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PROFESSOR WAGNER BALERA
Quero consignar meus agradecimentos pelo
convite que a Escola Judicial me formulou para participar do Seminário de
Direito Social e dizer aos senhores que vou procurar expor algumas idéias a
respeito desse tema da Privatização da Previdência Social e não propriamente
fazer uma conferência. Vou fazer uma reflexão sobre o tema que espero possa
contribuir para o debate em assunto que
está começando, digamos assim, a interessar a nossa comunidade.
Esta reflexão vai ser dividida em quatro
partes: inicialmente, eu gostaria de lhes falar sobre o que tem sido chamado
"A crise dos sistemas de Previdência Social no mundo e os reflexos dessa
crise no Brasil". Em segundo lugar, farei uma análise sucinta das
propostas que se apresentam para a solução dessa crise. Prosseguirei, em
seguida, apresentando os modelos de seguridade social que podem ser objeto de
implantação numa reformulação do sistema e, afinal, analisarei o que se tem de
privatização, na proposta de Emenda Constitucional que está em debate no
Congresso Nacional neste tempo.
Então, em primeiro lugar, o que se tem
chamado A Crise dos Sistemas de Previdência Social. Já vem de alguns anos,
cerca de 20 anos aproximadamente, que os estudos dos especialistas
internacionais têm demonstrado que o formato do modelo de Seguridade Social,
que vigora na maior parte dos países civilizados, padece de alguns vícios que
decorrem especificamente da situação econômica mundial ter se deteriorado em
rumos diversos daqueles que tinham projetado o modelo.
São três os fatores que revelam essa crise
especificamente: em primeiro lugar, um assunto que certamente é familiar aos
magistrados do trabalho - as mudanças
que o mercado de trabalho sofreu ao longo desse período dos últimos 20 anos. De
fato, o mercado de trabalho marcadamente industrial, basta dizer que a primeira
reforma conceitual de seguridade foi apresentada pelo relatório do Lord
Beveridge, em 1942, na Inglaterra e considerava que 80% da força de trabalho
segurada dos Sistemas de Seguridade era constituída de operários, trabalhadores
na indústria. Então, é sob esse modelo que o sistema foi concebido. E a verdade
é que o mercado de trabalho deixou de ser predominantemente industrial para ser
um mercado de serviços, o que modifica, portanto, o perfil das relações
jurídicas que se constituem nessa seara. De outra parte, ainda no mundo do
trabalho, novas formas de trabalho são caracterizadas, e que nem sempre estão
conforme com o modelo tradicional de prestação de serviços que prevalece ainda
nos nossos dias. Por exemplo: a parceria, o trabalho autônomo, o trabalho em
domicílio, etc.
Ademais, o mercado de trabalho sofreu
impactos significativos que não eram considerados no período de concepção do
regime de Seguridade Social e que dizem respeito, exemplificativamente, à
participação das mulheres. O que isto especificamente, tem que ver com o
Sistema de Seguridade Social? Tem que ver que o Sistema de Seguridade Social
funciona baseado em certa idéia de família que se modificou com a introdução
das mulheres no mercado de trabalho. Novas exigências para o sistema são
colocadas na medida em que é preciso
cuidar agora de auxílio às famílias e especificamente de cuidar dos familiares
do trabalhador e da trabalhadora. Tudo a mostrar a caducidade do modelo originalmente
concebido. Então, este é o primeiro fator de crise: as modificações que o
mercado de trabalho apresentou, marcadamente nos últimos tempos.
Por outro lado, a estrutura demográfica no
mundo e, notadamente, na América Latina, sofreu alterações muito
significativas. Dir-se-á, para quem olha o fenômeno de certo ângulo, que essas
alterações foram favoráveis à população, mas elas são, enquanto tais,
desfavoráveis aos Sistemas de Seguridade. De fato o sistema contava com uma
sobrevida da população que hoje é muito maior, portanto o sistema fica
onerado com o novo patamar de sobrevida
da população. Por outro lado, o sistema contava com taxas progressivas de
natalidade que não se verificaram na prática, no mundo empírico e, portanto,
isto faz com que menor número de trabalhadores ingressem no mercado formal de
trabalho enquanto a sobrevida da população significa que menos pessoas entram e
mais pessoas permanecem no sistema, agravando o conjunto econômico e financeiro
da Seguridade Social.
Ainda cumpre apontar como vetor desta crise
que, frise-se, não é brasileira, é mundial, o papel das famílias nos apoios
institucionais à comunidade previdenciária. Outrora a família cumpria um papel
de seguridade, isto desde épocas remotas, e hoje a família sai de cena, por
assim dizer, neste papel social. A família deixa de ter posição protetora das
pessoas, tanto das crianças quanto dos velhos, que passam a ter necessariamente
de se socorrer do Estado protetor para poderem sobreviver. Então, são esses os
três fatores que a reflexão internacional tem apontado como fatores de crise do Sistema de
Seguridade a justificar as mudanças que esse sistema deverá sofrer para
prosseguir na sua caminhada no horizonte do ano 2000.
