® InfoJur.ccj.ufsc.br

O tempo dos professores?
Conhecimento e poder: de uma intervenção acrescida na vida política a uma nova centralidade no processo educativo

António Teodoro
Forum Educação



 
 

1. O conhecimento e a informação constituem hoje uma força produtiva directa. A ciência moderna, ao gerar, pela primeira vez de uma forma generalizada, um saber tecnicamente utilizável, transformou o conhecimento na primeira força produtiva e numa variável determinante do desenvolvimento. Esta constatação trouxe profundas consequências à formulação das estratégias de desenvolvimento humano, atribuindo aos sistemas que produzem conhecimento (educação e ciência) um novo lugar e uma nova prioridade.

Os professores, individualmente e como grupo profissional, são detentores de conhecimento e de informação, ou seja, de um capital cultural assinalável. A questão que então se coloca, como bem interroga Magali Larson (1988:151), é a de saber se a posse de um conhecimento científico e técnico pode conferir directamente poder político a quem o possui.

A resposta de John K. Galbraith, na sua obra clássica O Novo Estado Industrial (1989; ed. or. 1967), é claramente afirmativa, comparando mesmo a posição actual dos "educadores e dos cientistas que trabalham nas escolas, nas universidades e nos centros de investigação" com a da "comunidade dos banqueiros e de financeiros nos primeiros estádios do desenvolvimento". Por exagerada que pareça a afirmação, Galbraith justifica-a do seguinte modo:

"O capital era decisivo, e constituiu-se uma vasta rede de bancos, de caixas de poupança, de companhias de seguros, de corretores e de bancos de financiamento, que tinham como objectivo a mobilização das poupanças e, por conseguinte, as necessidades de capital. Na empresa madura [...], o factor decisivo é o talento qualificado. Assim, constituiu-se um complexo semelhante de instituições de ensino para suprir essa necessidade. e os valores e as atitudes da sociedade também se alteraram adequadamente de forma a reforçar essa mudança. Quando a poupança e o capital eram factores decisivos, a mais aplaudida das virtudes sociais era a frugalidade. [...] À medida que a mão-de-obra qualificada se foi tornando importante, a virtude da frugalidade passou a ter conotações de antiguidade e mesmo de excentricidade. Em vez dela, passou a educação a ser considerada como o objectivo social mais solene" (1989:231).

Galbraith defende então que, tal como sucedia antigamente com a comunidade dos financeiros, o prestígio do que designa classe dos educadores e dos cientistas decorre do factor produtivo que fornecem e, pelo menos potencialmente, este é também uma fonte de poder (1989:231). Como corolário desta constatação, Galbraith contraria a opinião de que a comunidade intelectual deve ter um papel "profissionalmente passivo", de que a sua missão consiste "em pensar e sentir, mas não em agir", advogando, em alternativa, que os educadores e cientistas devem assumir todas as responsabilidades "pelas consequências da ciência e da tecnologia", o que passa por uma intervenção activa na vida política, "seja por eleição ou por nomeação" (1989:303-305).

Numa sociedade onde a ciência se converteu na expressão suprema do racionalismo ocidental, destronando, para planos secundários, outros sistemas de conhecimento ou de autoridade, como sublinha Magali Larson (1988), trata-se de uma transferência de poder do capitalsimbólico acumulado em determinados campos científicos e culturais para outro poder mais directamente político (ver, também, Larson, 1989).

2. Numa pesquisa que realizámos sobre a intervenção dos professores na vida política portuguesa, abarcando a segunda metade da década de 70 e a década de 80 (Teodoro, 1994), constatámos que os professores constituíam um dos grupos profissionais mais representados na chamada classe política. O primeiro grupo profissional nos executivos (presidentes e vereadores) das Câmaras Municipais, o segundo, depois dos advogados e juristas, na Assembleia da República, e, conjuntamente com os engenheiros, advogados e economistas, o de mais larga representação no Governo (ministros e secretários de Estado).

