quando o direito é aplicado por um órgão jurídico, este necessita fixar o sentido das normas que vai aplicar, ou seja, tem de interpretar estas normas. A interpretação é, portanto, uma operação mental que acompanha o processo da aplicação do Direito no seu progredir de um escalão superior para uma escalão inferior. Na hipótese de interpretação da lei, há que se responder à questão de se saber qual o conteúdo que se dará à norma individual de uma sentença judicial, norma essa a deduzir da norma geral da lei na sua aplicação a um caso concreto. Nesse processo há também uma interpretação da Constituição, na medida em que de igual modo se trate de aplicar esta a um escalão inferior.



Ao ter que se interpretar a norma na sua aplicação, Kelsen deixou a porta aberta para várias concepções de direito e justiça, e, consequentemente, para existência de uma situação de pluralidade jurídica. A interpretação realizada pelo órgão aplicador do Direito distingue três indeterminações do ato de aplicação do Direito, que a seguir passo a descrever:





2.1. RELATIVA INDETERMINAÇÃO DO ATO DE APLICAÇÃO DO

DIREITO





A relação entre um escalão superior e um escalão inferior da ordem jurídica, como a relação entre Constituição e lei, ou lei e sentença judicial, é uma relação de determinação ou vinculação. A norma do escalão superior regula o ato através do qual é produzida a norma do escalão inferior, ou o ato de execução, quando já deste apenas se trata. Ela determina não só o processo em que a norma inferior ou o ato de execução são postos, mas também, eventualmente, o conteúdo da norma a estabelecer ou ato de execução a realizar.



Esta determinação nunca é, porém, completa. A norma do escalão superior não pode vincular em todos os detalhes o ato através do qual é aplicada. Tem sempre de ficar uma margem, ora maior ora menor, de livre apreciação, de tal forma que a norma do escalão superior tem sempre, em relação ao ato de produção normativa ou de execução que a aplica, o caráter de um quadro ou moldura a preencher por este ato. Mesmo uma ordem o mais pormenorizada possível tem de deixar àquele que a cumpre ou executa uma pluralidade de determinações a fazer.



Para exemplificar esta relativa indeterminação do ato de aplicação da norma, se o juiz, no caso em tela, emite um comando para que a polícia cumpra o mandado de reintegração de posse e derrube todas os casebres da invasão, o comandante da operação terá de decidir, segundo o seu próprio critério, o momento, por onde começar e como fazê-lo, decisões essas que dependem de circunstâncias externas que o juiz não previu e, em grande parte, nem sequer podia prever, como a forma de reação dos despejados, que poderá ser pacífica ou violenta, cujo resultado será imprevisível. Assim, todo ato jurídico de implementação de uma norma, seja ele de criação jurídica ou de pura execução, é determinado apenas em parte por essa norma e, em todo o demais, permanece indeterminado. Essa indeterminação pode dizer respeito tanto ao fato material condicionante como também à conseqüência condicionada.





2.2. INDETERMINAÇÃO INTENCIONAL DO ATO DE APLICAÇÃO DO

DIREITO





Como admitiu Kelsen, todo ato jurídico em que o Direito é aplicado, quer seja um ato de criação jurídica quer seja um ato de pura execução, é, em parte, determinado pelo Direito e, em parte, indeterminado. Esta indeterminação pode dizer respeito tanto ao fato (pressuposto) condicionante como à conseqüência condicionada. A indeterminação pode mesmo ser intencional, quer dizer, estar na intenção do órgão que estabeleceu a norma a aplicar. Assim, o estabelecimento ou fixação de uma norma simplesmente geral opera-se sempre - em correspondência com a natureza desta norma geral - sob o pressuposto de que a norma individual que da sua aplicação continua o processo de determinação que constitui o sentido da seriação escalonada ou gradual das normas jurídicas.



Por exemplo, a lei penal prevê, para a hipótese de um determinado delito, uma pena pecuniária (multa) ou uma pena de prisão, e deixa ao juiz a faculdade de, no caso concreto, se decidir por uma ou outra, determinar a medida das mesmas - podendo, para esta determinação, ser fixado na própria lei um limite máximo e um mínimo.





2.3. INDETERMINAÇÃO NÃO-INTENCIONAL DO ATO DE APLICAÇÃO

DO DIREITO





A indeterminação do ato jurídico pode, também, ser conseqüência não intencional da própria constituição da norma jurídica que deve ser aplicada a determinado fato. Aqui tem-se a pluralidade de significações de uma palavra ou de uma seqüência de palavras em que a norma se exprime. O sentido verbal da norma não é unívoco, o órgão que tem de aplicar a norma encontra-se perante várias significações possíveis. A mesma situação se apresenta quando o que executa a norma crê poder presumir que entre a expressão verbal da norma e a vontade da autoridade legisladora, que se há de exprimir através daquela expressão verbal, existe uma discrepância, podendo em tal caso deixar por completo de lado a resposta à questão de saber por que modo aquela vontade pode ser determinada. De todo o modo, tem de aceitar-se como possível investigá-la a partir de outras fontes que não a expressão verbal da própria norma, na medida em que possa presumir-se que esta não corresponde à vontade de quem estabeleceu a norma.

A ambigüidade das palavras e frases usadas na norma, o sentido lingüístico múltiplo da norma possibilita várias leituras. Além disso, pode-se acrescentar que fatores inerentes ao intérprete, como raça, classe social, religiosidade, tendência política, momento histórico e origem social podem influenciar a leitura da norma.



Ocorre a mesma situação quando o implementador da norma acredita poder pressupor a existência de discrepância entre a expressão lingüística da norma e a vontade da autoridade que a editou, conquanto a questão de se saber como a vontade da autoridade deve ser desvelada possa muito bem ser deixada complemente em aberto. A ciência do Direito reconhece que a chamada vontade do legislador ou intenção das partes que estipulam um negócio jurídico pode não corresponder às palavras que são expressas na lei ou no negócio jurídico. A discrepância entre vontade e expressão pode ser completa, mas também pode ser apenas parcial. Este último caso apresenta-se quando a vontade do legislador ou a intenção das partes correspondem pelo menos a uma das várias significações que a expressão verbal da norma veicula.



A indeterminação do ato jurídico pode ser também a conseqüência do fato de duas normas, que pretendem valer simultaneamente - porque, v. g., estão contidas numa mesma lei, ou na Constituição e numa lei -, contradizem total ou parcialmente.



No caso concreto, percebe-se tal indeterminação entre o art. 524 do CC (que assegura ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus bens e de reavê-los do poder de quem que injustamente os possua) e os incisos XXIII (a propriedade atenderá sua função social) e XXII do art. 5o (é garantido o direito de propriedade) e o art. 226, caput (a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado) e o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1°, III), ambos da Lex fundamentalis.



Para KELSEN, todos esses casos de indeterminação, intencional ou não, do escalão inferior, oferecem várias possibilidades à aplicação jurídica. O Direito a aplicar forma, em todas estas hipótese, uma moldura dentro da qual existem várias possibilidades de aplicação, pelo que é conforme ao Direito todo ato que se mantenha dentro deste quadro ou moldura, que preencha esta moldura em qualquer sentido possível.



Kelsen entende a interpretação como a fixação por via cogniscitiva do sentido do objeto a interpretar, o resultado de uma interpretação jurídica somente pode ser a fixação da moldura que representa o Direito a interpretar e, consequentemente, o conhecimento das várias possibilidades que dentro dessa moldura existem. Sendo, assim a interpretação de uma lei não deve necessariamente, conduzir a uma única solução como sendo a única correta, mas possivelmente a várias soluções que - na medida em que apenas sejam aferidas pela lei a aplicar - têm igual valor, se bem que apenas uma delas se torne Direito positivo no ato do órgão aplicador do Direito - no ato do tribunal, especialmente. Dizer que uma sentença judicial é fundada na lei, não significa, na verdade, senão que ela se contém dentro da moldura ou quadro que a lei representa - não significa que ela é a norma individual, mas apenas que é uma das normas individuais que podem ser produzida dentro da moldura da norma geral.



Kelsen critica a Ciência Jurídica tradicional por esperar que a interpretação deveria desenvolver um método que tornasse possível preencher ajustadamente a moldura prefixada. A teoria usual da interpretação quer fazer crer que a lei, aplicada ao caso concreto, poderia fornecer em todas hipóteses, apenas uma única solução correta (ajustada), e que a justeza (correção) jurídico-positiva desta decisão é fundamentada na própria lei. Configura o processo desta interpretação como se tratasse tão-somente de um ato intelectual de clarificação da compreensão, como se o órgão aplicador do Direito apenas tivesse que pôr em ação o seu entendimento (razão), mas não a sua vontade, e como se, através de uma pura atividade de intelecção, pudesse relizar-se, enter as possibilidades que se apresentam, uma escolha que correspondesse ao Direito positivo, uma escolha correta (justa) no sentido do Direito positivo.



Para Kelsen, do ponto de vista orientado para o Direito positivo, não há qualquer critério com base no qual uma das possibilidades inscritas na moldura do Direito a aplicar possa ser preferida à outra. Não há absolutamente qualquer método - capaz de ser classificado como de Direito positivo - segundo o qual, das várias significações verbais de uma norma, apenas uma possa ser destacada como correta - desde que, naturalmente, se trate de várias significações possíveis : possíveis no confronto de todas as outras normas da lei ou da ordem jurídica. Assim, todos os métodos de interpretação até o presente elaborados conduzem sempre a um resultado apenas possível, nunca a um resultado que seja o único correto.