A propósito, a Organização Internacional do
Trabalho, quando o Sistema de Seguridade completava o seu primeiro centenário
(1983), solicitou a um grupo de especialistas capitaniados pelo professor Brian
Smith, da London School, que fizesse
precisamente um diagnóstico a respeito da crise que acabamos de referir e de
propostas de solução para ela. Esse diagnóstico está compendiado em um estudo
que se denomina "A Seguridade Social na perspectiva do ano 2000", foi
traduzido para o português por Celso Barroso Leite e publicado aqui pela
Editora LTR. Nesse documento, onde essas causas da crise também vêm
registradas, são propostas algumas formas de superação da crise, mas dentro do
marco institucional da seguridade como concebida inicialmente, isto é, um
sistema de seguro social acompanhado de serviços sociais. Portanto, o modelo
tradicional, o modelo por todos conhecido.
A análise que a doutrina tem realizado sobre
a crise demonstra que é necessária a introdução de novos mecanismos de proteção
social aptos a superar a crise. Estas análises demonstram, entre outros
fatores, que os trabalhadores não se satisfazem mais com o padrão
previdenciário atualmente existente. Isto, além de ser um fator de crise,
justifica a introdução de novas formas de proteção social. Os trabalhadores
querem se sentir mais seguros e o mundo onde os atormenta especificamente o
fenômeno do desemprego, desemprego nas suas diversas facetas, mais
especificamente, dado estatístico considerável, o chamado desemprego
estrutural. A economia já conta, então, com um
exército necessário, digamos assim, de desempregados. Portanto, os
trabalhadores exigem modalidade de proteção que o sistema de seguridade não
contemplava com esse nível de complexidade. É uma exigência do sistema a
apresentação de planos que têm sido chamados uma segunda rede de proteção social.
Para além dos riscos tradicionais, protegidos pelo sistema, doença, velhice, invalidez e morte, a
proteção aos desempregados tem consistido no grande fator de preocupação da
massa de trabalhadores nos últimos tempos.
Quais são as propostas de reforma que - a
partir desse diagnóstico de ser preciso mudar a seguridade social - têm sido
apresentadas? Aí nós temos propostas que vão de um extremo a outro do espectro
ideológico, uma vez que se trata notoriamente de discussão ideológica, já que a
seguridade se encaixa como um elemento de política social do Estado
contemporâneo.
A proposta mais radical de reformulação é
precisamente esta que faz jus ao título dessa exposição: Privatização. A partir
de que momento se introduz, na cena dos debates doutrinários e institucionais
dos Estados, o tema da privatização? Ele vem a lume a partir da reforma que se
dá no sistema previdenciário chileno, em 1982. Em 1982, através do equivalente chileno à Medida
Provisória, o Decreto-Lei número 3500, o governo chileno transformou por
completo o sistema previdenciário daquele país, criando o que vem sendo chamado
por especialistas de um "Fundo Individual de Capitalização", ou dito
no nosso linguajar popular brasileiro uma Caderneta de Poupança, com característica
específica: é compulsória. Então, ao invés
de um seguro social nos moldes do Estado, um fundo individual de
capitalização irá garantir, com os seus rendimentos, um benefício para aquele
trabalhador. Caracteriza esse fundo de capitalização individual o fato não apenas
de ser compulsório, como ser de
contribuição exclusiva do trabalhador. É o primeiro dado de inovação do
sistema. Os empregadores que, desde o modelo alemão de 1883, faziam parte dos
contribuintes obrigatórios do sistema, não mais contribuem para a previdência
dos trabalhadores. O trabalhador é quem, exclusivamente, aporta recursos a esse
fundo individual de capitalização que proverá a sua seguridade no futuro. O
sistema chileno previu a opção dos trabalhadores pelo novo modelo, mais ou
menos como no sistema brasileiro foi
prevista a opção pelo Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, isto é,
opção que leva de forma tão sedutora as pessoas a optarem, que praticamente não
existe como opção na acepção jurídica do termo. Quase 90% dos trabalhadores
chilenos aderiram ao novo sistema, por força de circunstâncias, e é assim,
agora, praticamente com toda a massa que ingressa no mercado de trabalho, porque já não há mais opção para quem não
tinha previdência antes; a opção é para os trabalhadores que já estavam no
mercado de trabalho em 1982. Dali para frente o ingresso no sistema privado é
compulsório. Mas hoje, como dizia, 90% dos trabalhadores estão vinculados aos
planos privados.
