Buscalegis.ccj.ufsc.br

 

A tragédia da cultura na era da técnica:

 

Georg Simmel

 

Francisco Rüdiger

 

 

Segundo Hermínio Martins (1997), as filosofias da técnica surgiram em resposta aos problemas suscitados pela crescente presença material da ciência na condução da vida moderna e podem ser divididas em duas correntes principais: a prometeica e a fáustica. Na verdade, notamos, o fenômeno engendrou uma maior complexidade do ponto de vista histórico. A confiança posta na técnica por nossa época, ainda que triunfante, não pode ser separada por completo das dúvidas sobre seu sentido ético e efeitos sobre a natureza, de modo que mesmo no registro filosófico é preciso considerar não apenas as várias misturas, como o autor não deixa de notar, mas, também, as sínteses originais dessas concepções, por assim dizer fundadoras de nossa reflexão sobre a tecnologia.

 

O pretendido discernimento todavia pode ser aceito, pondo de lado essas transições e sínteses inovadoras, às quais só com muito dificuldade logra apanhar por inteiro o esforço de pensamento. O esquema, então, revelar-se-ía o seguinte: na concepção prometeica, visualiza-se na tecnologia um conjunto de saberes e inventos capa de solucionar nossos problemas e promover o progresso da humanidade; na concepção fáustica, em contraponto, encara-se esse conjunto como uma figura cultural cujo poder tende a fugir do controle e, assim, a pôr em perigo a própria condição humana, ao converter-se em forma superior de heteronomia.

 

Georg Simmel conta-se sem dúvida entre os principais originadores dessa última concepção, difundida a partir do início do século XX. Destoando dos juízos correntes em seu tempo (1900), o pensador não viu no progresso técnico uma via de acesso a um estágio superior da cultura, relacionando-o antes com a crise para a qual havia nos alertado Nietzsche. Para ele, a cultura moderna entra em crise, começa a ver abalado seu sentido, a partir do momento em que suas criações formam um contexto que não mais permite ou dificulta o desenvolvimento interior do indivíduo.

 

O Ocidente liberou esse último das estruturas holísticas tradicionais, esperando que pudessem passar a residir nesse último os processos de síntese sem os quais não se pode falar - devidamente - em sociedade. Entretanto, o projeto se viu traído por seus próprios sujeitos, na medida em que o peso cada vez maior por eles conferido às técnicas com que cuidam de suas vidas resulta na progressiva supressão dessa finalidade de sua consciência.

 

O crescente mal-estar vivido na cultura moderna é resultado do déficit de sentido que tende a surgir dessa situação, malgrado todos os recursos, esforços e refinamentos inventados para, ao menos, tirá-lo da consciência. Quando pensam, os homens "vivenciam o sentido último de nossa existência como sendo algo tão remoto que nós não somos capazes de localizá-lo e como se estivéssemos em constante perigo de, ao invés de nos aproximarmos, estarmos nos afastando desse sentido" (Simmel, 1990: p. 484).

 

A constelação formada pelas diversas esferas da vida moderna move-se de maneira centrífuga, mantendo-se coesa meramente pela circulação monetária. Em virtude disso, as finalidades interiores de cada uma delas tendem a se dissociar da consciência, senão de todos os que não têm posição de liderança, pelo menos daqueles que não vivem sob sua direta legalidade.

 

Nesse sentido, a cultura moderna pode ser vista como palco de uma tragédia, cuja raiz é o crescente predomínio dos meios sobre os fins, das técnicas sobre os valores transcendentais.

 

"O espantoso crescimento em extensão e intensidade de técnica moderna, que não se restringe às esferas puramente materiais, prende-nos em uma rede de meios e meios de meios que nos desvia dos fins que julgamos específicos e definitivos, através de um número cada vez maior de instâncias intermediárias" (Simmel, 1992: p. 272).

 

A Enciclopédia foi um dos principais emblemas de uma época que sonhou com a recriação do homem universal, continuamente enriquecido de pensamentos, experiências e sentimentos. Atualmente, ela se tornou complexa e vasta demais para poder ser apreendida em tempo hábil, antes de se tornar ultrapassada. A tecnociência talvez tenha tornado a cultura mais excitante e, por isso, podemos até mesmo nos sentirmos cansados por seus estímulos, sem que no entanto tenhamos nos acercado de sua plenitude.