Assim, para Kelsen, não existe a solução correta dentro das várias possibilidades existentes na moldura do direito do caso concreto. Qualquer decisão tomada dentro das possibilidades encontradas teriam valor absolutamente igual. Reintegrar liminarmente a posse da área e lançar inúmeras famílias ao relento, desapropriar a área por interesse social, quanto obrigar o Estado a respeitar a dignidade humana e proteger as famílias teriam o mesmo valor jurídico.



A necessidade da interpretação decorre precisamente do fato de a norma (ou o sistema de normas) a ser aplicada deixar várias possibilidades em aberto, o que efetivamente eqüivale a dizer que nem a norma nem o sistema de normas fornecem uma decisão sobre qual dos interesses envolvidos é o de maior valor. Essa decisão, essa gradação dos interesses, é, ao contrário, deixada para um futuro ato de criação normativa - para a decisão judicial, por exemplo.



Segundo Kelsen, a questão de saber qual é, entre as possibilidades que se apresentam na moldura do Direito a aplicar, a correta, não é sequer - segundo o próprio pressuposto de que se parte - uma questão de conhecimento dirigido ao Direito positivo, não é um problema da teoria do Direito, mas um problema de política do Direito. A tarefa que consiste em obter, a partir da lei, a única sentença justa (certa) ou o único ato administrativo correto é, no essencial, idêntica à tarefa de quem se proponha, nos quadros da Constituição, criar as únicas leis justas (certas). Assim como da Constituição, através de interpretação, não podemos extrair as únicas leis corretas, tampouco podemos, a partir da lei, por interpretação, obter as únicas sentenças corretas.



Kelsen admite que pela via da interpretação autêntica, quer dizer, da interpretação de uma norma pelo órgão jurídico que a tem de aplicar, não somente se realiza uma das possibilidades reveladas pela interpretação cognoscitiva da mesma norma, como também se pode produzir uma norma que se situe completamente fora da moldura que a norma a aplicar representa. Através de uma interpretação autêntica deste tipo pode criar-se Direito, não só no caso em que a interpretação tem caráter geral, em que, portanto, existe interpretação autêntica no sentido usual da palavra, mas também no caso em que é produzida uma norma jurídica individual através de um órgão aplicador do Direito, desde que o ato deste órgão já não possa ser anulado, desde que ele tenha transitado em julgado. É fato bem conhecido que, pela via de uma interpretação autêntica deste tipo, é muitas vezes criado Direito novo - especialmente pelos tribunais de última instância.



Há que se concordar com Kelsen quando afirma que obter a única sentença correta e criar a única lei justa, seguramente, está longe de ser alcançado pelo homem, em razão da própria condição humana de incompletude e de constante mutabilidade sócio-econômica, mas, por outro lado, não se pode discordar que dentro de uma situação concreta, considerando o projeto de sociedade previsto na Constituição pode-se, perfeitamente, alcançar, dentro da moldura do direito, e as vezes até fora dela, uma decisão que seja a melhor possível ou mais justa possível dentro do contexto histórico e sócio-econômico. Esse é o pensamento de Dworkin, a seguir explicitado, com base em CHUERI (1995).



A tese dos direitos de Dwokin propugna que os indivíduos podem ter outros direitos jurídicos além daqueles criados, explicitamente, pela legislação (por decisão política) ou prática social (costumes), ou, ainda por decisão judicial (pelo precedente), i. é., direitos políticos específicos de uma decisão específica, ainda que se trate de um caso controverso e difícil. Esta tese foi admitida por Kelsen, quando afirmou que na interpretação feita pelo órgão aplicador do direito pode se reconhecer ou criar direito que situe completamente fora da moldura do direito.



Contrariamente a Kelsen que não admitia a existência da resposta certa, Dworkin elaborou a teoria da resposta certa, segundo a qual toda pretensão jurídica corresponde uma resposta original, assentada na idéia de direitos, cujos princípios as regras jurídicas positivas agasalham, não havendo espaço para a sua criação, para o ato discricionário do juiz. Mas, afinal, o que é a resposta certa ? Para responder a esta questão Dworkin lança mão da analogia do sistema jurídico com o exercício literário. Sua idéia parte da Corrente do direito (chain of law) que, analogamente ao exercício literário de construção de um romance, pretende edificar uma decisão jurídica. Assim, os juízes deveriam encarar a sua decisão ( ato de criação) como um capítulo a mais de uma história já iniciada por outros e, portanto, levar em conta o que já foi escrito (ato de interpretação), no sentido de não romper com a unidade e coerência da história. Cada juiz (ou escritor) deve fazer da sua decisão (ou texto), naquele momento, a (ou o) melhor possível.



A proposta de Dworkin do direito como integridade (não tem pretensão de uma teoria geral), embora não seja conclusiva, apresenta-se como a melhor concepção interpretativa do direito. Estão em si associadas a visão para o passado do convencionalismo e a visão para o futuro do pragmatismo, na perspectiva de uma lente que, embora postada no presente, focaliza o passado para a construção de uma imagem que se projeta para o futuro. Esse dinamismo faz com que o direito se recicle constantemente, revigorando sua estrutura ante a atrofia ameaçadora dos esqueletos esclerosados do positivismo e do utilitarismo que lhe oferecem uma frágil, quase inepta, sustentação. A concepção do direito como integridade se estrutura sobre uma conexão racional (hermenêutico-crítica) entre o direito e a moral.



Dworkin sustenta a tese da resposta certa, segundo a qual a má compreensão positivista faz com que o efeito de uma regra sobre o direito seja determinado pelo significado das palavras. Desta forma, caso se trate de palavras cujo sentido é vago, o impacto da regra sobre o direito torna-se indeterminado. Entretanto, através da interpretação poder-se-ia superar a indeterminação ou vagueza que se apresentam nas regras, na medida em que se buscariam, a partir das mesmas, os princípios ou políticas que melhor agasalhassem as pretensões das partes. Dworkin sustenta que mesmo através dos mecanismos utilizados pelo positivismo, como a interpretação no seu uso corrente (exegese), poderia o juiz chegar à melhor justificação política possível, à decisão justa, à resposta certa, sem que para isso, tivesse que criar um novo direito.



O jusfilósofo norteamericano Ronald Dworkin objetiva, em seus escritos, fundamentalmente, mostrar as insuficiências seja do positivismo seja do utilitarismo. Para tanto, vale-se, sobretudo, da diferença de caráter lógico, entre princípio e regra. O direito é, pois, um sistema de regras e princípios. Em muitos casos, denominados hard cases, quando os juristas debatem e decidem em termos de direitos e obrigações jurídicas, eles utilizam standards que não funcionam como regras, mas trabalham com princípios, políticas e outros gêneros de standards. Princípios que podem ser "princípios", enquanto exigências de justiça, de equidade ou de alguma dimensão da moral, e "política", que indicam um objetivo a ser alcançado.



Ao afirmar que os juristas empregam princípios e não regras admite-se que são duas espécies de norma, cuja diferença é de caráter lógico. As regras, ao contrário dos princípios, indicam conseqüências jurídicas que se seguem automaticamente quando ocorrem as condições previstas, são aplicáveis na forma do tudo ou nada. Um princípio estabelece uma razão (fundamento) que impele o intérprete numa direção, mas que não reclama uma decisão específica, única. De outro lado, os princípios possuem uma dimensão de peso ou de importância que as regras não têm. Quando os princípios conflitam, para resolvê-lo, é necessário ter em consideração o peso relativo de cada um.



Três questões importantes vêm à tona quando da ocorrência de um litígio : O que aconteceu ? (questões de fato ), Qual o Direito pertinente ? (questões de direito; lugar das proposições jurídicas) e, finalmente, É tal direito justo ou não ? Para Dworkin deve-se reconhecer na argumentação jurídica em que se disputam direitos e obrigações jurídicas, a existência de pautas que funcionam como princípios ou políticas, e não como regras jurídicas no sentido que o positivismo (seja o institucionalista de HART ou o de estatuição de Kelsen) lhes atribui.



Os princípios são conjuntos de normas outras (que não regras jurídicas), incluída aí a noção política, a qual diz respeito a um tipo de norma cujo objetivo é o bem-estar geral da comunidade, no sentido do seu aperfeiçoamento econômico, político e social. O termo princípio se opõe a noção de política ao dizer respeito a um tipo de norma cuja observação é um requisito de justiça ou equidade, ou ainda, de alguma outra dimensão da moral. Exemplificando, a determinação segundo a qual ninguém pode obter vantagem através de seu próprio erro, é uma norma que funciona como um princípio, enquanto a determinação segundo a qual acidentes de trânsito devem diminuir, é uma norma que funciona como política..



A mencionada diferença entre princípios e políticas constitui o eixo da teoria da adjudication de Dworkin. Há assim, dois níveis em que a noção de princípio atua. Internamente em oposição à de política, externamente, em oposição à regra jurídica. Em oposição à política, tem-se que toda decisão jurídica cujo argumento seja baseado em princípios atenderá a um direito individual; entretanto, se o mesmo for baseado em políticas, atenderá a um fim coletivo, tendo em vista o bem-estar geral da comunidade. Com isto, Dworkin visa rebater as críticas contra a originalidade das decisões judicias, por quanto elas atingem muito mais as decisões baseadas em políticas do que em princípios, pois nestas a dimensão política que se lhe atribui não redunda em defesa do bem comum, da felicidade geral, mas no enforcement dos direitos individuais.