Esses planos são administrados por entidades
privadas sem similar no direito brasileiro, mas são como seguradoras incumbidas
de um seguro do ramo vida, seguro que toma esse formato de seguro de
capitalização para fim de aposentadoria. Elas são chamadas Administradoras de
Fundos de Pensão - AFP. São de livre constituição; há algumas regras legais
para efeito de autorização governamental para funcionamento dessas entidades,
mas são de livre constituição e podem inclusive ser constituídas por
trabalhadores. No perfil atual do sistema chileno estão em funcionamento doze
entidades, doze administradoras de fundos de pensão. Eram originalmente
quatorze e duas delas, nesse período, sofreram dificuldades financeiras e foram
absorvidas pelas demais. Destas doze, quatro detêm quase 80% das contas
individuais de trabalhadores e essas quatro têm uma característica peculiar,
são propriedade de empresas de capital estrangeiro.
As administradoras de fundos de pensão são
controladas pelo poder público em atividade de fiscalização, através de
superintendência de controle das administradoras de fundos de pensão. A
legislação prevê que o Estado garantirá - na hipótese do rendimento do fundo
individual não ser suficiente para manter o trabalhador e sua família, nas
hipóteses dos riscos sociais previsíveis - uma renda mínima, que corresponde
hoje a 85% do salário mínimo dos trabalhadores. Isto é o que tem sido chamado
de Privatização da Previdência Social: a implantação do modelo chileno, pelo
qual o Estado sai de cena, restando empresas privadas que vendem este seguro
previdenciário compulsório, a ser constituído de fundos capitalizados
exclusivamente por contribuições dos trabalhadores.
Não foi fácil à doutrina previdenciária
aceitar essa concepção. Especificamente ela mereceu críticas - das mais
veementes - de dois autorizados especialistas de Seguridade Social dos nossos
tempos. Dois técnicos da Organização Internacional do Trabalho - Colin Gillion
e Alejandro Bonilla - em estudo que se encontra publicado na Revista
Internacional do Trabalho, número 111 - observaram em resumo no que este modelo se contrapõe à idéia tradicional de
Seguridade Social, que está na cabeça de cada um de nós. Em primeiro lugar -
dizem Gillion e Bonilla, no documento que se espalhou pelo mundo na crítica que
se fez ao sistema - é estranhável a inexistência de laços de solidariedade
entre os trabalhadores. Esta é uma característica da Seguridade Social desde os
primórdios em que o homem pensa em ter previdência. Partir da idéia do
mutualismo, pacto de sobrevivência coletiva, o que dá origem ao modelo
previdenciário. As pessoas, isoladamente, não são aptas a cuidar da sua própria
proteção. Elas precisam do grupo, para que o grupo garanta a proteção dos seus
membros. Isso é embrionário na concepção de previdência e de seguridade social.
Pois bem, o modelo de proteção social
engendrado no Chile acaba com esta solidariedade entre os trabalhadores e,
portanto, já com esta nota não poderia ser propriamente chamado de previdência
na acepção tradicional do tema.
Segundo
nota crítica que Gillion e Bonilla apresentam, nem o governo, nem os
empregadores, assumem qualquer responsabilidade por esse sistema. O governo, de
certo modo, é apenas um fiscal, tal como aqui faz com os bancos. É o fiscal da
atuação das entidades privadas, mas não tem qualquer participação ativa na
constituição dos fundos, na
fiscalização das aplicações patrimoniais que esses fundos capitalizam e nem
mesmo na distribuição dos benefícios gerados por esses fundos.
Finalmente, a crítica mais importante que
esses especialistas fazem é a inexistência da chamada solidariedade
intergeracional que, aliás, é característica também universal dos modelos de seguridade.
A seguridade quer trazer o que se chama "a solidariedade entre
gerações", de tal modo que a geração presente financia os benefícios e
serviços devidos à geração passada, e assim sucessivamente, ao longo das
gerações. Pois bem, este modelo, que se esgota em si mesmo, não tem qualquer
matiz de solidariedade entre gerações. É a crítica que se faz ao modelo chileno
como concepção de privatização do sistema previdenciário.
A prática tem revelado que não é possível,
hoje, fazer-se um diagnóstico do sucesso ou insucesso dessa proposta. Em primeiro lugar, porque com a
capitalização que se verificou através desses fundos, a economia chilena sofreu
notável impacto em ritmo de desenvolvimento, de tal sorte que hoje o Chile, ao
contrário do que ocorre com todos os outros países da América Latina, é um
exportador de capital. Não há mais onde investir, no Chile, com o incremento de
poupanças verificadas pelos fundos de pensão chilenos. O Chile está exportando
capital, começa a investir grandemente no Peru e em outros países e faz parte
agora desses capitalistas internacionais que financiam os planos de outros
lugares do mundo. O que não significa necessariamente que esses capitais foram
investidos na erradicação da pobreza que é notória em vários setores da comunidade
chilena.