 

 

As considerações seguintes pretendem dar conta da maneira como sua reflexão sobre a tragédia da cultura que tem lugar em nosso tempo comporta um exame do sentido da técnica que pode nos ajudar a pensar o problema das novas tecnologias de comunicação, após ter se tornado um motivo recorrente nos escritos de vários pensadores da técnica de nosso século, de Oswald Spengler e Heidegger a Jacques Ellul, Arthur Kroker e Eduardo Subirats.

 

 

* * * *

 

Segundo Simmel, o emprego do conceito de cultura requer um cuidadoso esclarecimento do seu sentido, ou, pelo menos, uma limitação da sua polissemia. Devidamente entendida, sustentou, a cultura é um processo de mediação entre as criações objetivas da espécie e a vida interior do indivíduo. O patrimônio material e espiritual da humanidade tanto quanto os conhecimentos e refinamentos manifestados pelo indivíduo não bastam para defini-la. O conceito remete antes ao esforço de formação pelo qual um sujeito modifica a si mesmo no sentido de uma condição mais elevada e perfeita mas, ao mesmo tempo, à necessidade de que essa formação seja feita por meio de certos bens que pertencem a sua exterioridade.

 

No céçebre ensaio sobre o conceito de cultura, o filósofo nota que os conhecimentos, condutas e maneirismos de um homem só podem ser provas de sua cultura na medida em que constituem elementos representativos de uma condição realmente vivida como estágio de aperfeiçoamento individual. A pessoa culta por certo possui uma condição interior, mas uma condição é a conquistada mediante a apropriação adequada de certos bens, a cujo conjunto damos o nome de cultura. O conceito não deve ser usado onde a conduta social e o manuseio dos bens revelam-se puramente convencionais e são, por assim dizer, ligados ao sujeito por uma ordem externa.

 

"A cultura significa a forma de perfeição individual que só pode consumar-se por meio da incorporação ou utilização de uma figura suprapessoal que, de algum modo, está além do sujeito" (Simmel, 1988: p. 213)

 

A verdadeira significação do conceito de cultura concretiza-se onde a subjetividade particular encontra e se apropria de valores que não são em si mesmos subjetivos. O sujeito se cultiva quando consegue inserir em seu progresso particular o sentido que o processo criador da espécie concretiza em bens. O especialista, por mais competente que o seja, não revela cultura, pois essa só surge "quando as perfeições unilaterais se ordenam no âmbito global da alma, quando as divergências entre seus elementos são igualadas por elevarem-se a um estágio superior, enfim, quando ajudam a consumar o todo da alma como uma unidade" (Simmel, 1986: p. 124).

 

Conforme pensa o autor: "O homem é cultivado quando esses bens objetivos de tipo espiritual ou externo, passam a formar parte de sua personalidade, de tal modo que lhe permitam progredir além da medida natural alcançável puramente por si mesmo" (idem, p. 130). Sempre que ele se ocupa desses bens, sem possuir vontade ou condições para penetrar em seu centro, em sua forma própria e peculiar, falta o processo a que damos o nome de cultura. A situação fica reduzida, na melhor das hipóteses, a uma assimilação externa de certos conteúdos e elementos soltos, que não chegam ou não tem como converter-se em verdadeiras forças ou motivos de cultivo do indivíduo.

 

Os problemas da cultura moderna "surgem em boa parte do fato de que se é certo que as coisas se tornam cada vez mais cultivadas, de outro lado os homens só em uma medida mínima estão em condições de alcançar a partir da perfeição do objeto a devida perfeição da vida subjetiva" (idem, p. 127). O processo civilizador coloca à disposição do sujeito mais e mais obras, ao mesmo tempo que esse mais e mais se vê excluído da sua devida compreensão. A pessoa retira da cultura um benefício mas esse não o leva a uma maior perfeição. O sujeito que procura a própria perfeição consegue no máximo a informação; das artes tira apenas o status; da ciência, só o negativo da facilidades cotidianas; da tecnologia, só o bem-estar individual. O progresso pessoal é pois forçado a cair em um esquematismo e vê-se desprovido das condições de extrair do conteúdo objetivo das coisas e idéias os meios para sustentar o refinamento da subjetividade.

 

A subjetividade, noutros termos, vai-se tornando suporte de uma cultura de massa, fragmentada e superficial, que, embora também enseje refinamentos, carece do valor com que se satisfaz o verdadeiro conceito de cultura, por ser privada do entrelaçamento interno com o elemento objetivo que estrutura o contexto civilizacional (Simmel, 1988: p. 214).