A teoria de Dworkin está, pois, em perfeita consonância com a jurisprudência atual que se vincula à teoria e à filosofia moral, que enfatiza a questão dos princípios e sua ligação com a prática jurídica, a relação entre ética e direito, vinculação que estabelece uma ponte entre uma teoria jurídica e a teoria moral, a justificar uma coerente tomada de decisão. Como diz, Vera Karam, Dworkin escancara a ligação entre a filosofia, o direito e a política ruma à configuração de uma opção epistemológica hermenêutica-crítica.



O monismo de origem Kelsiana concebe o direito como um sistema normativo fechado, logicamente hierarquizado de forma dedutiva e posto pelo Estado. Responde historicamente à predominância do Estado na sociedade contemporânea desenvolvida, e transforma direito e justiça em direito estatal e justiça estatal. O positivismo parte do pressuposto de que o Direito se expressa na norma, chegando a casos em que o Direito se vê reduzido ao ordenamento jurídico imposto pelo Estado. Nesta vertente a Ciência do Direito (dogmática) limita-se a ordenar e sistematizar a norma estatal, sem discuti-la ou julgá-la em referência a valores ou a realidade social. Estes estariam relegados à disciplinas outras que não a dogmática, ficando esta voltada à construção de um sistema jurídico baseado na preocupação com a unidade e fundamentação dos conceitos jurídicos. O positivismo normativista de Kelsen considera o Estado como fonte central de todo o direito e a lei como sua única expressão, formando um sistema fechado e formalmente coerente, cuja pretensão de completude despreza como metajurídica as indagações de natureza social, política e econômica (FARIA, 1990).



Todavia, Kelsen põe em cheque sua própria teoria ao escrever o Capítulo VIII, sobre interpretação, em sua obra Teoria Pura do Direito. Kelsen admite a convivência contraditória, por vezes consensual e por vezes conflitante, entre as várias possibilidades de aplicação do direito observáveis dentro da norma, entre leis e entre lei e Constituição. Na verdade, Kelsen admitiu que existe na moldura do Direito diversas possibilidades de aplicação da norma, que podem ser contrárias, paralelas ou complementares ao direito estatal. Inclusive admite decisões fora da moldura do direito.

DWORKIN (1998), se opõe a idéia do direito enquanto sistema fechado e autoregulado (sua concepção é de um sistema aberto), constituído por um número fixo de regras jurídicas positivas. Não obstante possa ser ele constituído por um número fixo de normas, dentre elas algumas funcionam como princípios, outras como regras jurídicas positivas. Nesse sentido, as regras jurídicas constituem-se num valor complementar ao estabelecimento da igualdade enquanto ideal político fundamental à democracia.



Dworkin admite, entretanto, que a diferença entre uma regra e um princípio nem sempre é clara e que podem ter o mesmo papel, sendo a dessemelhança apenas uma questão de forma. Isto se deve a presença de termos, também denominados usualmente conceitos jurídicos indeterminados, como razoável, negligente, injusto, significativo, que fazem a previsão normativa funcionar logicamente como uma regra e substancialmente como um princípio.



Para Dworkin, as decisões judiciais devem ser geradas por princípios, uma vez que tribunal e legislativo não se confundem: programas legislativos podem ser razoável e corretamente justificados por políticas. A questão da originalidade judicial evidencia-se nos casos em que as regras existentes parecem indeterminadas, ambíguas, ou, mesmo, e, que nenhuma regra, explicitamente, parece disponível; isto é, nos chamados casos difíceis ou contraditórios onde, tradicionalmente, opera-se a discricionariedade do juiz.



Dworkin altera a cumplicidade positivista entre originalidade e discricionaridade, tornando-as antitéticas. Sua argumentação apoia-se na sua tese dos direitos, qual seja, a de que as decisões judiciais, especialmente nos casos cíveis e nos casos controversos, são - e deveriam ser - geradas por princípios. Essa tese assevera - duplamente - na prática a dimensão política do jurídico, na medida em que joga para as decisões judiciais o fazer valer ou fazer cumprir dos direitos políticos existentes: primeiro, ao lançar mão de um princípio, de um objetivo político individualizado, identificando através do mesmo a existência de um direito. Segundo, ao articular este direito pré-existente com a história institucional, com os precedentes. Assim, impera a moralidade pessoal do juiz - enquanto membro de uma instituição que comporta uma teoria política - através da sua argumentação baseada em princípios e a moralidade institucional contida no precedente. Ambas constituem-se em ingredientes indispensáveis para o julgamento político dos juízes.



A articulação entre os princípios e as decisões políticas passadas requer a existência de coerência no sentido da aplicação do princípio, não meramente na aplicação de particular norma em nome daquele princípio. A sua não ocorrência onera a estrutura da decisão, em relação a refutabilidade. Justifica-se, por isso, a fragilidade das decisões apoiadas em políticas onde não se cobra tal coerência, uma vez que políticas se alteram na proporção dos ânimos que as conduzem.



A tese dos direitos distingue, objetivamente, direitos individuais e fins sociais, bem como a dimensão concreta daqueles, na qual reside a sua força argumentativa. Desta forma, os direitos individuais consistem em objetivos políticos individualizados, enquanto os fins sociais consistem em objetivos políticos não individualizados. A partir da distinção entre princípios e políticas tem-se uma descrição de como os juízes decidem um caso e a prescrição de como eles deveriam decidir. Constitui-se a tese dos direitos uma técnica de decisão judicial, cujo intuito é minorar a ocorrência de decisões falaciosas que, por fim, ganham a qualidade de jurídicas, consagrando-se institucionalmente.

O positivismo, genericamente, gravita em torno da noção de regra jurídica. Ela constitui o padrão de avaliação de condutas, num fator de motivação de comportamento. Este modelo de sistema de regras assentado em um teste fundamental, obscurece as infinitas implicações do direito que escapam a sua significação em termos exclusivos de uma regra de curta dimensão.



Quando ocorre dos princípios conflitarem é a teoria política que vai ser decisiva ao sugerir que princípio se ajusta a um sentido mais agudo de justiça no qual seguirá, em conseqüência, a interpretação do juiz. O papel da teoria política na interpretação suscita posicionamentos tanto radicais quanto conservadores em relação aos direitos, aos que são e aos que deveriam ser. Mesmo os julgadores que, em nome de uma interpretação que privilegia a intenção do autor, negam o vínculo com a teoria política, acabam por escamotear as suas próprias convicções políticas. A teoria política é o pólo epistêmico da atitude interpretativa dos juízes donde se inferem valorações, ou seja, decisões cuja estrutura argumentativa é moralmente significativa. A teoria limita o julgamento interpretativo ao traçar uma linha divisória entre o interpretar e o inventar: entre o racional e o metafísico.





3. DESENHANDO UMA MOLDURA DO DIREITO PARA O CASO





Sem fazer uma análise mais profunda, procurou-se visualizar as seguintes possíveis decisões judiciais deste caso, dentro do Direito brasileiro, incluindo a tomada pelo juiz no caso em tela. Qual delas é mais consentânea com as teorias de Kelsen e Dworkin ?





3.1. INTENTADA A AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE, FACE A

PROVA PRODUZIDA, O JUIZ DE PRONTO DEFERE A LIMINAR





Considerando-se que a Constituição Federal garante a inviolabilidade da propriedade (art. 5°, caput) e o direito de propriedade (art. 5°, XXII), não há o que se discutir.



Estando a petição inicial devidamente instruída, o juiz deferirá, sem ouvir o réu, a expedição do mandado liminar de reintegração, assim propugna o art. 928 do CPC. Requisitada a força policial para cumprir o mandado de reintegração, todas as casas poderão ser destruídas, lançando mulheres, homens, crianças e idosos ao relento. Considerando cinco pessoas por família ter-se-ia, aproximadamente, 1000 pessoas desabrigadas.



Neste caso o juiz decide aplicar substancialmente o art. 524 do CC, mesmo que para isso tenha que arcar com algumas ilegalidades processuais menores, incorrer em perda de legitimidade e agravar o conflito social. Para a doutrina jurídica dominante no Brasil, existe apenas uma forma de equacionamento desse tipo de conflito, definido pelo CPC: as ações possessórias, adequadas quando os conflitos se davam entre indivíduos. Nos casos de conflitos coletivos como este inexistem normas legais que regulamentem com precisão os direitos e obrigações das partes, as fases, instâncias e prazos de negociação.



Dispõe o art. 524 do CC que : A lei assegura ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus bens, e de reavê-los do poder de quem quer que injustamente os possua.





3.2. PREOCUPADO COM A QUESTÃO SOCIAL, PORQUE NA ÁREA

HAVIA MUITOS IDOSOS E CRIANÇAS, O JUIZ ACEITA PROPOSTA DE

NEGOCIAÇÃO, POSTERGANDO A DECISÃO





Considerando que a dignidade da pessoa constitui fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1°, III), cujos objetivos fundamentais são a construção de uma sociedade livre e solidária (art. 3°, I), a erradicação da pobreza e da marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais (art. 3°, III) e ainda que a propriedade deve atender sua função social (art. 5°, XXIII), o juiz não concede de pronto a liminar.



Se o juiz considerar que a lei tem se mostrado insuficiente, poderá assumir o papel de mediador, negociando a solução do litígio. Intentada ação de reintegração de posse, onde a liminar poderia de pronto ser deferida, face a prova produzida, o juiz poderá ouvir o curador de menores, em razão do elevado número de crianças existentes na invasão.



