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ORGANIZAÇÃO JUDICIÁRIA – PROBLEMAS E PROPOSTAS – PARA ALÉM DOS MITOS POLÍTICO –MEDIÁTICOS

Autor: Antônio Cluny

 

 - os problemas -

 

1 - A recente polémica sobre a competência para a definição das prioridades a dar ao tratamento dos processos crime, até pelo tom moderado e responsável com que se iniciou, teve  a virtualidade de, novamente, fazer reverter, para o campo de uma discussão política séria, a problemática dos limites e alcance do poder judicial, do círculo de intervenção dos seus órgãos de governo e, correlativamente, do seu modelo e cultura de gestão.

 

Em rigor, porém, esta questão - a das prioridades – bem poderia transcender o âmbito da própria política criminal e, por isso, deveria passar a constituir uma linha de reflexão permanente sobre os limites do objecto da função judicial e  abarcar, assim, toda a política de justiça que uma sociedade democrática deve prosseguir.

 

Isto é, a discussão não deveria cingir-se tanto ao concreto problema das prioridades processuais, mas antes ao do âmbito da efectiva possibilidade e grau de utilidade da intervenção judiciária na resolução de um alargado tipo e número de conflitos, como os que neste momento lhes estão conferidos.

 

Definido que está constitucionalmente - e aqui com consenso geral - em que consistem as funções específicas dos diversos órgãos que compõem o poder judicial, importará, ainda assim, com maior ou menor amplitude, com maior ou menor urgência, discutir, por um lado, o objecto concreto e possível da actividade judicial e de cada um dos seus órgãos e, por outro, o comportamento e a adequação das estruturas técnico-burocráticas que lhe dão corpo. 

 

Com efeito, parece hoje menos clara a definição do âmbito e do momento em que deve e pode ser accionada a intervenção dos órgãos do poder judicial, bem como a dos benefícios e efeitos práticos resultantes de tal actuação.

 

Ou melhor, a da necessidade e utilidade da intervenção do aparelho judiciário em determinadas e concretas áreas, para as quais se discute hoje se a intervenção e solução judicial é, do ponto de vista social, a mais, útil, eficaz e coerente.

 

Só dessa avaliação parece poder resultar uma escolha, uma opção positiva, que limite e condicione as alternativas e o novo desenho do sistema.

 

Sem esse exame e redefinição parece difícil, por isso, com rigor e eficácia, optar por qualquer projecto de estrutura e orgânica judiciária, capaz de responder às exigências sociais modernas.

 

 

2 - Há a convicção de que sociedade acredita estar hoje entregue nas mãos da Justiça, dos magistrados, a responsabilidade da resolução de um cada vez maior número de problemas.

 

É claro que esta convicção pode não ser totalmente correcta, sendo apenas, como alguns defendem, o resultado de um juízo baseado em dados estatísticos cegos, que escondem uma colonização do sistema por “clientes institucionais”, em detrimento das possibilidades de acesso e da utilização da Justiça pelo cidadão comum. [1]

 

No entanto, apesar dessa possível deturpação estatística da realidade, ou até por causa dela, a verdade é que, em maior ou menor grau, essa convicção persiste no consciente social e determina, mesmo assim e por si só, um recurso crescente pelos cidadãos singulares à via judicial para a resolução de todo o tipo de conflitos.

 

Assim e apesar de tudo, julga-se, hoje, depositada nos Tribunais e nos magistrados uma esperança que é porventura desproporcionada às suas reais possibilidades de intervenção e resolução desses problemas.

 

Ora, o custo da defraudação dessa esperança tem custos democráticos elevados.

 

Isto é, redobraram – ao menos mediaticamente - as expectativas quanto aos limites e parâmetros da intervenção da Justiça e dos magistrados, sem que, na realidade, alguma vez o sistema judiciário tenha sido concebido, politicamente, como um meio alternativo para dar resposta pronta e eficiente aos problemas que as outras instituições político-sociais não foram capazes de resolver.