Um outro dado é que, com essa capitalização
inicial expressiva, os investimentos têm uma rentabilidade maior na sua
conformação inicial. Então as taxas de rentabilidade que o sistema chileno têm
apresentado são expressivas em termos econômicos, mas os próprios formuladores
do sistema sabem que essas taxas, em hipótese nenhuma, irão prevalecer ao longo
do tempo de maturação necessário à avaliação crítica do sistema. De fato, taxas
de crescimento da ordem média de 14% - como as que se verificaram de 82 até 93
- não vão mais se repetir, uma vez que o crescimento médio da economia dos
países em estágio de desenvolvimento semelhante ao Chile é da ordem de 3% a 4%.
Então, não haverá o incremento permanente
desse retorno de investimento que hoje
em dia é ainda um dado de realidade. Por outro lado, o diagnóstico não pode ser tão otimista, uma vez que a fase de
capitalização só começa a produzir reflexão
segura, do ponto de vista econômico e atuarial, a partir do momento em
que os que estão ingressando no sistema começam a fazer jus às prestações de
benefícios que o sistema proporciona. Isso somente se verificará se até lá
ainda prevalecer o modelo a partir do ano 2020, quando então estará maturado
efetivamente o quadro de todos os contribuintes e beneficiários do sistema.
Qualquer diagnóstico que se faça, hoje, a respeito do sucesso do modelo
Chileno, é prematuro e, do ponto de vista técnico, inteiramente insustentável.
Mas é verdade que essa idéia ganhou o favor de inúmeros especialistas que têm
sustentado ser ela a salvação dos sistemas de seguridade social. E há, pelo
menos, no Brasil, três propostas que defendem, com algumas modificações, a
implantação desse mesmo modelo entre nós. De fato, a primeira dessas propostas
é a do Instituto Liberal do Rio de Janeiro, que apresentou um alentado
documento - inclusive acompanhado de projeto de lei - propugnando pela
privatização do Sistema Previdenciário Brasileiro. A outra proposta é da
Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, também na mesma linha e,
finalmente, a proposta do economista Paulo Rabelo de Castro. São as três
propostas de privatização que estão sobre a mesa de discussão no cenário
político institucional brasileiro.
Uma outra proposta de reforma para a
superação da crise do Sistema de Seguridade é a que se baseia naquilo que os
técnicos da Organização Internacional do Trabalho têm denominado os três
pilares. O Sistema de Seguridade contemporâneo está baseado em uma previdência
básica, devida a todos, que é garantida pelo Estado. São cento e setenta e dois
países que oficialmente têm algum sistema previdenciário. Desses cento e
setenta e dois países, 80% (oitenta por cento) garantem uma previdência básica
para todos os trabalhadores e os seus dependentes, constituída por um soldo mínimo,
que garante a doença, a velhice, a invalidez e a pensão para os sobreviventes
(pensão por morte). Essa seria a previdência básica.
Um segundo pilar seria uma previdência complementar pública, pela qual o Estado
constituiria um fundo complementar de natureza facultativa, pelo qual os
trabalhadores melhor aquinhoados em termos de remuneração poderiam fazer um
plano de complementação de aposentadorias gerido pelo Estado. A idéia não é
nova. A Lei Orgânica da Previdência Social de 1960 já previa que a Previdência
Social poderia constituir um seguro complementar facultativo para os
trabalhadores de maior renda.
E o terceiro pilar seria o dos fundos
privados de previdência - o que no Brasil é chamado previdência privada aberta
e que tem grande desenvolvimento em outros países. Para os senhores terem uma
idéia, nos E.U.A são cerca de 8.000 (oito mil) os fundos privados de
previdência, constituídos inclusive por Sindicatos - o maior deles é o do
Sindicato de Professores de Nova York - e esses fundos têm capitais suficientes
para movimentar cerca de 40% das aplicações financeiras dos Estados Unidos.
Então, o modelo dos três pilares tem sido a alternativa institucional de
mudanças oferecida ao debate pelos especialistas.
Aqui no Brasil esse modelo tem fortes adeptos
e foi especificamente defendido e sustentado pelo relator do fracassado Projeto
de Revisão Constitucional de 1993 - o deputado Nelson Jobim, atual Ministro da
Justiça - mas também tem encontrado versões através de projetos de lei
apresentados esporadicamente ao Congresso e o seu mais notório defensor é o
Professor Roberto Macedo, da Universidade de São Paulo, que formulou os
projetos intitulados "Emenda Magri", apresentados no Governo Collor à
apreciação do Congresso Nacional.