Por proposta do promotor, pode-se iniciar a negociação. Não seria justo que o terreno que se encontrava inutilizado há 10 anos, continuasse ocioso, como não seria, também, que as famílias ficassem desabrigadas. Caso estivem empregados, poderiam as famílias adquirir cada uma seu lote, desde que acertassem o preço e as condições de pagamento e, de outra parte, obtivessem financiamento. Todavia, os invasores, em sua quase total maioria, não podem adquirir os lotes, nem sequer locá-los, pois quase todos estão desempregados ou sub-empregados. Muito menos poderiam pleitear financiamento, pois carecedores de qualquer fonte de renda e de bens não teriam como garantir o empréstimo.



Neste caso o juiz decide não aplicar uma norma legal que agravará o conflito social, buscando soluções mais justas e mais humanas fora da prescrição normativa. O que torna o problema mais difícil de resolver, uma vez que a solução passa a ser política. Percebe-se que a lei não traz solução para os problemas que se avolumaram e tornaram-se coletivos. Se por um lado a Constituição protege o direito de propriedade, por outro promete proteção aos não-proprietários, através da construção de uma sociedade livre de pobreza e de marginalização.













3.3. O JUIZ INTERPRETANDO A CONSTITUIÇÃO DETERMINA QUE OS ENTES PÚBLICOS PROVIDENCIEM LOTEAMENTO DE ÁREA DISPONÍVEL E CONSTRUA CASAS, ESCOLAS E INFRA-ESTRUTURA NECESSÁRIA, PARA ONDE OS INVASORES SERIAM TRANSFERIDOS





Essa opção encontra-se fora da moldura do Direito individualista do Código Civil. Embora o Executivo (Federal, Estadual ou Municipal) não fosse considerado parte legítima, não obstante o caráter coletivo do caso faz explodir os limites legais formais que regem a atuação do Executivo.



A participação do Executivo pode se dar como mediador entre proprietário, invasores e Judiciário, buscando chegar, se possível legalmente, e pela conciliação, a um equacionamento consensual do conflito, admitindo implicitamente ao menos outra concepção do direito de propriedade. Mas, também, poderia ser considerado parte, uma vez que suas políticas podem ser consideradas responsáveis pelo aumento dos sem-trabalhos e sem-tetos, ademais os entes estatais descumprem a Constituição ao não promover programas de construção de moradia.



Neste caso o aplicador da lei e intérprete da Constituição entende que deve prevalecer o princípio da dignidade humana (art. 1°, III) e construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3°, I) sobre o direito de propriedade e que o Estado tem o dever especial de proteger a família, base da sociedade.



Outra alternativa que não se encontra dentro da moldura do Direito tradicional seria o juiz chamar o Executivo a sua responsabilidade legal, obrigando a União, o Estado ou o Município a providenciar loteamento de área disponível destes entes e construir casas, esgotos e infra-estrutura necessária para onde os invasores seriam transferidos. É assim que determina o art. 23, IX, da CF : é de competência comum da União, dos Estados, do DF e dos Municípios promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico.



Esta solução seria a mais justa e diante do caso, talvez a que mais atendesse a diretiva constitucional, de que ao Estado cabe promover programas de construção de moradias. Assim como o Executivo criou o PROER para salvar Bancos e banqueiros, seria exigido do Estado, ao menos, moradia digna para estas famílias que se encontram nas mais indignas condições de vida.





3.4. DESAPROPRIAÇÃO DA ÁREA INVADIDA





Como os invasores são despossuídos de qualquer margem de negociação, não restaria outra alternativa que determinar ao Executivo a desapropriação da área, indenizando o proprietário e ceder aos invasores os lotes.



O art. 182 da CF dispõe que a política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes. O mesmo artigo dispõe que as desapropriações de imóveis urbanos serão feitas com prévia e justa indenização em dinheiro (§ 3°) ou com pagamento mediante títulos da dívida pública aprovada pelo Senado Federal no caso do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado (§ 4°).



Ao aplicar a ordem legal civilista de hoje, o Judiciário teria necessidade de convocar a força policial para expulsar nestes tipos de invasões milhares de famílias em todo o Brasil, com grandes riscos de se promover um banho de sangue, como ocorreu em Eldorado dos Carajás, assim, provavelmente, em vez de impedir a generalização do conflito, acabaria por disseminá-lo, o que acabaria por explicitar para toda a sociedade a crise de legitimidade da ordem legal e do regime que sustenta.





3. 5. VERIFICADO A PRECARIEDADE DO TÍTULO DE PROPRIEDADE DA ÁREA, O JUIZ MANTÉM OS INVASORES NA POSSE





Esta é uma possibilidade que pode ocorrer, principalmente, na Região Norte do Brasil.





4. DISCUSSÃO





A atuação do Judiciário brasileiro se caracteriza por crescente incerteza sobre o conteúdo das decisões. O grau de incerteza há muito ultrapassou a ambigüidade tolerável da lei que baliza a interpretação judicial. A possibilidade de não-decisão e de decisões contra legem ou para legem destroem a ambigüidade tolerável. No caso concreto, existem inúmeras possibilidades de aplicação da norma. Percebe-se pelo número de possibilidades, que a lei civilista tem se mostrado insuficiente, para resolver os conflitos, principalmente, quando são coletivos, o que obriga os operadores do direito a buscar alternativas não contidas na moldura do Direito.



No caso concreto relatado, no início do trabalho, desenhou-se uma moldura em que se visualiza diversas possibilidades de aplicação do Direito. De acordo com Kelsen não se pode dizer que é possível chegar a única correta, mas segundo Dworkin, dentro das várias possibilidades encontradas, pode-se escolher a melhor ou mais justa possível. Segundo os ensinamentos de Dworkin, dentre as possibilidades vislumbradas na moldura do Direito é possível encontrar a que seja mais adequada à vontade constitucional e que atenda mais aos interesses coletivos que aos individuais. Para Dworkin existe sempre a melhor resposta, que é a melhor possível.



Um dos principais argumentos utilizados pelos que vêem nas ocupações um atentado ao Estado de direito e a democracia é que elas ferem o direito à propriedade privada. Via de regra entendido como um direito absoluto. A Constituição de 1988, consagrou e inseriu na lei maior o princípio da função social da propriedade. Ela garante o direito à propriedade como parte dos direitos e garantias fundamentais, porém, condiciona-o à sua função social.



A contradição mais evidente que sugere ordens concorrentes é a que aflora entre certos princípios constitucionais e sua especificação via lei ordinária, que os anula ou reduz radicalmente o seu alcance. O Código Civil Brasileiro privilegia a concepção de propriedade absoluta, de caráter dominial, onde a titularização se sobrepõe à posse ou à função social. Essa lei pré-existe à Constituição e está em vigor desde o início do século, tendo como função básica reger os conflitos possessórios interindividuais. Essa perspectiva está atualmente defasada, na medida em que os conflitos têm caráter coletivo, de cunho social. A doutrina da função social da propriedade nasce e se desenvolve da própria necessidade histórica de sua humanização.



Dentre os princípios materiais que regem o Estado de direito, encontra-se o da Constitucionalidade, ou seja, a lei constitucional tem supremacia sobre o ordenamento jurídico-legal. Com isso, os princípios da função social e do direito à vida com dignidade devem se sobrepor ao direito absoluto à propriedade. Ou seja, a propriedade que não cumpre a sua função social não encontra proteção legal do Estado e a Constituição prevê inclusive a sua desapropriação. A propriedade que não cumpre sua função social é socialmente ilegítima e injusta e constitui-se ameaça à ordem jurídica e representa desrespeito à personalidade humana e ao direito social básico de milhares de pessoas que não tem onde morar, requisito básico para se ter vida digna.



Mesmo comprovado que a área estava desocupada há 10 anos, e que portanto, o proprietário descumpria o princípio da função social da propriedade, e que o fato desafia o equilíbrio social e afronta o sentimento de justiça e viola a Constituição o Juiz reintegrou a posse liminarmente. Os juízes de modo geral, não atentam para o aspecto social e, fundamentando-se na perspectiva civilista e patrimonial, julgam os conflitos possessórios favoravelmente aos proprietários mediante a simples apresentação de um título dominial, muitas vezes fraudado em cartório ou adquirido junto a algum órgão público, contra o direito de uso e de posse dos sem-tetos. Baseados no Código Civil, emitem liminares de despejo sem conhecer sequer a realidade da propriedade nem a realidade dos seres humanos que lá se encontram.



Se por um lado, o Estado, obrigado por lei a promover iniciativas de consolidação da cidadania, fica inerte e enredado na teia de leis menores que têm limitado os avanços na realização da justiça social, não punindo a propriedade que não cumpre a função social e protegendo o grileiro e detentor de títulos falsos, o tratamento é inverso quando se trata de posse ou propriedade dos pobres. Segundo SCHNEIDER (1997), dados da Comissão Pastoral da Terra, no período de 1985 a 1996, mostram que 108.000 famílias foram vítimas de expulsão arbitrária de suas posses de terras e fonte de sustento. Nesse mesmo período, 66.703 famílias sofreram ameaças de expulsão. Essa ação rivaliza com a efetuada diretamente pelo Estado, o despejo judicial. No mesmo período, anos de prevalência do Estado democrático, 89.098 famílias foram vítimas desse tipo de ação, ao passo que 66.648 sofreram ameaças de despejo. Isso evidencia que a concepção kelseniana monista prevalece no Judiciário brasileiro.