 

Aliás, em princípio, nem seria razoável que, numa sociedade democrática, aos magistrados, fosse permitida uma intervenção que se confundisse com a governação, sendo certo que esta está sujeita  às regras do sufrágio universal, até como medida específica de responsabilização pelo seu desempenho.

 

É que, além do mais, o método da formação da decisão e consequente responsabilização da magistratura pelas suas decisões, num estado constitucional de direito como o nosso, tem, necessariamente, de escapar à lógica eleitoral e maioritária, o que inviabiliza, desde logo, a utilização de um método de responsabilização comum ao político e ao judiciário.

 

Neste sentido, alimentar demagogicamente essa expectativa, empolando a capacidade real de intervenção dos Tribunais - se resolve alguns problemas políticos imediatos - mais não serve, afinal, do que para desacreditar a Justiça e em consequência própria democracia.

 

2.1 - Nada tem impedido, no entanto, que os cidadãos, cada vez mais, procurem hoje nos Tribunais o campo privilegiado para a afirmação dos direitos, mesmo os de natureza política ou social, em detrimento, por exemplo, da opção pela instituição parlamentar.

 

 Isso não significa que, no essencial, assim tenha ou deva acontecer por regra ou que, acontecendo, os cidadãos consigam, assim, ver melhor concretizados os seus direitos.

 

Daí não se pode concluir, também e pelo contrário, que os órgãos do poder judicial procurem, eles mesmos, voluntária e conscientemente invadir áreas de responsabilidade estranhas.

 

 Antes se revela a escolha, pelos cidadãos, do fórum que, em cada momento, lhes aparece menos distanciado, sem que daí decorra, porventura,  uma esclarecida opção pelo sistema mais eficaz.

 

Tudo isto contribui, no entanto, para a criação de uma situação aparente ou verdadeiramente contraditória, em que, enquanto aumenta a consciência social sobre a ineficácia dos Tribunais, estes continuam, apesar de tudo,  talvez por maior proximidade e até por maior acessibilidade, a constituir, por enquanto, o fórum cada vez mais escolhido para a intervenção pública (senão política) e a reivindicação dos direitos e expectativas cívicas dos cidadãos.

 

Só que este é um problema que os Tribunais não podem resolver por si próprios, nem compete, em especial, aos órgãos de governo do poder judicial dirimir.  

 

2.2 - De tudo o que antes se disse, importa, porém, esclarecer que se não entende que se esteja perante um fenómeno circunstancial ou decorrente da uma vontade explícita e cínica de oportunidade política, mas de condicionantes sociológicas importantes e, ao menos entre nós, relativamente recentes.

 

Vem sendo defendido, com efeito, que este fenómeno resulta, em certa medida, do valor acrescido que a “norma jurídica” - como valor e referente, único, comum e democrático - vem ganhando na nossa sociedade, em detrimento da validade da interpretação homogénea e universal dos outros valores de conformação ética e social, que, necessariamente, escolhiam instâncias diferentes (mais ou menos formais), como sede de  resolução de conflitos. [2]

 

Isto é, pretende-se que, enquanto se desenvolve todo um processo de afirmação do indivíduo e da sua consciência perante a sociedade e no seio das comunidades em que está ou estava, tradicionalmente, inserido, sobreleva a importância da norma jurídica estadual, como objecto de referência comum e cada vez mais exclusivo, para a compreensão das relações sociais e respectivas contradições.

 

Ou seja, o moderno “sujeito de direitos” é cada vez menos um ser integrado numa comunidade local, profissional, social, familiar, capaz de, no seio dessas sociedades, solidariamente, ultrapassar os seus conflitos; configurando-se antes, cada vez mais, como um elemento solitário e isolado, necessitando, num maior número de circunstâncias e casos, de accionar o aparelho judiciário estatal e centralizado para resolver o mais ínfimo conflito ou contradição.