Feita esta breve digressão sobre a crise e a
análise dos modelos alternativos de solução da crise, é preciso considerar que
as reformulações dos sistemas de seguridade social têm sido uma espécie de
imposição da comunidade econômica internacional. O Banco Mundial encomendou um
diagnóstico a respeito da crise dos
sistemas previdenciários e tem se recusado sistematicamente a financiar
projetos de desenvolvimento para os países que não apresentam reformulação nos
seus sistemas previdenciários. Portanto, este é o dado político que impulsiona
as mudanças. Elas são ditadas pelo sistema financeiro internacional. E se os
senhores observarem o mapa da América Latina, irão constatar que, a partir do
processo desencadeado no Chile, os diversos outros países do nosso continente
têm modificado seus sistemas previdenciários - não tão ousadamente como o
Chile, mas com componentes diversificados de privatização. É o que aconteceu no
Peru, na Argentina e no Uruguai. A Venezuela, em recente mensagem encaminhada
pelo Presidente da República ao Congresso, propõe, talvez dentre todas essas
citadas, a mais radical das modificações do sistema previdenciário, que já tem
causado imensa comoção social naquele país, porque refoge completamente às
propostas governamentais do presidente eleito, Presidente Caldeira. Então, está
havendo realmente modificações no sistema previdenciário. A Argentina copiou em
parte o modelo chileno, mas graças à força que o movimento sindical tem naquele país, garante ainda um sistema previdenciário
básico estatal e vai até três salários mínimos. Tudo o mais ficará por conta
dos bancos e das seguradoras.
As propostas estão hoje na cena de discussão
e elas têm que considerar as seguintes situações para serem viabilizadas do
ponto de vista técnico: há setores da seguridade social que não são
necessariamente administráveis pelo Estado. Não caracteriza a seguridade social
o setor, por exemplo, do Seguro de Acidentes do Trabalho. O Estado brasileiro,
como se sabe, socializou o seguro de acidente de trabalho mas é um seguro que,
no modelo do direito comparado, não é, necessariamente, estatal. Então, uma das
propostas que tem sido considerada é a da possível reprivatização do seguro de
acidentes do trabalho. Ainda recentemente, a Organização Ibero-Americana de
Seguridade Social promoveu um seminário em Salvador, no qual se discutiu
especificamente esse tema: "Os riscos do trabalho e o da Privatização do
Seguro de Acidente do Trabalho". Talvez seja a proposta que tenha maior
chance de vingar no curto prazo, inclusive aqui no Brasil.
A segunda proposta que está em discussão diz
respeito precisamente ao reforço do chamado esquema dos três pilares. O reforço
do esquema dos três pilares é especificamente a proposta de privatização
parcial de que cuida a Emenda Constitucional ora em tramitação na Câmara dos
Deputados. Quer dizer, falarmos em privatização da Previdência no Brasil, hoje,
como dado de realidade, é vermos o que está proposto no Parlamento, uma vez que
a seguridade está disciplinada pela Constituição. Então, a privatização, como
dado de reflexão jurídica, é aquilo que pode ser, em breve, modificado no
sistema constitucional de seguridade.
Quando se fala em previdência privada na
Emenda Constitucional, que está em apreciação na Câmara dos Deputados, está se
falando no artigo 202, na redação do projeto, porque quem cuida do sistema
complementar na discriminação constitucional atual é o artigo 201, mas no
projeto que modifica inclusive a numeração dos artigos na Carta Magna é o
artigo 202. O que diz o artigo 202, nesta configuração atual, que é a que foi
dada pelo deputado Michel Temer no relatório aprovado em primeiro turno pela
Câmara dos Deputados? Diz o seguinte: "para a complementação das
prestações do regime geral de Previdência Social será facultada a adesão do
segurado a regime de previdência complementar, público ou privado, conforme
critérios fixados em lei complementar". Vamos explicar a terminologia do
dispositivo. O que é o regime geral? O regime geral é o regime básico, é o
regime previdenciário dos trabalhadores de um modo geral. É o regime do INSS,
dos trabalhadores empregados, autônomos e equiparados. Esse é o chamado regime
geral. Ao lado do regime geral existem os denominados regimes próprios que são
os regimes dos servidores públicos. Têm regimes próprios no Brasil os
servidores públicos civis e militares da União, os servidores dos Estados e os servidores dos Municípios.
Estão equiparados aos servidores os trabalhadores nas autarquias, nas fundações
públicas e em certas entidades de economia mista do poder público nos diversos
níveis. Então esses são os regimes ditos regimes próprios. Então no Brasil
coalescem dois regimes previdenciários: o regime geral para os trabalhadores e
o regime próprio para os servidores e equiparados. Aqui, a Constituição está
falando, especificamente, no regime geral. O projeto de emenda constitucional
não cuida de privatização nos regimes próprios. Nem isso consta da Constituição
nem isso está projetado para uma futura
provável emenda constitucional, onde se fala em privatização em parte do regime
geral, do regime dos trabalhadores de modo geral.