GENRO (1992), faz a seguinte questão : Um juiz sul-africano, ao julgar uma ação judicial de um negro, cujo pedido tem como obstáculo uma lei que sustenta o apartheid, deve julgar contra a lei ? Esta pergunta feita aos juízes do nosso país certamente - com exclusão de uma minoria insignificante - teria uma resposta positiva: sim o juiz neste caso deve julgar contra a lei, porque o apartheid não tem qualquer sustentação ética ou moral, porque é anti-humano e carece de qualquer valor. Este juiz, é evidente, estará julgando contra a lei e contra o Estado. O juiz que atendesse a pretensão do negro sul-africano estaria abalando o princípio da legalidade que alicerça qualquer Estado Moderno e estaria se pondo a um Estado concreto que se ampara num determinado sistema legal.



Qualquer kelseniano, juiz, Advogado ou Desembargador de sucesso, portador do instrumental teórico dominante no nosso sistema jurídico diria que a legalidade é princípio cardinal de direção da sociedade por parte do Estado, no que se chama regulagem jurídica da sociedade. Isso ocorre porque o positivismo tanto de esquerda como de direita, faz reverência ao Estado e ao Poder e tem como princípio a visão instrumental do ser humano (o Direito utiliza, enquadra e submete o homem) e o desprezo pela dimensão ativa do conhecimento, observando a praxis humana como puramente receptiva das exigências do mundo material.



O julgamento contra a lei, portanto, em princípio, nada tem de excepcional (ou politicamente radical) desde que - como no caso do negro sul-africano - a ideologia jurídica, política e moral dominante suporte o julgamento como uma decisão de superior interesse social e humano. Na doutrina mais qualificada, defendida por Dworkin e outros, é reconhecida a superioridade dos princípios de direito para a orientação interpretativa. Esta superioridade permite, pois, eventuais ou sucessivas derrogações impróprias (ineficácia das normas perante um caso concreto) para proteger a totalidade e a própria teleologia do ordenamento. Por isso, a interpretação de uma norma constitucional deve levar em conta todo o sistema, tal como positivado, dando-se ênfase, porém, para os princípios contidos na Constituição.



A experiência jurídica dos povos demonstra que, quanto mais apegado ao normativismo mecanicista e ao legalismo puro, mais servil é o jurista ou o juiz perante os poderoso e mais sobranceiro e enérgico ele é perante os pobres e socialmente fracos. Seu amor a legalidade estrita é, na verdade, o amor e o respeito aos privilégios que o sistema pode garantir. Afinal não se pode esquecer o papel de grande parte dos juristas e juízes na época do nazismo, stalinismo e regime militar brasileiro.



BARACHO apud GENRO (1992) lembra que os problemas da interpretação constitucional são mais amplos do que aqueles da lei comum, pois repercutem em todo o ordenamento jurídico. A interpretação dos dispositivos constitucionais requer, por parte do intérprete ou aplicador, particular sensibilidade que permite captar a essência, penetrar na profundidade e compreender a orientação das disposições fundamentais, tendo em conta as condições sociais, econômicas e políticas existentes no momento em que se pretende chegar ao sentido dos preceitos supremos.



O extremismo fetichista da aplicação da lei a qualquer custo, significa o desaparecimento dos sujeitos humanos criadores do Direito que passam a ser somente partes: os interesses econômicos transformados em categorias jurídicas abstratas. A hierarquia normativa estabelecida como uma hierarquia axiológica absoluta (formal) vincula, então o juiz ao processo de produção e circulação como uma simples peça para somente manifestar o que é expressão bruta da superioridade material e espiritual dos grupos dominantes da sociedade. A experiência nazista e stalinista, ainda viva na memória, demonstra os malefícios que podem causar à pessoa e à sociedade, o juiz que se aniquila na norma. A previsibilidade do sistema é uma necessidade para a garantia dos direitos individuais e coletivos, mas ela não quer dizer estagnação normativa, nem exige que o juiz seja jogado para fora do processo de criação do Direito, no qual o Judiciário é ou pode ser uma peça chave (GENRO, 1992).



Na verdade, o próprio sistema jurídico tem aberturas explícitas para amparar os julgamentos contra a lei no caso concreto, seja pelo chamamento dos princípios, seja pela simples recusa que prescinde até de fundamentação discursiva, como no caso do apartheid. O que tem por trás da repulsa ao julgamento contra a lei, não é a paixão abstrata pela legalidade, mas sim a repulsa a reconhecer a necessidade de mudança qualitativa do sistema, com ferimentos graves a alguns interesses particulares das classes dominantes, aos quais hoje só resta, através do seu estatuto jurídico, uma aparência de universalidade. Um dos exemplos mais flagrantes e radicais desta pura aparência de universalidade de categorias jurídicas de interesse particular é a admissibilidade do direito de propriedade contra os interesse dos ocupantes miseráveis de um terreno abandonado, posição jurídica que agride o princípio constitucional da função social da propriedade e da dignidade humana.



GENRO (1992), citando Bergson, afirma que não existe uma ordem pura, ou seja, uma ordem dominante não está isenta nem descontaminada de uma outra ordem, potencialmente existente, que concorre com ela e ao mesmo tempo a integra. A própria ordem jurídica, com as suas contradições expressa essa coerência incoerente, onde a lei freqüentemente pode arremeter em dois sentidos: onde a lei torna-se propositalmente vaga; onde a norma constitucional carece de regulamentação porque foi feita como uma mediação de tensões sociais; ou quando a lei sendo politicamente inaplicável torna-se juridicamente inaplicável. Mas todas são normas que surgiram com vistas a elidir, submeter ou contornar os conflitos sociais pela sua inclusão no mundo do direito formal.



A contradição mais evidente que sugere ordens concorrentes é a que aflora entre certos princípios constitucionais (no caso os princípios do direito de propriedade, função social da propriedade e defesa da dignidade humana) e sua especificação via lei ordinária (Código Civil Brasileiro), que os anula ou reduz radicalmente o seu alcance.



Para Dworkin, o Direito é um sistema de regras e princípios. Segundo Robert Alexy apud SANTOS (1999), regras e princípios são normas, pois ambos dizem o que devem ser, pertencem ao âmbito deontológico. Um e outro podem ser formulados com a ajuda das expressões deônticas básicas de mandado, proibição e permissão. Os princípios, da mesma forma que as regras, são razões para juízos concretos de dever ser, ainda que sejam razões de diferentes tipos. Enfim, a distinção entre os dois é, pois, uma distinção entre duas espécies de normas. Assim, toda norma é uma regra ou um princípio. A distinção entre regras e princípios é que estes são mandados de otimização, i. é., são normas que ordenam algo que deve ser realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes. Que podem ser cumpridos em diferentes graus e que a medida devida de seu cumprimento depende não somente das possibilidades reais, mas também, das jurídicas.



CANOTILHO (1993), entende que o sistema jurídico do Estado de direito democrático português é um sistema normativo aberto de regras e princípios, ou seja, as normas do sistema tanto podem ser princípios como regras, que a distinção entre eles é uma distinção entre duas espécies de normas, abandonando-se, portanto, a teoria da metodologia tradicional que distinguia entre normas e princípios. Para ele, princípios são normas jurídicas impositivas de otimização, compatíveis com vários graus de concretização, consoante os condicionamentos fáticos e jurídicos. As regras são normas que prescrevem imperativamente uma exigência (impõem, permitem ou proíbem) que é ou não é cumprida.



Entende Canotilho, com apoio em Zagrebelsky, que um sistema constituído exclusivamente de regras corresponde a uma sociedade monodimensional e não responde aos problemas de uma sociedade pluralista e aberta como as sociedades modernas, além de conduzir a um sistema jurídico de limitada racionalidade prática. Daí afirma o constitucionalista português, com base em Ronald Dworkin e Robert Alexy, que apenas a 'perspectiva teorética-jurídica, tendencialmente principialista' do 'sistema constitucional', como 'sistema processual de regras e princípios' é capaz de solucionar, rigorosamente, alguns dos problemas metódicos, como ainda, respirar - através da textura aberta dos princípios; legitimar - os princípios consagram valores que fundamentam a ordem jurídica; e enraizar - os princípios se referem sociologicamente a valores, programas, funções e pessoas; e caminhar - mediante instrumentos processuais e procedimentais adequados, possibilitadores da concretização e densificação das mensagens normativas da constituição.



Segundo BOBBIO (1991), quando duas regras colidem, uma delas não pode ser válida. Em conseqüência, cada sistema jurídico possui meios que possibilitam regular e decidir tais conflitos. A este conflito, a doutrina denomina antinomia, que são resolvidos pelos critérios : cronológico lex posterior derogat priori; hierárquíco lex superior derogat inferior; da especialidade lex specialis derogat generali. Por outro lado, a colisão de princípios, segundo Dworkin apud SANTOS (1999), se resolve na dimensão de peso. Quando dois princípios entram em colisão - por exemplo, se um diz que algo é proíbido e outro, que é permitido -, um dos dois tem que ceder frente ao outro, porquanto um limita a possibilidade jurídica do outro. O que não implica que o princípio desprezado seja inválido, pois a colisão de princípios se dá apenas entre princípios válidos.



GENRO (1992), afirma que o direito é sempre a melhor possibilidade de um sistema jurídico, dada pelos conflitos sociais e individuais que o geraram, pela sua história e pela cultura da sociedade em que ele emerge. Não é o arbítrio do indivíduo-juiz, nem sua simples vontade política perante a crise de um sistema; mas é um ato de construção e de desenvolvimento de valores que já estão postos pela história de afirmação da liberdade humana, do direito à vida, da luta pela repartição do produto social, pela redução da desigualdade e pela defesa do futuro do homem, preservando-lhe o ambiente e a natureza. BOBBIO (1992), também defende o ponto de vista teórico de que os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas.