Essa tendência manteve-se, e reforçou-se, com o Governo saído das eleições de Outubro de 1995, presidido pelo engº António Guterres, onde, na sua primeira composição, cerca de 40% dos ministros possuíam um doutoramento, sendo, a tempo integral ou parcial, professores universitários. Uma tal composição do Conselho de Ministros levou mesmo um comentador económico de um prestigiado semanário a afirmar que "a ascensão ao poder daquela nova élite dirigente pode significar que, em Portugal, se vão dar passos importantes no aparelho de Estado que permitam a emergência da sociedade do saber (Azevedo, 1995).

3. No trabalho referido (Teodoro, 1994), procurámos apresentar um conjunto de quatro hipóteses que, em nosso entender, podem permitir compreender as razões deste incremento de intervenção política dos professores no seu conjunto, embora, como assinalámos na ocasião, essa intervenção seja dominantemente masculina, seguindo a tendência geral em toda a actividade política, e bastante diversificada consoante os níveis de poder político e de grau de ensino (a presença de professores ao nível do Governo está praticamente restringida aos docentes universitários).

A primeira hipótese está associada ao facto da lógica do exercício do poder se basear numa função de representação (Aguiar, 1988). Os professores constituem na sociedade portuguesa um dos maiores grupos profissionais e, seguramente, o mais numeroso grupo profissional de trabalhadores intelectuais (Teodoro, 1994a) e posicionam-se e assumem-se, pelo menos os professores dos ensinos básico e secundário e os educadores de infância, como pertencente às classes médias (Braga da Cruz et al., 1989), tomando como elementos de referência as condições de vida e a auto-atribuição de prestígio social. Acrescente-se que o acesso à profissão docente tem representado, para a maioria dos seus membros, um importante factor de mobilidade social ascendente (Braga da Cruz et al., 1989; no plano histórico, consultar: Mónica, 1978; Nóvoa, II, 1987; Nóvoa, 1991; e, Benavente, 1990).

Pudémos então afirmar que:

"Constituindo [...] os professores um grupo profissional numeroso, pertencente às classes médias mas proveniente de estratos sociais mais baixos, e sendo a política uma actividade de representação de interesses sociais, económicos e culturais, a presença de um elevado número de professores entre os titulares de cargos políticos pode ser entendida, nomeadamente a nível autátrquico e parlamentar, como a representação de camadas sociais e de interesses emergentes na sociedade portuguesa" (Teodoro, 1994:239).

A esta hipótese associámos uma outra, que continua a necessitar todavia de verificação, através de metodologias de análise apropriadas (estudando nomeadamente os percursos de vida profissional e política de uma amostra representativa dos titulares políticos):

"[...] a actividade política [pode representar] a continuação do processo de mobilidade social ascendente, que a própria profissão docente já representa para a maioria dos seus membros, mas que se mostra insuficiente para as aspirações de alguns" (Teodoro, 1994: 239).

A segunda hipótese aparece associada à teoria do campo político de Pierre Bourdieu (1989), para quem as condições necessárias à participação activa na política são a posse de tempo livre e de capital - "que pode existir no estado objectivado, em forma de propriedades materiais, ou, no caso de capital cultural, no estado incorporado, e que pode ser juridicamente garantido" (Bourdieu, 1989:134). O conhecimento e a informação, a cultura no seu sentido amplo, constituem formas de capital cultural, que dão aos que o possuem um poder simbólico, "geralmente chamado prestígio, reputação, fama, etc. que é a forma percebida e reconhecida como legítima das diferentes espécies de capital" (Bourdieu, 1989: 134-5).

Como escrevemos na altura:

"Simplificando, pode-se afirmar que os professores possuem as duas condições colocadas por Bourdieu para uma participação activa na vida política. Possuem tempo livre, fruto de um horário de trabalho flexível; e, possuem o capital cultural que resulta de uma prolongada escolarização e de uma actividade intelectual continuada" (Teodoro, 1994:241).