 

2.3 - Paralela e simultaneamente, como sua causa e consequência, vêm diminuindo a importância e eficácia real e simbólica das instituições de integração e controlo social, antes activas e influentes na sociedade civil, sejam elas de natureza institucional ou simplesmente tradicional.[3]

 

Isto, sem que, em contrapartida, tivessem sido criadas - ou tornadas verdadeiramente eficazes - novas estruturas sociais intermédias que agissem tendo por base novos conceitos de solidariedade capazes de fazer prescindir da Justiça oficial ou fossem accionadas a partir de novos pressupostos judiciários, resultantes da prevalência do Direito, dos novos direitos, e da “norma jurídica”,  que, como dissemos, aparece agora como valor e referente, único, comum e democrático da nossa sociedade.[4]

 

Esta centralização e concentração da resolução dos conflitos na organização judiciária profissional e estatal, não constitui todavia um processo inevitável, nem terá constituído sempre uma opção privilegiada ou um caminho percorrido acriticamente.

  

Basta recordarmos a primeira tentativa de modernização e reforma constitucional da orgânica judiciária portuguesa para percebermos, desde logo, a importância que o reformador liberal de 1822 conferia às novas instâncias semi-formais e de proximidade de resolução de conflitos.

 

Não: o processo que conduziu à centralização e exclusividade do aparelho judiciário central foi lento e durou mais de um século e terá tido, eventualmente, em conta, como motivação publicamente assumida, para se não dar efectividade a essas instituições inovadoras, as dificuldades resultantes do atraso cultural e educativo do povo português.

 

Creio, porém, que as verdadeiras razões são antes de índole política e corporativa.

 

Efectivamente, a luta pelo “mercado” do Direito e pela exclusividade da sua manipulação - que é hoje muito mais clara, até em função do excedente de licenciados em Direito - não será de todo alheia a este fenómeno e tendência.[5]

 

2.4 - Em suma, qualquer análise que procure encontrar soluções para o fenómeno hoje conhecido por “crise da Justiça” tem de se questionar, prioritariamente, sobre a suficiência e adequação do aparelho judiciário central para a resolução de todo o tipo de conflitos e contradições que lhe estão hoje, em exclusividade, confiados e definir, depois, melhor, o âmbito que se pretende atribuir a cada instância formal ou informal de aplicação do direito.

 

Uma resolução consequente desta questão não se apresenta, porém, neutra e implica, necessariamente, opções que resultam dos valores e escolhas políticas claramente assumidas.

 

Não se pode pois – como algo ingenuamente pretende alguma opinião pública - pugnar, simplesmente,  por uma “reforma da Justiça”, como se assim se pudesse resolver, a contento de todos, um problema que, de facto, a todos parece afectar, esquecendo-se que ele atinge, obviamente, de modo diferente os diversos interesses e actores sociais.

 

A verdade é que a democracia, o regime democrático, não atingiu a sua perfeição, nem, realmente, parece haver muitos que acreditem ainda que se atingiu o fim da História.

 

A própria noção de “crise da Justiça”; Justiça que, na perspectiva de um estado constitucional de direito, continua a constituir um instrumento fundamental de credibilidade e funcionamento do sistema democrático, parece ser disso testemunho.

 

Por isso, as propostas e soluções dos problemas continuarão a ser distintas e, naturalmente, ideologicamente identificadas.

 

Assim, também aqueles que julgam o actual modelo de Justiça acabado e inalterável estarão rotundamente enganados.

 

Em consequência, as medidas tendentes à resolução da chamada “crise da Justiça” não revestirão, natural e unicamente um carácter técnico ou tecnocrático. Antes resultarão de opções políticas bem definidas, embora devendo ser sempre balizadas pelo consenso resultante do pacto constitucional, para poderem revestir uma base sólida de legitimidade social.

 

De qualquer forma e nesta perspectiva, só uma visão catastrofista, demagógica e que preconize a ruptura do pacto constitucional e da nossa cultura judiciária democrática pode continuar a pugnar por uma absoluta e radical “reforma da Justiça”, desprezando todas as tentativas para detectar as verdadeiras - e por vezes bem pequenas - causas de bloqueamento do sistema e impedindo, assim, o esforço para optimizar o modelo, que, em rigor, foi construído com o consenso político generalizado.[6]

 

2.5 - Nestes termos, nada deve obstar a que se procure, desde já, auditar e avaliar o funcionamento do actual sistema, permitindo compreender, em que medida muita da sua ineficácia real pode depender, desde logo, de uma errada concepção do modelo em vigor ou, mais concreta e limitadamente, de uma errada cultura de gestão processual e dos meios humanos e materiais disponíveis.