Para Kelsen, não existe a solução correta dentro das várias possibilidades existentes na moldura desenhada no caso concreto. Qualquer decisão tomada dentro das possibilidades encontradas teriam valor absolutamente igual. Reintegrar liminarmente a posse da área e lançar inúmeras famílias ao relento, desapropriar a área por interesse social, quanto obrigar o Estado a respeitar a dignidade humana e proteger as famílias teriam o mesmo valor jurídico. A diferença é que a primeira seria mais fácil de se efetivar que a segunda, bastando para isso acionar o aparato policial.



O juiz ao conceder a liminar de reintegração de posse parte do fundamento kelseniano de que o direito é a norma, teoria que já está há muito superada, embora, boa parte dos operadores jurídicos, ainda acreditam que a norma contém o direito e que exista uma única solução justa : aquela que melhor se ajusta a norma. Esta seria uma decisão apenas formal do conflito, na qual o juiz se esconde dentro da carapaça da neutralidade e na pseudocientífica fórmula de que a norma constitui o direito, e que se fez justiça.



A justificativa para decisão é que não cabe ao Judiciário resolver problemas sociais, mas garantir o primado da lei. Essa é a maneira mais fácil de se lavar as mãos. Ora, se a solução do problema cabe ao Governo, e a Constituição assim o prevê, porque então não fazer o Executivo resolvê-lo, mesmo porque, a exclusão social em grande parte é produzida por implementação de políticas públicas do próprio Executivo ? Antes de serem julgados culpados os invasores são vítimas de um processo de exclusão social. A cada ano aumenta o número de pessoas segregadas em favelas, em pequenas, médias e grandes cidades, justamente porque as autoridades responsáveis não enfrentam com seriedade o grave problemas da habitação vivido em todo país.



A norma constitucional afirma o direito à propriedade e o direito à moradia digna, condição essencial para manutenção da vida com dignidade. Qual a solução de justiça para esta contradição de normas de igualdade hierárquica ? Contrariamente ao posicionamento de Kelsen, só é possível resolver esta controvérsia através de um juízo de valor, um juízo que estabeleça qual dentre os valores propriedade e o direito de morar é o mais importante para a definição de justiça.



Tal juízo de valor trata-se de um juízo de índole subjetiva, pautado na consciência de quem o emite. Se se busca na consciência da coletividade social, a solução para essa controvérsia, poder-se-ia optar por uma enquete dentre os proprietários de médias e grandes áreas de terra, onde o valor preponderante, certamente, seria o de propriedade. Por outro lado, esta mesma enquete realizada entre os sem-tetos, o valor mais importante seria o de moradia. Em síntese, não há valor absoluto de justiça, mas sim valores historicamente determinados e, por vezes, coexistindo nas contradições intrínsecas às relações sociais de uma determinada época histórica. Em uma sociedade plural, cheia de contradições e antagonismos emergentes da dominação do homem sobre o homem, seja ela de classe sobre classes, grupos sobre grupos, ou subgrupo sobre subgrupos, isto é, uma sociedade onde há pluralidade cultural e contratual, social e política, necessariamente ali convivem vários direitos, várias concepções de justiça, enfim, constitui-se uma situação de pluralidade jurídica, onde as classes dominantes, com o controle da máquina estatal, cristalizam como direito positivo, isto é, como ordenamento jurídico estatal, os seus interesses setoriais e classistas, buscando ocultar por trás de um discurso unívoco, por trás da imagem de um direito único a verdadeira situação de pluralidade (BISOL, 1990).



Embora Alexy apud SANTOS (1999), rejeite a existência de princípios absolutos, quaisquer que sejam eles, admite que o princípio da dignidade da pessoa humana geralmente prevalece sobre os demais. O mesmo autor citando Francisco Segado diz que a Constituição Espanhola ao fundamentar a ordem política na dignidade da pessoa humana, e, em conseqüência, estabelecer que o Direito, o ordenamento jurídico no seu conjunto, só subsistirá legitimamente mediante o reconhecimento deste princípio, e dos direitos que lhe são inerentes. Para Segado en el ordenamiento liberal democrático la dignidad del hombre es el valor superior. Por lo mismo, el hombre goza de una personalidad capaz de organizar sua vida de un modo responsable. Su dignidad exige que se garantice el más amplo desarrollo posible de su personalidad.



Partindo da concepção de pessoa estabelecida pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, MIRANDA (1996), sintetiza assim o princípio da dignidade humana:



a) a dignidade humana reporta-se a todas e a cada uma das pessoas e é a dignidade da pessoa individual e coletiva;



b) cada pessoa vive em relação comunitária, mas a dignidade que possui é dela mesma, e não da situação em si;



c) o primado da pessoa é o do ser, não o do ter; a liberdade prevalece sobre a propriedade;



d) só a dignidade justifica a procura da qualidade de vida;



e) a proteção a dignidade das pessoas está além da cidadania portuguesa e postula uma visão universalista da atribuição dos direitos;



f) a dignidade pressupõe a autonomia vital da pessoa, a sua autodeterminação relativamente ao Estado, às demais entidades públicas e às outras pessoas.



A dignidade da pessoa humana - a pessoa como fundamento e fim da sociedade e do Estado - aparece, assim, como o princípio que confere unidade de sentido, de valor e de concordância prática ao sistema dos direitos fundamentais. Estes têm sua fonte ética na dignidade da pessoa, de todas as pessoas.



Ao colocar a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, transformou-a num valor supremo da ordem jurídica, ou seja, não é apenas um princípio da ordem jurídica, mas o é também da ordem política, social, econômica e cultural, que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais. Instituir a dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado Democrático de Direito importa, não apenas o reconhecimento formal da liberdade, mas a garantia de condições mínimas de existência, em que uma existência digna se imponha como o fim da ordem econômica, não se tolerando, pois, profundas desigualdades entre os membros de uma sociedade (AFONSO DA SILVA, 1996).



Assim, perante o conflito entre o direito de propriedade e o direito à vida com dignidade, incluído aí o direito à moradia, deve o aplicador do direito, para tutela do valor supremo da dignidade da pessoa humana, sacrificar o direito do proprietário na medida do necessário e, se tanto for preciso, totalmente, nos termos da Lex Fundamentalis. De acordo com Garcia de Enterria apud SANTOS (1999), estes valores e princípios não são meras cláusulas retóricas ou de estilo, ou manifestações de bons propósitos, mas possuem força vinculante. Mesmo porque há muito que é pacífico, segundo o autor espanhol, que toda a Constituição tem valor normativo imediato.



Na interpretação das normas constitucionais os princípios possuem eficácia eminente. É eles que iluminarão a inteligência da simples norma; que esclarecerão o conteúdo e os limites da eficácia de normas constitucionais esparsas, as quais têm que harmonizar-se com eles (Hugo de Brito apud SANTOS, 1999). Os princípios são ordenações que irradiam e imantam os sistemas de normas, são núcleos de condensações nos quais confluem valores e bens constitucionais (CANOTILHO, 1993). Desobedecer um princípio é muito mais grave que desobedecer uma simples norma, pois ele é um mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que si irradia sobre diferentes normas (MELLO, 1991).



Sendo, pois, o cerne da Constituição, conferindo-lhe fecundidade e atualização permanente, os princípios se sobrepõem a todas as regras, inclusive aquelas de nível constitucional. Por isso, na interpretação constitucional, a natureza suprema dos princípios deve direcionar o intérprete, seja quanto a seus termos, seja, principalmente, quanto às conseqüências que de tal ou qual conclusão possam advir para a inteligência e aplicação do Direito (ROCHA, 1994).



Para DWORKIN (1998), os princípios são conjuntos de normas outras (que não regras jurídicas), incluída aí a noção política, a qual diz respeito a um tipo de norma cujo objetivo é o bem-estar geral da comunidade, no sentido do seu aperfeiçoamento econômico, político e social. O termo princípio se opõe a noção de política ao dizer respeito a um tipo de norma cuja observação é um requisito de justiça ou equidade, ou ainda, de alguma outra dimensão da moral. A articulação entre os princípios e as decisões políticas passadas requer a existência de coerência no sentido da aplicação do princípio, não meramente na aplicação de particular norma em nome daquele princípio. A sua não ocorrência onera a estrutura da decisão, em relação a refutabilidade. Justifica-se, por isso, a fragilidade das decisões apoiadas em políticas onde não se cobra tal coerência. Políticas se alteram na proporção dos ânimos que as conduzem.



Para exemplificar, os arts. 1°, caput e incisos, 2°, 4° e 5°, caput e incisos e 170 caput (parcialmente) e incisos, da Constituição Federal do Brasil, aparecem como princípios, enquanto os arts. 3°, 4° parágrafo único, 170, caput, (parcialmente) aparecem como políticas. A dignidade da pessoa humana, aparece, por exemplo, no art. 1°, III como um princípio e no caput do art. 170, como política, assegurando a todos existência digna.



Ao fundir pretensões jurídicas e morais, o texto constitucional faz com que a validade de um direito dependa não de uma determinada regra positiva, mas de complexos problemas morais, como por exemplo, a indagação acerca do respeito de uma lei particular à igualdade de todos os homens (DWORKIN, 1998).