É pressuposto dessa proposta que o Estado
permanecerá garantindo uma renda básica para todos. Portanto, o primeiro
daqueles pilares antes referido. O Estado continua sendo o ente gestor da Seguridade
Social. E aí o sistema, no formato que a ele quer dar a emenda constitucional,
apresenta uma alternativa: haverá um regime privado e haverá um regime público
complementar. Como lhes dizia, a idéia não é nova, já vinha na LOPS - Lei
Orgânica da Previdência Social, de 1960. O Estado terá um seguro complementar
facultativo e entidades privadas poderão manter um seguro complementar
facultativo. Os dois seguros facultativos se destinam a quê? À complementação
das prestações fornecidas pelo regime básico. Então se o trabalhador quer uma
aposentadoria superior àquela que vai ser garantida pelo regime geral, ele terá
que se filiar ao plano facultativo. Assim também se quiser deixar uma pensão
melhor do que aquela que garantirá o regime geral terá que se filiar ao regime
complementar facultativo. Por outro lado, o artigo 202, parágrafo 2º, desse
projeto, prevê que seguem existindo as chamadas entidades de previdência
privada aberta que são os planos de previdência hoje oferecidas pelos bancos e
pelas seguradoras do ramo vida. Esses planos que podemos comprar livremente
em entidade particular autorizada pelo
Governo a operar como previdência privada e supervisionada hoje pela
Superintendência de Seguros Privados - SUSEP.
O projeto parece não se inclinar por esse
ramo, o que de certo modo discrepa do modelo engendrado pelo Banco Mundial e
pelos seus formuladores. O projeto não
quer prestigiar esse tipo de organização, uma vez que o parágrafo 2º prevê que
é vedada a concessão de subvenção ou auxílio do poder público a estas
entidades. Isso significa que, hoje, quando eu compro um plano de previdência
privada em um banco qualquer, eu posso deduzir as parcelas desse plano do meu
rendimento tributável. Hoje é assim. A legislação autoriza que eu faça um plano
desse e deduza as mensalidades do meu rendimento a ser oferecido à tributação.
É uma forma de estímulo que o Poder Público dá à constituição desses fundos
privados. A Emenda Constitucional proíbe expressamente que haja esse favor
fiscal, portanto ela desestimula a existência desses fundos. É possível
entender que a concepção do projeto está querendo que se vá para o fundo
público ou para o fundo privado fechado que é o chamado fundo de pensão - e não
que se vá para o fundo privado aberto de livre administração pelo trabalhador,
já que o trabalhador pode sair desse fundo a qualquer momento e seguir para
outro, segundo os seus interesses. O projeto quer vincular a opção pelo regime
privado a uma determinada entidade que será a gestora a partir dali até o final
da vida laborativa dos trabalhadores, dos segurados, do seu plano complementar.
A faculdade consistirá, então, em se retirar do plano, mas não em aderir a um
novo plano.
Então, o projeto de Emenda Constitucional não
definiu propriamente o rumo que quer adotar na privatização, tomada a expressão
nesses termos - Privatização Parcial do Sistema Previdenciário Brasileiro -,
uma vez que essa ambiguidade está presente na redação da Emenda ao prestigiar o
fundo fechado e desprestigiar os fundos abertos. Uma modernização possível na
lógica dos formuladores do projeto seria a abertura, a privatização ampla,
tanto do fundo fechado como do fundo aberto, reforçando, então, o segundo e o
terceiro pilares, naquela imagem dos três pilares. O que o projeto faz é uma
construção inusitada porque ele prestigia um dos pilares e desprestigia o outro
dos possíveis modelos privados de privatização.
Eu não entendi - também não espero que os
senhores que estão tomando conhecimento pela primeira vez do assunto entendam -
qual é a lógica do projeto, uma vez que também é difícil encontrar-se alguma
lógica nesta reforma constitucional previdenciária. O que eu estou é refletindo
em voz alta sobre o projeto, já que o modelo comparado está encaminhado, como
dizia, numa reformulação que leva em conta o dado privatista do modelo chileno,
mas que não é de todo aceitável pela comunidade. A comunidade não está
aceitando esse tipo de privatização.