 

A explicação para tanto se encontra, segundo o pensador, no fato de a cultura moderna ter feito uma opção pelo progresso técnico em detrimento da educação dos indivíduos.

 

Conforme ele observa em "O futuro de nossa cultura" (1909):

 

"As distintas épocas históricas põem o acento de sua tarefa cultural ou bem meis no aumento dos bens culturais objetivos, ou bem mais na qualificação dos indivíduos, para a partir deles alcançar a constituição subjetiva queque constitui o sentido da cultura, em última instância" (1986: p 130).

 

A Atenas de Péricles e a Itália do século XV exemplificam períodos desse segundo caso. Na política, ciência, arte e outras práticas, possuíam uma unidade de estilo e uma simplicidade de estrutura que permitia sua apreensão por todos os que desejavam ter educação (cf. Jaeger, 1994; Burkhardt, 1973). Em nossa era ocorre o oposto: a política, a ciência, a arte etc. são movidas por forças e interesses especializados, que privam o homem da capacidade de relacionar seus conte[]dos objetivos com o desenvolvimento harmoniosos e global de sua individualidade. A pretendida formação do indivíduo, cogitada em seu início, tornou-se presa da fragmentação que desejava combater e, assim, incapaz de estancar o crescente esvaziamento valorativo da subjetividade.

 

"As figuras objetivas nas quais se encarnou [sua] vida criadora e que, em seguida, são retomada pela alma com vistas a sua cultivação desenvolvem-se de uma maneira autônoma, determinada por condições objetivas. Os sujeitos se deixam levar pela velocidade e o conteúdo da evolução das indústrias e das ciências, das artes e das organizações, contrariando ou sendo indiferentes às exigências que deveriam fazer à mesma para poderem se cultivar, para obter seu próprio aperfeiçoamento." (Simmel, 1992: p. 272-273)

 

A civilização moderna promove um estilo de vida em que os progressos materiais, o crescimento do bem estar, as melhorias da saúde, o refinamento do indivíduo não leva ao seu ao cultivo,na medida em que os referidos aspectos são vividos mecanicamente. O desenvolvimento harmoniosos e equilibrado da interioridade e do modo de vida, onde pode e logra ser procurado, é necessariamente mutilado, porque a crescente variedade, e extensão e nivelamento das esferas de valor veda o surgimento dos homens sintéticos aos quais se referia Nietzsche.

 

"Tornamo-nos mais instruídos, tornamo-nos mais finalistas, mais ricos em prazer e competências e, talvez, 'mais formados'. Entretanto nosso cultivo não guarda passo com isso, pois vamos desde um possuir e poder mais baixo até outro mais alto mas não desde o baixo até o mais elevado de nós mesmos" (Simmel, 1988: p.219).

 

Os homens vivem cada vez mais separados e têm cada vez menos contato direto com as várias esferas da vida em que vai se decompondo a cultura por motivo do crescente cuidado técnico. As transações monetárias, contratos legais e serviços burocráticos representam barreiras entre as pessoas porque, em regra, apenas uma delas recebe o que procura, apenas uma, em tese, satisfaz sua necessidade. O vendedor e o burocrata tendem a reduzir o significado do outro em termos monetários e administrativos, na medida em que seus próprios desejos deverão ser satisfeitos junto a outros indivíduos, ou, se o são, revelam um caráter formal, privado de outro conteúdo que não a sensação de poder numa relação técnico-mercantil.

 

O resultado disso é o abismo que cada vez mais se abre entre a capacidade de cultivar o próprio eu possuída pelo indivíduo e o desenvolvimento dos meios e bens com os quais a atividade do conjunto da espécie viabiliza esse processo. Os homens conhecem, empregam e usufruem de um volume cada vez maior de bens cuja estrutura interna permanece opaca e, assim, não permite que sejam englobados no curso de sua vida anímica. O homem que se pensa educado engana a si mesmo porque a vontade de usufruir de todos os recursos à disposição em seu tempo, a procura de plenitude interior, limita-se à assimilação de princípios esquemáticos e já não tem como extrair da variedade dos bens os elementos de síntese que poderiam dar sentido à empreitada.