A terceira hipótese encontra-se associada à tese de Habermas (1987; ed. or. 1968) de que existe uma tendência para a cientifização das políticas, havendo uma transferência de poder da "competência profissional de funcionários com preparação jurídica" (1987:107) para uma nova fase de racionalização de dominação burocrática dos Estados modernos. Como diz Habermas:

"Não é que os cientistas tenham tomado o poder no Estado; o exercício da dominação no interior e a afirmação de poder perante os inimigos externos já não estão racionalizados só pela mediação de uma actividade administrativa organizada segundo o princípio da divisão do trabalho, regulada segundo as competências, ligada a normas positivas, mas foram, pelo contrário, modificados mais uma vez na sua estrutura pela legalidade efectiva das novas tecnologias e estratégias" (1987:108).

Esta transferência de poder de competência profissional é bem visível na perda relativa de importância nos orgãos de decisão política dos advogados e juristas, e na subida de importância de outros grupos profissionais, em particular economistas e engenheiros, sobretudo quando apresentam um curriculum académico e científico relevante. Esta tendência justifica, em larga medida, o acréscimo de participação de docentes universitários no Governo - e não apenas, nem fundamentalmente, na área do direito -, procurando transferir para a resolução dos problemas da sociedade um conhecimento e um capital simbólico adquiridos em campos científicos bem definidos, como lembra Larson (1988, 1989).

A quarta hipótese parte, simultaneamente, do conceito de Henry Giroux das escolas como esferas públicas democráticas, encaradas como lugares democráticos dedicados a potenciar, de diversas formas, a pessoa e a sociedade, retomando "a ideia de democracia crítica, entendida como um movimento social que impulsiona a liberdade individual e a justiça social" (1990:34-35), e do conceito de intelectual em Gramsci, que refuta a ideia de que a natureza do trabalho intelectual é determinada pela posição de classe, ou, na leitura que dele fazem Aronowitz e Giroux, "não há correspondência directa entre a posição de classe e a consciência, mas existe uma correspondência entre a função social do trabalho intelectual e a relação particular que este tem para modificar, desafiar ou reproduzir a sociedade dominante" (1992:155).

Com base nestes pressupostos teóricos, Aronowitz e Giroux fundamentam a tese de que o tratamento dos professores como intelectuais - por um lado não têm "controle sobre o aparelho educativo como um todo", mas, por outro, têm "realmente algum controle sobre a natureza do processo de trabalho" (1992:161) - os coloca "no centro da discussão dos novos movimentos sociais, dos novos espaços de contestação e das contradições do capital cultural" (1992:149). E, acrescentámos então, "em condições particularmente propícias a uma participação ampla no debate político" (Teodoro, 1994:245).

4. Na situação dos professores constatamos hoje um evidente paradoxo: a uma intervenção acrescida dos professores na vida política e, mesmo, a uma maior centralidade da educação nos processos de desenvolvimento das sociedades, tem vindo a corresponder uma diminuição da relevância social dos professores e do próprio crédito social da escola, enquanto instituição de socialização e de formação.

José Alberto Correia, referindo-se especificamente ao campo pedagógico, tem chamado a atenção para o facto da "tendência para a pedagogização da sociedade" ser acompanhada pela "periferialização dos pedagogos" (1994). Explicitando:

"Paradoxalmente, ou talvez não, esta importância social acrescida do campo educativo e de uma acção pedagógica que já não se confina a ele não implicou um poder acrescido dos pedagogos profissionais na estruturação da vida social ou na determinação das lógicas estruturantes das suas práticas, mesmo quando elas se confinam à escola" (1994:13).

5. A superação deste paradoxo constitui, temo-lo defendido, um contributo fundamental para a superação da própria crise da escola. Isto é, uma maior relevância e centralidade dos professores no processo educativo contribuirá não apenas para criar condições favoráveis à reconstrução de novas identidades profissionais nos professores, ultrapassando a profunda crise de identidade vivida no presente, mas igualmente para encontrar respostas, com eficacidade acrescida, à chamada crise da escola, que é, antes de tudo, a crise do modelo da escola de massas construído desde o século XVIII.