Qual a reformulação possível do Sistema de
Seguridade Social Brasileiro? Pude desenvolver um pouco essa idéia no artigo
que escrevi para o livro editado em homenagem ao Professor Elson Gotchalk, da
Universidade Federal da Bahia, incansável companheiro de Orlando Gomes. Ali
sustentei que, de fato, é necessária a reprivatização do seguro de acidentes do
trabalho. As razões que levaram ao monopólio estatal desse seguro são
basicamente duas: a primeira, de que as seguradoras que detinham essa carteira
não cumpriam adequadamente com as suas obrigações e obrigavam os segurados a
sempre demandarem contra elas quando tinham direito a uma indenização por
acidente do trabalho. Então a primeira razão
para que o Estado assumisse o monopólio do seguro de acidente do
trabalho era essa. As seguradoras protelavam o pagamento de indenização e
obrigavam o trabalhador a propor ações judiciais para obter a sua indenização
ou o seu benefício. O que se constata é que, proporcionalmente com a assunção
do Estado na função de segurador desse plano, aumentou o número de demandas em
acidentes de trabalho, isto é, também o Estado não é um bom segurador, porque
ele obriga o segurado, sempre, a recorrer ao Poder Judiciário para obter a sua
indenização. Correm hoje na Justiça Ordinária dos Estados - que é quem tem
competência para apreciar essa matéria - duzentos e quarenta mil feitos de
acidentes do trabalho. Feitos que duram em média seis anos, para encontrar a
sua solução final. Então esse é o quadro desolador desse setor da atividade
pública de seguridade social.
O outro argumento que levou a um monopólio
estatal do seguro de acidente do trabalho é que, com o seguro privado, as
empresas não investiam em prevenção e o Estado, tendo o monopólio do seguro,
teria também o monopólio de fiscalização. A verdade é que esse seguro, no plano
de comparação com outros ramos de seguro, é um seguro muito barato e ele não
estimula a atividade de prevenção. Como os senhores sabem, as alíquotas de
contribuição para o seguro de acidente do trabalho variam de 1 (um) a 3% (três
por cento), segundo o grau de risco seja leve, médio ou grave, e isso abrange
desde uma loja que venda bordados até uma fábrica de explosivos, que pagam
alíquotas praticamente semelhantes, porque 1% a 3%, em termos de seguro,
situa-se numa faixa muito próxima. Então é um seguro barato e bom para o
empregador, que com ele se livra de um grave problema, que é o da preparação do
ambiente de trabalho para prevenir os acidentes. Então esse segundo elemento
que justificou a intervenção do Estado no SAT - Seguro de Acidente do Trabalho
- também não tem qualquer razão de ser. Sabe-se - e isso é dado estatístico -
que as alíquotas do seguro desse tipo poderiam variar de 1% a 18% para cobrirem
efetivamente o risco. Hoje o que o Estado arrecada com a verba do seguro de
acidente do trabalho não cobre 30% do dispêndio com as prestações por acidente
de trabalho. O Estado é, portanto, um péssimo gestor dessa carteira. Eu tenho
sustentado que esse seguro deve ser totalmente reprivatizado, através de um
modelo de contrato que deve ser desenhado pelo Poder Público. O Estado
funcionaria, sim, como fiscal da atuação das empresas privadas do ramo vida que
operem esse tipo de seguro. Então, sou favorável a que o seguro de acidentes
seja totalmente entregue às entidades privadas. Isso naturalmente fará com que
as empresas oneradas pelo custo que esse novo seguro irá representar caminhem
no rumo da prevenção, o que hoje elas não estão interessadas em fazer.
A segunda idéia, baseada no modelo dos três
pilares, é que, de fato, deve existir uma previdência complementar, mas essa
previdência complementar não deve ser
estatal. O Estado deve ficar exclusivamente com o chamado plano básico, com o
regime geral, deixando a previdência complementar exclusivamente para as
entidades privadas. O Estado brasileiro não tem fôlego para gerir planos
complementares. Ele deve se preocupar exclusivamente com o plano básico. O
Estado não pode continuar - como faz hoje em dia - a financiar a complementação
de aposentadorias dos que ganham mais. E é o que acontece hoje com os fundos de
pensão mantidos pelas estatais. Isto deve ser custeado exclusivamente pelas
contribuições dos trabalhadores e das empresas dentro dos pactos laborais que
fizerem. O Estado deve, sim, restringir-se ao mínimo de proteção. Qual é esse
mínimo? A proposta de Emenda Constitucional
consagra algo que a doutrina brasileira vem insistentemente sustentando.
O regime geral, o regime básico, deve limitar-se ao patamar de 10 (dez)
salários mínimos. Para além desses valores, tudo deve ser objeto de previdência
complementar. Esse número não é um número cabalístico, escolhido ao acaso, é um
número que a tradição do direito
brasileiro vem consagrando e também é um número pelo qual atuarialmente
o sistema público se torna viável porque ele segue mantendo o mau risco - no
jargão do seguro, mau risco é aquele risco que gera mais sinistros, e quem gera
mais sinistros são os trabalhadores de baixa renda, os que acionam mais o
sistema por razões óbvias, são os que mais ficam doentes, são os que mais se
invalidam, são os que mais sofrem acidentes do trabalho. Mas no perfil até 10
(dez) salários mínimos o Estado fica também com o bom risco, isto é, com aquele
risco mais rentável e que, portanto, permite um equilíbrio financeiro no
sistema.