 

Eduardo Subirats auxilia-nos a entender a posição de Simmel na história de nossa cultura, observando que, apreendida em sua raiz, a civilização moderna revela-se portadora de pelo menos duas utopias: a utopia técnica do maquinismo e a utopia filosófica do humanismo. Da aurora da era moderna até bem pouco tempo (Snow), houve uma disputa entre esses dois projetos, que, mesmo correndo o risco de simplificação, podem ser apresentados esquematicamente.

 

 

O humanismo acreditava na possibilidade da cultura permitir ao indivíduo conferir um sentido subjetivo à vida, desenvolver o sentimento de plenitude humana obtida através do desenvolvimento da sociabilidade. A realização individual estava associada à consecução de uma ordem racional e perfeita, um projeto formativo, cujo contexto não era a tecnologia, mas a interação social criadora, autêntica, harmoniosa e individualizada.

 

Paralelamente, desenvolveu-se um projeto ou concepção de vida em que o centro não era essa interação mas o maquinismo. Nasceu a idéia de que o homem do futuro seria em maior ou menor medida construído através do emprego da técnica. A técnica poderia ser motivo de ciência e convertida, enquanto expressão do poder humano e potência ordenadora da natureza, em princípio de construção da sociabilidade (Subirats, 1989).

 

O sentimento contemporâneo de que as tecnologias estão refazendo o nosso corpo e mente, somos criadores e criaturas da tecnologia, convém notar em seguimento, é sem dúvida expressão de uma verdade atemporal da cultura. O homem é modelado pelos meios técnicos com que intervém na realidade desde o princípio de sua história.

 

Ocidente moderno todavia produziu uma inovação que não pode ser ignorada, se quisermos entender e avaliar a especificidade de nossa situação. Desde o século XVII, a técnica se tornou base de uma concepção de mundo, objeto de um projeto de vida coletivo, cujo foco é o corpo e, a base, o reordenamento do mundo natural. Durante a maior parte de nossa história, a técnica foi apenas um dos elementos plasmadores da cultura e essa, onde se convertia em projeto, tinha um sentido formativo, que transcendia idealmente a ação instrumental. A técnica obedecia à princípios transcendentes e, portanto, a limites e interditos, expressos em lendas e tabus, mantendo-se confinada na lógica do utensílio artesanal.

 

No período que precede nossa era, o progresso dos meios técnicos só era buscado onde a obtenção de resultados se revelava difícil ou impossível à habilidade humana. Acreditava-se que a perfeição, embora devesse ser procurada, era um ideal inatingível para os seres humanos, apenas podia ser contemplada. A liberdade de ação humana, onde havia, estava associada ao sentimento de que seu exercício sem freio era injusto, possuía limites naturais e, portanto, o sentido de um terror, manifesto na idéia segundo a qual nem tudo é permitido.

 

O capitalismo pouco a pouco foi rompendo com essa forma de vida, terminando por converter o planeta inteiro, para o mal e para o bem, em campo de um imperialismo tecnológico. A substituição de instrumentos e utensílios pelo princípio da máquinas com que podemos associar o conceito de tecnologia remonta efetivamente à emancipação do trabalho e à Revolução Industrial.

 

As ferramentas tradicionais subsumiam-se à lógica da criação de obras e objetos, sendo pois servas da mão humana. A máquina rompe com essa lógica e, assim, a premissa de que o contexto vital é construído segundo padrões sublunares, imprecisos, perante a ordem transcendente. A capacidade de criação do sujeito humano é suplantada por aquela propiciada pelo emprego das forças naturais através de máquinas, principal campo de manifestação da "ciência da técnica" (tecnologia).

 

"Em lugar de utilidade e beleza, que são critérios mundanos, passamos a produzir coisas que, embora ainda exerçam certas funções básicas, têm sua forma determinada primordialmente pela operação da máquina. As funções básicas são naturalmente, as funções do processo vital do animal humano, visto que nenhuma outra função é basicamente necessária; o produto em si mesmo, porém, e não apenas suas variantes, mas até mesmo a mudança total para um novo produto - passa adepender inteiramente da capacidade das máquinas." (Arendt, 1993: p. 165)

 

Georg Simmel não chegou a elaborar o conceito de cultura tecnológica mas foi um dos primeiros a perceber como o princípio da máquina começou a suplantar o projeto humanista e a se tornar um valor universal. A Revolução Industrial projetara a tecnologia na era da máquina. A percepção dessa nova fase porém não foi imediata. O maquinismo não transpôs o domínio da produção fabril imediatamente. A consciência da nova era só veio quando os maquinismos tecnocientíficos começaram a povoar o cotidiano do homem com bens de consumo, nas primeiras décadas do século XX.