No caso em tela ocorre clara conexão entre questões jurídicas e morais, relativamente à Constituição. Parece injusto lançar ao relento centenas de idosos, enfermos e crianças e adultos em favor do direito de propriedade de um indivíduo. A invasão da propriedade privada, abandonada há 10 anos, por numerosas famílias miseráveis reflete o questionamento da validade de um direito, no mínimo, duvidoso. A existência de uma área que não cumpre sua função social e de centenas de famílias de sem-tetos não só acusa a existência de profundas e complexas questões de ordem moral alocadas no texto constitucional, como também, a necessidade de um direito sensível a estas questões, não redutíveis à regra positiva, cuja concepção, com ele, se alarga e se altera. A conexão entre questões jurídicas e morais não constitui óbice ao cumprimento dos direitos individuais, mas em ingrediente complementar. Quer dizer, os direitos e deveres morais dos cidadãos, bem como os direitos políticos contra o Estado, podem ser reconhecidos no direito positivo.



Ao ser compreendida de forma mais aberta, a regra jurídica desmistifica-se, abandonando a onipotência que o positivismo lhe atribui e torna-se uma fonte extraordinária de direitos morais. O ato judicatório, em que pese a consideração da regra jurídica nos termos da concepção de direitos, será um ato político. Num caso difícil, aduzirá o juiz a certos princípios - que podem ser depreendidos da regra jurídica - para, através dos mesmos, buscar os direitos morais das partes, pertinentes às suas pretensões. Este mecanismo, que vincula as questões práticas (relativas à tomada de decisão do juiz) às questões teóricas da concepção de regra jurídica, oferece uma resposta (através do direito) à sociedade pela via da realização da justiça. A cultura jurídica, de maneira geral, sofreria mudanças significativas a partir desta concepção de direitos da regra jurídica, na medida em que ela se constitui em mais um instrumento de justiça social.



Infelizmente, grande parte dos aplicadores do Direito em casos como o levantado, ainda encontram-se prisioneiros da norma aplicada numa folha de papel fria e neutra em escritórios refrigerados. O positivismo, genericamente, gravita em torno da noção de regra jurídica. Ela constitui o padrão de avaliação de condutas, num fator de motivação de comportamento. Este modelo de sistema de regras assentado em um teste fundamental, obscurece as infinitas implicações do direito que escapam a sua significação em termos exclusivos de uma regra de curta dimensão.



Quando ocorre dos princípios conflitarem é a teoria política que vai ser decisiva ao sugerir que princípio se ajusta a um sentido mais agudo de justiça no qual seguirá, em conseqüência, a interpretação do juiz. O papel da teoria política na interpretação suscita posicionamentos tanto radicais quanto conservadores em relação aos direitos; aos que são e aos que deveriam ser. Mesmo os julgadores que , em nome de uma interpretação que privilegia a intenção do autor, negam o vínculo com a teoria política, acabam por escamotear as suas próprias convicções políticas. A teoria política é o pólo epistêmico da atitude interpretativa dos juízes donde se inferem valorações, ou seja, decisões cuja estrutura argumentativa é moralmente significativa. A teoria limita o julgamento interpretativo ao traçar uma linha divisória entre o interpretar e o inventar.



A Carta Magna no art. 6o, dispõe que : São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.



A Declaração dos Direitos Humanos, no art. 25, I, preceitua que Todo homem tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e os serviços sociais indispensáveis à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle.



A este direito de todo cidadão corresponde o dever do Estado de criar as condições necessárias para a sua concretização e efetividade. Não se pode perder de vista que o homem tem necessidade de ter uma casa onde morar, que não consiste apenas em piso, parede e teto, o que nem isto é reconhecido, mas experimentar segurança, sentindo-se morador de uma cidade e cidadão da Nação. Morar, assim como comer, é condição essencial para manutenção da vida, o principal bem tutelado pelo Estado.



Expulsar os invasores, ao invés de buscar solução definitiva para o problema, garantindo moradia para todos, seria decisão jurídica puramente formal, sem qualquer preocupação com as pessoas, que para ali se dirigiram por causa de graves problemas econômicos e sociais, em razão da inexistência de oferta de trabalho em suas regiões de origem, vindo a engrossar a massa marginalizada, que vive em verdadeiros guetos que assumem denominações de favelas, invasões, loteamentos clandestinos e cortiços.



Famílias inteiras, com os filhos e seus trastes, são colocadas em caminhões que despejam estas pessoas para fora da área, numa situação vexatória, na qual os ocupantes dos barracos são submetidos e evidente constrangimento. Não há o mínimo respeito às pessoas, nem ao direito do homem de se deslocar e se fixar onde possa levar um padrão de vida decente e humano, bem assim o de trabalhar, ter acesso à educação e assistência médica. Não se respeita sequer o direito das crianças de estudar, pois na invasão não existe rede escolar oficial. Esta obrigação que cabe aos pais não pode por eles ser cumprida, pois se não tem onde morar, como terão dinheiro para comprar caderno, lápis, borracha, uniforme e pagar transporte ? Esta obrigação também cabe ao Estado, mas não é por ele observada, contribuindo o próprio poder público para o aumento do analfabetismo e marginalização.



O texto constitucional dispõe que ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante (art. 5°, III, CF). Portanto, é inconcebível uma ordem econômica em que inumeráveis homens e mulheres sejam torturados pela fome, inúmeras crianças vivam na inanição, a ponto de milhares morrerem em tenra idade. Nesse sentido a nossa Constituição, em seu art. 170 caput, dispõe, expressamente, que a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna.



A injustiça e a violação da Constituição é de tal maneira flagrante, que o mandatário maior do país tem a ousadia de em brevíssimo espaço de tempo criar o PROER de bilhões de dólares para salvar bancos e banqueiros, mas não tem programa com recursos suficientes para retirar crianças da mais absoluta falta de dignidade de vida e eliminar os guetos que se formam nas cidades brasileiras. Este é o sistema que privilegia a minoria mais rica na partilha dos bens produzidos pelo trabalho de todos, que deixa à maioria a pobreza, quando não a miséria.



Como será possível continuar postulando o princípio da igualdade formal perante a lei numa sociedade em que os 20% mais pobres do país detêm apenas 2% da riqueza nacional, enquanto os 20% mais ricos ficam com 66% ? De que modo, no âmbito de uma formulação social em que a pobreza atinge cerca de 64 a 69% da população, interpretar o princípio segundo o qual os juízes devem atender aos fins sociais e às exigências do bem comum na aplicação da lei?



O direito à moradia, incluído entre os direitos universais e invioláveis, necessários para levar uma vida verdadeiramente digna, é requisito indispensável à sobrevivência da família. O direito ao uso de parcela do solo urbano que garanta moradia adequada é uma das primeiras condições para a realização de uma vida autenticamente humana. Portanto, no caso de muitas ocupações lentas e até nas invasões, o título legítimo de propriedade, derivado e secundário, deve ser julgado diante do direito fundamental e primário de morar, decorrente das necessidades das pessoa humanas. Assim, o direito à moradia deve prevalecer sobre o direito de propriedade, pois o primeiro é base para uma vida com dignidade .



Os invasores não reivindicam o direito de tomar, dos bens dos outros, o que necessitam, mas sim um local para morar. Muito menos são contra o direito de propriedade. O que eles querem é possuir o mínimo para subsistência. Não tomaram esta decisão por livre e expontânea vontade, mas premidos pela exclusão social, num indisfarçável apartheid. Os invasores não defendem a abolição do sistema de propriedade privada, pelo contrário eles querem é ser proprietários. A questão de não ter onde morar supera a questão de estar agindo legal ou ilegalmente. A pretensão de todo invasor não é permanecer com um direito informal ou paralegal. Sua pretensão é de num segundo momento fazer com que a posse mantida e reconhecida seja legalizada pelo direito estatal (FALCÃO, 1990).



Há pouco tempo todos se indignavam com a separação de escolas e transporte para negros e brancos nos Estados Unidos, com o transporte de judeus, em comboios, para campos de concentração e de extermínio. Causava repugnância a todos a política segregacionista colocada em prática na África do Sul. No entanto, o governo, o judiciário e o povo brasileiro não consegue enxergar similitude da situação vivida pelos moradores de invasões e favelas.

São conhecidos os fatores que lançam milhares de pessoas todos os anos na miséria, quem implementa o desemprego nos centros urbanos e no meio rural através de uma política de concentração de renda, permite a especulação imobiliária, que elevam astronomicamente os preços dos imóveis e dos aluguéis, fatores que têm levado a proliferação de favelas. Lamentavelmente os governantes brasileiros, muito mais preocupados em atender aos agiotas e especuladores internacionais, não têm vontade e coragem de enfrentar reformas estruturais, possibilitando condições de sobrevivência ao homem rural e urbano, e das empresas brasileiras, principalmente, as pequenas e médias, bem como o estabelecimento de uma política educacional, de saúde, de reforma agrária e habitacional que ao lado de coibir a acentuada especulação imobiliária, deveria proporcionar às camadas populacionais de menor renda oportunidade de obtenção de morada decente.



Assim, de acordo com os ensinamentos de Dworkin, a decisão mais justa ou a melhor possível, em casos como estes, deverá levar em consideração o princípio da dignidade da pessoa humana, considerando o atendimento às necessidades básicas de escola, saúde e moradia. Esta não é, apenas, uma questão policial, nem puramente jurídica, é também social e política. A decisão justa deve incorporar os invasores miseráveis a um melhor nível de vida e à plena participação nas decisões políticas, sendo um imperativo ético, político e constitucional o desenvolvimento social e não apenas o crescimento econômico e o mercado financeiro.