Face a dois modelos antagónicos de produção da profissionalidade docente - "o modelo do professor definido pela sua expertise didáctica e o modelo do professor como intelectual reflexivo, crítico e transformante, construído na reabilitação do militante pedagógico", segundo Correia (1994:15) -, só o segundo modelo, o do professor como intelectual reflexivo, se encontra em condições de combater a tendência para a periferialização dos pedagogos e de dar à profissão docente uma nova centralidade no processo educativo.

Seguir este caminho implica políticas públicas no domínio da formação inicial e contínua dos progessores, da gestão dos curricula e dos programas, da direcção das escolas e da administração educativa, dos direitos sociais e profissionais dos prodessores e educadores. Mas exige, igualmente, dos próprios professores e educadores, individualmente considerados e através das suas organizações profissionais representativas, protagonismo e iniciativa, abandonando a atitude meramente defensiva face a todo o propósito de mudança, e mostrando-se capaz de estabelecer novas alianças sociais, centradas numa forte presença e intervenção comunitária.

Referências bibliográficas:

Aguiar, Joaquim (1988). Democracia pluralista, partidos políticos e relação de representação. Análise Social, 100 (vol. XXIV), pp. 59-76.

Aronowitz, Stanley e Giroux, Henry A. (1992). Educação radical e intelectuais transformadores. In Esteves, A. J. e Stoer, S. R., orgs. A Sociologia na Escola. Professores, Educação e Desenvolvimento. Porto: Edições Afrontamento, pp. 143-166.

Azevedo, Virgílio (1995). Os doutorados no Poder. Expresso, suplemento Economia, 1 Dezembro 1995, p. 3.

Benavente, Ana (1990). Escola, Professoras e Processos de Mudança. Lisboa: Livros Horizonte.

Bourdieu, Pierre (1989). O Poder Simbólico. Lisboa: DIFEL.

Braga da Cruz, Manuel et al. (1989). A Situação do Professor em Portugal. Relatório da Comissão criada pelo Despacho 114/ME/88 do Ministro da Educação. Lisboa: Análise Social /Separata XXIV (103-104).

Correia, José Alberto (1994). A Educação em Portugal no limiar do século XXI: perspectivas de desenvolvimento futuro. Educação, Sociedade & Culturas, 2, pp. 7-30.

Galbraith, John K. (1989). O Novo Estado Industrial. Lisboa: Publicações Europa-América.

Giroux, Henry A. (1990). Los Profesores como Intelectuales. Hacia una pedagogia critica del aprendizaje. Barcelona: Ediciones Paidos/MEC.

Habermas, Jürgen (1987). Técnica e Ciência como "Ideologia". Lisboa: Edições 70.

Larson, Magali S. (1988). El poder de los expertos. Ciência y éducación de masas como fundamentos de una ideologia. Revista de Educación, 285, pp. 151-189.

Larson, Magali S. (1989). Acerca de los expertos y los profesionales o la imposibilidad de haberlo dicho todo. Revista de Educación, Extrordinário: Los usos de la comparación en Ciencias Sociales y en Educación, pp. 199-225.

Mónica, Maria Filomena (1978). Educação e Sociedade no Portugal de Salazar. Lisboa: Editorial Presença/Gabinete de Investigações Sociais.

Nóvoa, António (1987). Le Temps des Professeurs. Analyse socio-historique de la profession enseignante au Portugal. XVIII è - XX è siècle, vol. I e II. Lisboa: Instituto Nacional de Investigação Científica.

Nóvoa, António (1991). Os Professores: Quem são? Donde vêm? Para onde vão?. In Stoer, S. R., org. Educação, Ciências Sociais e Realidade Portuguesa. Uma abordagem interdisciplinar. Porto: Edições Afrontamento, pp. 59-130.

Teodoro, António (1994). Política Educativa em Portugal. Educação, Desenvolvimento e Participação Política dos Professores. Venda Nova : Bertrand Editora.

Teodoro, António (1994a). A Carreira Docente. Formação, Avaliação, Progressão. Lisboa: Texto Editora.