 

É que, por vezes – e demasiadas vezes no nosso país e sistema judiciário – os problemas não resultam tanto das leis ou do modelo, mas fundamentalmente da cultura retrógrada, centralista e burocrática dos que estão directamente incumbidos de as pôr em prática.

 

 Por isso, pelo contrário, a avaliação que propomos é, desde já, possível e desejável.

 

 

- as propostas -

 

3 - Muitas são, entretanto, as questões que poderiam inspirar uma tal avaliação e exame do sistema judiciário.

Nesta perspectiva uma tal auditoria, ou os inquéritos parcelares, como os que acima se defendem, possibilitando pequenas, mas rápidas e indispensáveis correcções,  permitiriam, até, ganhar tempo e profundidade de  reflexão para, gradualmente, se proceder a uma transformação mais substancial do sistema.

 

Algumas dessas indagações deverão dirigir-se ao funcionamento das estruturas e corpos judiciários tendo em conta as leis e regulamentos que os regem, procurando apurar se, sem o transtorno e desperdício que profundas alterações sempre acarretam, ele pode, mesmo assim, ser melhorado e optimizado.

 

Outras, em contrapartida, deverão procurar alcançar mesmo a razão de ser das configurações dadas a alguns estatutos profissionais e investigar qual a sua utilidade social actual, para além da reprodução dos interesses corporativos respectivos.[7]

 

Assim, por exemplo, importaria introduzir na prática dos Conselhos Superiores das magistraturas, e designadamente, na do Conselho Superior do Ministério Público, uma cultura de análise regular e periódica da programação e da actividade dos órgãos da magistratura e, desde logo, dos seus próprios órgãos dirigentes.

 

Também a necessidade, o âmbito e o limite da actividade da advocacia no âmbito do “mercado do Direito” e mesmo a possibilidade da criação de uma verdadeira e estruturada carreira de advogado, deveriam ser hoje reanalisadas à luz do aparecimento de novas profissões jurídicas.

 

 Este é um estudo que devendo embora preocupar prioritariamente a Ordem dos Advogados - que, curiosamente, sobre ele não parece ter-se ainda debruçado com a mesma atenção que dedica, normalmente, aos estatutos das outras profissões forenses - não pode nem deve circuncrever-se-lhe.[8]

 

3.1 Comecemos, no entanto e como é natural, pelo Ministério Público.

 

Dada a sua real importância no condicionamento e planificação (ou falta dela) da actividade do Ministério Público em áreas determinadas e com características específicas, deveriam ser analisadas, especialmente, a cultura, modo de funcionamento e a actividade das direcções dos distritos judiciais ou dos novos departamentos centrais.

 

 Verdadeiramente, é nelas que reside ou deve residir o poder e a competência para uma gestão próxima e regular da actividade processual dos magistrados.

 

É claro, que sempre se poderá dizer que, de certa forma e no que ao Ministério Público concerne, isso resulta já da elaboração, por essas instâncias, dos respectivos relatórios anuais.

 

Porém, nem o seu conteúdo é analisado e valorado pelo Conselho Superior do Ministério Público, nem o sua actual configuração permite uma cabal compreensão dos problemas dos magistrados neles integrados ou, menos ainda, o desempenho dos seus responsáveis.

 

Na verdade, só valorizando o papel de controlo e direcção dos conselhos superiores se pode responder à crítica - formalmente infundada, mas praticamente verdadeira - de que os órgãos do poder judicial agem sem prestar contas.

 

A responsabilidade de tal facto cabe, no entanto, em meu entender, muito mais, à inércia e submissão dos membros nomeados pelo poder político para esses órgãos, do que ao desenho constitucional e legal do modelo.

 

De qualquer forma, mesmo tendo por base os relatórios já actualmente efectuados, sempre, a partir deles, se poderia, desde logo, avançar para uma apreciação prévia e global da actividade desses departamentos.