 

Nessa época, o capitalismo colocou-se em um novo patamar de acumulação, começando a se desfazer das velhas legitimações. O poderio tecnológico com que se associa transpôs os limites da fábrica e começou a se fazer presente na esfera cotidiana. O maquinário pesado escondido nas plantas industriais, servidores da produção, recebeu a companhia do automóvel, rádio e ventilador, servidores do consumo (Ewen, 1976).

 

A mecanização em curso nos sistemas de produção estendeu-se pouco a pouco à cadência da vida metropolitana. O transporte coletivo de massa, o telégrafo, a eletricidade começaram a colocar o espaço público na dependência da tecnociência. O telefone, o refrigerador e o gramofone puseram o princípio da máquina no espaço doméstico. Resumidamente, aconteceu o surgimento de um fantasmagoria associada à mercadoria cultural tecnológica, reforçada subjetivamente pela ação das revistas, do cinema, da publicidade e demais meios de comunicação.

 

Simmel procurou mostrar que o predomínio dos meios sobre os fins na esfera da consciência é a nota dominante dessa cultura em ascensão mas, com isso, não quer dizer que a crescente reificação tecnológica se faça às expensas do homem, porque a relação entre o homem e as coisas se forma num único contexto de inteligibilidade. Nas culturas merecedoras do nome, os artefatos de que o homem se utiliza expressam sentidos, desejos e impulsos que transcendem a relação entre sujeito e objeto (o homem e o meio técnico), remetendo a um todo significativo. "Orientamo-nos em relação a eles de acordo com as experiências emocionais de nossa natureza interior", tal como ela se deixa ordenar em uma imagem do mundo (Simmel, 1990: p. 471).

 

Para ele, a técnica é, pois, um meio mas, por outro lado, não se pode deixar de notar que, em nossa era, essa tem se tornado cada vez mais um fim, acontece um crescente predomínio dos meios sobre a alma. As pessoas pensam que os meios técnicos são forças neutras cujo valor é determinado pelos fins que damos a cada um, sem ver que seu sentido depende de um conjunto maior, da rede de objetos, e que esse tende a fugir de nosso controle em uma sociedade individualista. O resultado é a substituição do cuidado com o sentido das experiência vitais por um interesse pelas coisas, a tendência do cuidado com as coisas predominar sobre o cultivo da subjetividade.

 

A tecnologia é exaltada à revelia do que significa concretamente enquanto meio de aprimoramento do indivíduo. Destarte, louva-se a luz elétrica como se essa, por si só, conduzisse a maior perfeição do espirito, fosse algo em si mesmo importante; louva-se a máquina de lavar como se essa, por si só, modificasse o conteúdo das relações familiares, desenvolvesse a sociabilidade doméstica. A eletricidade, não resta dúvida, permite facilitar os negócios e ordenar o trânsito, mas não decide para onde as pessoas vão, o que vão negociar e como vão dirigir; os eletrodomésticos simplificam as rotinas cotidianas e permitem poupar tempo com certas tarefas, mas em si mesmos não modificam o indivíduo.

 

"O êxtase das pessoas para com os triunfos do telégrafo e do telefone geralmente leva-as a desconsiderar o fato de que o que realmente importa é o valor do que se tem a dizer e que, comparada com isso, a velocidade ou vagar dos meios de comunicação é, em geral, uma preocupação que só alcançou a presente situação ilegitimamente." (1990: p. 482)

 

Destarte, verifica-se atualmente que o progresso das tecnologias de vídeo contrasta com o primariedade dos programas preferidos pelo público, e os computadores de última geração não têm o poder de mudar o conteúdo da comunicação. O ciberespaço e as técnicas recém-inventadas descortinam possibilidades de crescimento individual. A reflexão sobre o fato sugere, porém, que o simples acesso a elas não leva a tanto. O emprego da técnica segue um padrão que tem origem em fatores extra-tecnológicos. A experiência revela, por exemplo, que as tecnologias mais avançadas não só não eliminam a violência sexual contra crianças e o racismo mas fornecem-lhes novos instrumentos.