A prevalecer o que está redigido na proposta
de Emenda Constitucional, pouca alteração
haveria no plano atuarial do sistema, que hoje é também limitado a cerca
de dez salários mínimos. Então, o plano básico do regime geral permanecerá tal
como é nos nossos dias. Mas os planos complementares - esta é a minha reflexão sobre o assunto - não devem ser geridos pelo
Estado. O Estado deve se fixar exclusivamente no plano básico do regime geral.
Finalmente, quanto ao terceiro pilar, é
inconcebível em qualquer reforma do Sistema de Seguridade Social - e o que se
propõe é uma reforma para aperfeiçoar o sistema - que a previdência privada
aberta seja objeto de estímulo fiscal como é nos nossos dias. Embora não tenha
entendido a lógica do projeto, eu concordo com a proposta do projeto quando ele
proíbe expressamente a concessão, a subvenção ou auxílio do Poder Público às
entidades de previdência privada e vou explicar em que consiste esta aparente
contradição.
O que se quer com a reforma da Seguridade
Social (é o que se tem sustentado, é o que se tem falado, é o que se tem escrito) é a diminuição da participação do Estado nesta seara. A primeira versão da
Emenda Constitucional apresentada pelo atual governo falava que o Estado
ficaria com o regime básico até três salários mínimos. Então o Estado iria
saindo de cena a partir de uma reforma constitucional. Por esse formato mediano
que o projeto apresenta, o Estado permanece com os 10 (dez) salários mínimos
sobre sua responsabilidade, e ainda
quer ficar com uma parte dos planos
complementares, deixando outra parte dos planos complementares para as entidades
privadas.
E quanto às entidades abertas? Estas é que
sofrem a maior restrição do projeto na medida em que não podem ser
subvencionadas ou receberem auxílios e
incentivos fiscais do Poder Público. Mas é precisamente nesses planos abertos
que está o futuro dos planos previdenciários, porque são esses os planos que
têm sido comprados por empresas ou grupos de empresas. As empresas vêem melhor
a possibilidade de negociação com planos privados desse tipo do que na
constituição de fundos de pensão. Para os senhores terem uma idéia, a
legislação que disciplinou os fundos de pensão no Brasil é de 1977. Nesse longo
período de quase 20 anos foram constituídas apenas 312 (trezentos e doze)
fundos de pensão - o que não é nada, comparado com a quantidade de fundos de
pensão que existem nos países mesmo da América Latina, da Europa e da América
do Norte. Não é nada em termos de fundo de pensão para uma economia como a
brasileira, que comportaria pelo menos 10.000 fundos de pensão - e tem 312.
Portanto, é um modelo que está muito amarrado na sua própria timidez.
Enquanto isto os planos privados abertos, que
são de livre negociação - individual para o trabalhador, mas também por
empresas ou por grupos de empresas que cada vez mais integram esses planos ao
seu pacote de benefícios sociais - esses planos, pela sua flexibilidade, têm
merecido a adesão de cerca de 6.000 empresas privadas no Brasil. Então
verifica-se que é um sistema que está ganhando maior adesão. A retirada dos
incentivos fiscais desses planos
certamente fará refluir o desejo dos empresários de a eles aderirem nas
negociações com os trabalhadores. O que não é bom nem para o trabalhador, nem
para o empresário, nem para a seguridade social, nem para a economia. Portanto,
embora concorde com a tese de que não deve haver subvenção ou auxílio do Poder
Público para esse tipo de entidade, devo reconhecer que a retirada da subvenção
e dos auxílios fará com que esses planos percam o grande atrativo que eles
possuem no mercado, e talvez seja esse o caminho pelo qual eles devessem se
impor na cena previdenciária brasileira.
Eu prometi ao nosso Diretor que iria falar
por cinqüenta minutos e vou cumprir fielmente essa promessa. Quero encerrar
essas considerações, dizendo aos
senhores o seguinte: o tema da privatização, nos nossos dias, ele me faz
recordar uma imagem dos Atos dos Apóstolos em que Paulo, ao visitar um templo grego, viu altares para muitos deuses
e também havia ali um altar denominado
"Para o Deus desconhecido", já que pode ser que dentre os
inúmeros deuses ali homenageados, tivesse escapado algum. Então, os gregos, ad
cautelam, colocaram o altar destinado ao deus desconhecido. O tema da
privatização parece que tem um deus desconhecido e esse deus é o que tem sido
chamado o "mercado". O mercado é o deus desconhecido do nosso tempo e
quando se fala em privatização radical da previdência social está se pensando
que o mercado é capaz de resolver os problemas sociais. Isto não é o que tem
revelado a prática e a história. O mercado não é o ente apto para resolver os
problemas sociais. Portanto, é um deus ao qual nós não devemos dar tanta
reverência. Muito obrigado.
Retirado de: http://www.amatra.com.br