 

 Da apreciação realizada, poderiam resultar, depois, por parte do Conselho Superior do Ministério Público, pedidos de esclarecimento e de aprofundamento de um ou outro vector específico, que tenha merecido ou se previsse que viesse a ganhar especial importância e pública acuidade.

 

Estão neste caso, por exemplo, os planos e os impulsos práticos para levar por diante as reformas entretanto aprovadas pelo poder político.

 

  3.2 - É que, muitos dos factores de reacção às reformas ou de simples inércia perante elas, acabam por revelar-se, por norma, mais clara e explicitamente, através da análise da acção na área das referidas instâncias hierárquicas intermédias das magistraturas.

 

Com efeito, os seus titulares são, em geral, superiormente escolhidos (por critérios de confiança pessoal), para dar expressão pública a uma determinada orientação judiciária e para agirem, supostamente, em coordenação ou sob orientação superior. [9]

 

 Actuam apesar disso e, necessáriamente, por vontade própria e com uma interpretação pessoal do que, legitimamente, julgam ser o superior interesse do serviço.

 

 Por isso, porque não sujeitos a qualquer tipo de sindicância regular pelos Conselhos, acontece-lhes, em determinadas circunstâncias, não propiciar especialmente a concretização das reformas sobrevindas, designadamente quando, com elas, não concordam.

 

Note-se, aliás, que a escolha destes responsáveis é quase sempre feita em virtude do seu bom desempenho – por vezes apenas processual – consubstanciado, anteriormente, num outro cenário e em distintas circunstâncias legais.

 

 Acresce, como justificação suplementar, para a análise regular da sua actividade, serem essas hierarquias que, verdadeiramente, através de todos os instrumentos burocráticos de que dispõem, continuam a deter os verdadeiros mecanismos de poder interno das magistraturas.

 

 Isto permite-lhes, mais do que a qualquer outra instância, influenciar, condicionar e formatar a cultura e a carreira dos magistrados mais novos, durante grande parte do seu percurso e, desde logo, a partir do seu ingresso no respectivo centro de formação.

 

Apesar de tudo o que antes se referiu, no caso do Ministério Público, tratando-se embora de uma magistratura caracterizada pela responsabilidade de todos os seus membros e escalões, a análise do real desempenho dessas estruturas intermédias, do seu encargo na condução desta magistratura e da importância que as suas opções tiveram no sucesso ou insucesso das reformas ou na gestão processual da sua área de responsabilidade, só muito marginalmente acaba por ser, finalmente, realizada pelo Conselho Superior do Ministério Público.

 

Isto, até porque, os seus titulares, estranha e forçadamente do ponto de vista do texto constitucional, participam, também e com todo o seu peso e influência, naquele órgão de governo e controlo do Ministério Público.

 

Isso propicia, normalmente, uma aceitação pacífica e acrítica da sua actuação e, consequentemente, uma sua recondução e perpetuação nos respectivos lugares, o que determina um ainda maior e mais duradouro condicionamento geral de todas as atitudes das hierarquias e bases que lhes estão submetidas.

 

Determina também, em regra, a tendência para a perpetuação de modelos e o enquistamento de estilos de gestão processual e humana, caracterizados pela experiência pessoal do titular, moldados por sistemas legais e estruturas já inexistentes ou que necessitam de profunda alteração.

 

No actual cenário constitucional e legal só se podem, porém, contrariar estes inconvenientes se, em todas as instâncias e, designadamente, pelos órgãos de governo do Ministério Público, forem incentivadas uma cultura e uma prática relatorial, de análise livre, regular e colectiva, da validade e suficiência das soluções adoptadas, que responsabilize, pessoalmente, cada um dos titulares dos diversos órgãos.[10]

 

Só assim, o Conselho Superior do Ministério Público, órgão plural e pluralista de governo do Ministério Público, acedendo a todos esses materiais, poderá, também ele, exercer, em toda a plenitude, as funções de direcção e controlo que o novo estatuto lhe confere.