A aplicação da lei da forma Kelseniana tradicional, adotando a remoção dos invasores, pura e simplesmente, constitui violação dos mais fundamentais direitos da pessoa humana e direitos sociais, consequentemente, da Constituição Federal, especificamente das seguintes normas:



dois dos fundamentos da República Federativa Brasileira a cidadania e dignidade da pessoa humana (se é que se pode dizer que ainda houvesse no caso em tela) (art. 1o, II e III, CF);



b) dois dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil que são construir uma sociedade livre, justa e solidária e erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais (art. 3o , incisos I e III, CF);



c) a que dispõe ser de competência comum da União, dos Estados, do DF e dos Municípios promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico (art. 23, IX, CF) e art. 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos;



d) de proteção ao trabalho, como condição de dignidade humana (art. 6o, CF) e art. 23 da Declaração Universal dos Direitos Humanos;



e) direito à educação (art. 205, CF); e art. 26 da Declaração Universal dos Direitos Humanos; e art. 2o da Declaração dos Direitos da Criança, aprovada pela ONU em 20 de novembro de 1959);



g) direito à saúde (art. 6o, CF) e art. 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos;



Além destes, que se encontram explícitos nos diferentes textos de nosso ordenamento jurídico, é de se considerar ainda a violação dos direitos previstos nos parágrafos 1o e 2o do art. 5o da CF :



d 1o . As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.



d 2o Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela dotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.



A verdadeira Constituição é aquela que faz coincidir a verdade normativa com a verdade social. A distância entre o projetado e o realizado vai cada vez mais sendo insuportável no Brasil, pois o povo está se conscientizando de que, se não se mobilizar, jamais poderá avançar no processo de conquistas políticas e sociais, de vez que a classe dominante não deseja perder suas regalias (SARAIVA, 1990).



A concretização de direitos e promessas de direitos existentes na Constituição só será obtida por meio da atuação cidadã organizada. Neste sentido, é válido afirmar que a luta faz a lei e concretiza direitos, e porque não dizer amplia os limites e possibilidades da interpretação constitucional. Daí decorre a importância de estimular a luta pelo espaço público, aqui entendido como a forma de permanente interferência do povo nas decisões políticas, econômicas, financeiras e sociais.



As garantias que a Constituição consagrou não são benesses concedidas pelo poder ao povo, mas sim exigência das bases que obrigam as cúpulas a revisar seus parâmetros de interpretação constitucional e a negociar suas pretensões políticas. Foi assim que nos Estados Unidos os negros conseguiram que a Suprema Corte declarasse inconstitucional a lei estadual da Carolina do Sul que separava escolas e transporte entre negros e brancos. Depois de sete tentativas fracassadas, prevaleceu o princípio constitucional de que todos devem ter igual tratamento perante a lei. A separação de escola e transporte para negros, implicitamente os considerava inferiores aos brancos.



Da mesma forma que ocorreu nos Estados Unidos com o racismo e está ocorrendo no Brasil com o direito de propriedade, os avanços na interpretação constitucional dos direitos fundamentais vem sendo impulsionados pela participação popular no campo jurídico-político. As classes oprimidas e exploradas ao avançarem nas suas reivindicações determinam que as elites dirigentes e o Poder Judiciário passem a aceitá-las como legítimas e constitucionalmente protegidas, fazendo aproximar a Constituição escrita da verdade social.



O Direito, muitas vezes, não está na norma, de vez que a norma é pequena para abarcar toda a realidade jurídica. O regramento jurídico encontra-se, também, no meio social, na rua e nas favelas, onde estão também, as necessidades e as angústias do povo sofrido e explorado. Admitir-se que o Direito é somente norma, é entronizar-se a concepção puramente legalista, que nega os verdadeiros valores jurídicos e anula a própria convivência social.



A decisão mais correta, na doutrina de Dworkin, seria aquela que fizesse coincidir a justiça legal com a justiça social. As garantias constitucionais servem para implementar os direitos constitucionais e para possibilitar a prestação jurisdicional contra qualquer lesão aos direitos fundamentais do homem. Todavia, deve ser entendido, que a conquista desses direitos é um processo contínuo de resistência e superação da exploração e marginalização das classes trabalhadoras.



Os direitos sociais e individuais não são meras diretrizes programáticas, ou ideais ético-políticos. O positivismo kelseniano não aceita a normatividade dos princípios, porque destaca inteiramente o direito da ética e da política e porque sua visão de mundo permanece ligada ao pensamento kantiano, cego aos valores. Mas neste final do Século XX, é puro anacronismo conceber sistema ético-jurídico como separado do universo valorativo. A força normativa dos princípios é muito maior que a das simples regras de direito, porque estas vigem na exata medida em que não colidem com aqueles. A função própria dos princípios consiste, justamente, em dar unidade ao sistema jurídico, direcionando a interpretação e aplicação de suas normas e gerando novas regras em caso de lacunas (COMPARATO,1998).



A vigência dos princípios jurídicos, em virtude da amplidão de seu campo de incidência, não é afetada na hipótese de conflito normativo, tal como sucede com as regras de direito, as quais se revogam por normas ulteriores, que contra elas venham a colidir. A solução de um conflito entre princípios jurídicos no caso concreto - o direito a moradia como condição fundamental para manutenção da vida e o direito de propriedade - faz-se não pela revogação de um pelo outro, mas sim pela escolha do mais adequado ou pertinente para a justa composição da lide, segundo o método do sopesamento ou balanceamento de valores.



Os princípios são, pois, normas-chaves de todo o sistema jurídico, o que significa a demonstração do reconhecimento da superioridade e hegemonia dos princípios na pirâmide normativa; supremacia que não é unicamente formal, mas sobretudo material, e apenas possível na medida em que os princípios são compreendidos e equiparados e até mesmo confundidos com os valores, sendo, na ordem constitucional dos ordenamentos jurídicos, a expressão mais alta da normatividade que fundamenta a organização do poder (BONAVIDES, 1996).



Para COMPARATO (1998), as revoluções do final do século XVIII assentaram, com a abolição dos privilégios estamentais, a igualdade perante a lei. Abriu-se, com isso, uma nova divisão da sociedade, fundada não em estamentos, mas sim em classes: os proprietários e os trabalhadores. Em 1847, aliás, Tocqueville já antevia : Dentro em pouco, a luta política irá estabelecer-se entre homens de posses e homens desprovidos de posses; o grande campo de batalha será a propriedade.



Para corrigir e superar o individualismo próprio da civilização burguesa, fundada nas liberdades privada e na isonomia, que o movimento socialista fez atuar, a partir do século XIX, o princípio da solidariedade como dever jurídico e a fraternidade como virtude cívica. Com base no princípio da solidariedade passaram a ser reconhecido como direitos humanos os chamados direitos sociais, que se realizam pela execução de políticas públicas, destinadas a garantir amparo e proteção social aos mais fracos e mais pobres, ou seja aqueles que não dispõem dos recursos indispensáveis para viver dignamente.



A solidariedade prende-se à idéia de responsabilidade de todos pelas carências ou necessidades de qualquer indivíduo ou grupo social. O fundamento ético desse princípio encontra-se na idéia de justiça distributiva, entendida como a necessária compensação de bens e vantagens entre as classes sociais, com a socialização dos riscos normais da existência humana. É com fundamento na solidariedade que, em vários sistemas jurídicos contemporâneos, consagra-se o dever fundamental de sedar à propriedade privada a sua função social.



Segundo COMPARATO (1998), os direitos sociais englobam, de um lado, o direito ao trabalho e os diferentes direitos do trabalhador assalariado; de outro lado, o direito à seguridade social (saúde, previdência e assistência social) e o direito à educação. De modo geral, como se diz no Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966 (art. 11), o direito de toda pessoa a um nível de vida adequado para si próprio e sua família, inclusive à alimentação, vestimenta e moradia adequadas, assim como a uma melhoria contínua de suas condições de vida.



Prossegue o autor, dizendo que o conjunto dos direitos sociais acha-se hoje, em todo o mundo, severamente abalado pela hegemonia da chamada política neoliberal, que nada mais é do que um retrocesso universal ao capitalismo vigorante em meados do século XIX. Jamais se viu uma situação de exclusão social de populações inteiras como se tem visto. O trabalho era a única mercadoria que tinham milhões de seres humanos, depara-se hoje com a perspectiva de uma sociedade de trabalhadores sem trabalho e com um futuro de grande miséria e sofrimento.



Contrariamente a esta direção dispõe a Constituição (art. 3o , III) que é objetivo fundamental da República Federativa do Brasil erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais.



Percebe-se que é ilimitada a interpretação constitucional, cabe aos cidadãos buscar, conforme as lições de Dworkin, as decisões melhores possíveis e que mais atendam aos anseios do povo brasileiro, consagrados nos princípios da Constituição da República Federativa do Brasil.





6. CONCLUSÕES





Dentro das interpretações levantadas no caso concreto, à luz das teorias de Kelsen e Dworkin, pode-se tirar as seguintes conclusões:

a) a reintegração liminar da posse no caso concreto, seria uma decisão kelseniana fundamentada na norma. Não faz sentido perguntar se fez justiça, pois se aplicou a norma. Prevaleceu o direito de propriedade absoluto, previsto no Código Civil, sobre o princípio constitucional da dignidade humana e da função social da propriedade;



b) as demais decisões baseadas nos princípios constitucionais da função social da propriedade e da dignidade da pessoa humana, são mais consentâneas com a doutrina moderna dos princípios, defendida por Dworkin e outros jusfilósofos, entrentanto, ainda representa uma tímida possibilidade na moldura do Direito e da prática do Judiciário brasileiro.





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