 

Os computadores pretensamente inteligentes, desejemos ou não, podem ser usados para veicular os pensamentos mais arcaicos: a realidade virtual não está livre e não nos livra dos pesadelos da vida real porque, vendo bem, as máquinas podem ser usadas como uma forma de sublimá-los tecnicamente. As patologias culturais são produto de certas formas de interação social e somente se o homem as modificar poderá, em tese, descobrir sua solução.

 

O emprego das técnicas depende das condições históricas e sociais em que se dá a trajetória formativa do individuo. A circunstância dessas condições apoiarem-se cada vez mais na técnica tem, porém, um efeito, que é o surgimento de uma cultura tecnológica, a transformação da própria tecnologia em nexo imaginário.

 

Simmel anuncia a dialética do esclarecimento ao notar que "o pensamento mitológico não está fora de casa dentro da visão de mundo científico naturalista". O pensamento orgulhoso de sua objetividade e liberdade perante o mito revela o oposto dessas pretensões, na medida em que, ao entusiamo pela nova cultura tecnológica, não é estranha a velha metafísica especulativa: a tentação de determinar o modo de ser do homem como peça de uma engrenagem puramente científica e tecnológica.

 

Os contemporâneos cometeram o erro de tomar os meios com fins, levantando uma barreira de meios técnicos entre eles e seu próprio ser mais profundo, entre eles e sua alma e, assim, a subjetividade vai se tornando cada vez mais implicada em agenciamentos técnicos, até o ponto de ela mesma passa a se ver e se inebriar como maquinismo ou parte de um ambiente totalmente maquinístico.

 

A consciência crítica é sabedora de que essa situação é ideológica, pois embora seja verdade que as tecnologias venham promovendo uma revolução em searas sempre mais amplas de nosso modo de vida, parece claro que só no imaginário poderão resolver os problemas centrais a nós colocados pela vida cultural.

 

No momento, a civilização contemporânea é cada vez mais tecnológica apenas superficialmente, "permanecendo, como tal, tão oculta como para os selvagens o sentido dos procedimentos mágicos do feiticeiro", para empregarmos a expressão de um contemporâneo e amigo do pensador, Max Weber. A sabedoria que nos recomenda a cautela de não tomar o real por um de seus momentos também não deveria nos fechar os olhos porém para o fato de que estamos chegando a um estágio em que a fantasia mais insensata pode se tornar factível, nenhuma idéia está a salvo dos planos de materialização tecnológica. O futuro é cada vez mais curto. Confirmando a tese heideggeriana segundo a qual a essência da técnica é a vontade de vontade, a submissão da vida a nosso domínio, a revolução tecnológica em curso permite supor que talvez chegue o dia que os fanáticos por ela gerados venham a separar seus cérebros do corpo e conectá-los aos circuitos integrados das máquinas.

 

Em sociedades passadas, o devotamento as mais variadas causas exigiu sacrifícios rituais que incluíam até mesmo a castração e o suicídio, de tal modo que não se deve descartar a possibilidade de o homem do futuro confirmar as fantasias da ficção científica e vir a se fundir com o aparato tecnológico, levando a cabo a tragédia da cultura da qual nos falava Simmel.

 

 

 

BIBLIOGRAFIA

 

ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense, 1993.

 

ELLUL, Jacques. La technique o l'enjeu du siécle. Paris: Armand Colin, 1954.

 

HEIDEGGER, Martin. Essais et conferences. Paris: Gallimard, 1986.

 

JAEGER, Werner. Paidéia. São Paulo: Martins Fontes, 1994.

 

KAUFMAN-OSBORN, Timothy. Creatures of Prometheus. Lanham (MD): Rowman & Littlefield, 1997.

 

KROKER, D. & WEINSTEIN, M. Data Trash. Nova York: St. Martin's Press, 1994.

 

LEVY, Pierre. As tecnologias da inteligência. Rio de Janeiro: Editora 34, 1993.

 

MARTINS, Hermínio "Tecnologia, modernidade e política". In öLua Nova 40 (282-320) 1997.

 

SIMMEL, Georg. The philosophy of money. Londres: Routledge, 1990.

 

______ El individuo y la libertad. Barcelona: Península, 1986.

 

______ La aventura. Barcelona: Península, 1988.

 

______ Philosophie de la modernité. Paris: Payot, 1992.

 

SUBIRATS, Eduardo. A cultura como espetáculo. São Paulo: Nobel, 1989.