 

Infelizmente, só excepcionalmente isso hoje acontece, constatando-se, por parte dessas instâncias e do próprio órgão de governo do Ministério Público - apesar dos seus novos poderes legais - uma limitada vocação para a  ponderação ou reflexão sobre as implicações que as alterações legais têm sobre as circunstâncias organizativas que existem ou sobre as que lhes devem suceder.

 

A isso não é, aliás, estranha a manutenção, por parte de muitos membros do Conselho, de uma ancestral visão paroquial, tutelar, centralista e monocrática de direcção e uma cultura e formação judiciária totalmente arredada das modernas preocupações de gestão e organização.

 

Considero, no entanto, que, para se poder reclamar a legitimidade da  autonomia e do governo próprio de uma magistratura, se impõe apurar a componente da organização e métodos de gestão processual e humana, não só dos órgãos de governo e da hierarquia, mas, também, de todos os magistrados, pois a questão coloca-se diariamente em todos os patamares de decisão e a todos, por igual, responsabiliza, ou deve responsabilizar.

 

É, no entanto, através deste poder de supervisão e superior orientação do Conselho Superior do Ministério Público que se pode concretizar, regularmente, sem recurso a cíclicas e públicas crises de confiança e sem quebra da autonomia no governo próprio do Ministério Público, a interdependência e colaboração entre o poder judicial e o poder político, ali amplamente representado.

 

 

3.3 - Não seria, também, despropositado reflectir sobre a actual utilidade,  objectividade, eficiência e adequação funcional  do actual sistema de inspecção e notação de magistrados, que continua a ser a pedra angular dos critérios de colocação, transferência e promoção nas magistraturas.

 

De facto, a partir da formação de contingentes de magistrados que ascendem a mais de mil elementos por cada magistratura, parece de todo inverosímil, desde logo, a possibilidade de os actuais critérios de classificação, centrados na análise da actividade processual anterior, constituírem uma base correlativamente justa e adequada aos movimentos. Isto, tendo em vista, por exemplo, o preenchimento de lugares de chefia e de competência especializada. 

 

Não só os critérios das classificações aplicados a funções tão diversas, exercidas em circunstâncias tão distintas, e realizadas por um tão elevado e desconcentrado número de magistrados, parece não poderem permitir, hoje, uma tabela comum de aferição, como, obviamente, exigindo-se para esta tarefa, um também cada vez maior número de inspectores, aumenta, natural e necessariamente, o grau de subjectivismo e discricionaridade dessas inspecções e  notações.

 

3.4 - Acresce que, perante a proliferação, mutação e complexidade da legislação, para se poder concretizar um melhor e eficaz serviço público de justiça, creio ser hoje consensual a urgência de se optar, decisivamente, por uma especialização dos magistrados, assente em critérios de formação, que sejam minimamente científicos e objectivos.

 

Ora, o actual sistema de gestão das carreiras dos magistrados continua a não se basear na ideia de concurso curricular e científico e  não está, por isso, vocacionado para o apuramento da sua real preparação, apetência e competência específica, para os lugares a que se propõem.

 

 Pelo contrário, continua, antes e tão só, vocacionado para a análise dos seus antecedentes desempenhos processuais, o que, para além de não propiciar o interesse na auto-formação e aperfeiçoamento científico dos possíveis candidatos, parece não poder corresponder à necessidade de especialização.

 

Com efeito, o único valor que sai privilegiado do actual modelo é a “fidelidade” às concepções jurídicas e até aos preconceitos das chefias, que, de resto, no Ministério Público, participam de pleno direito e a diversos níveis, na atribuição das notações. [11]

 

 Ora, nesta magistratura, tal possibilidade permite, além do mais, que, sem margem para o exercício do contraditório pelos interessados, sejam introduzidas, no momento da deliberação, pelas chefias intermédias (que participam do Conselho), impressões pessoais, baseadas em factos, antes, obviamente, não tomados em consideração nos relatórios de inspecção.

 

3.5 - Já no que respeita à magistratura judicial, não lhe sendo de todo estranhas algumas das preocupações que antes deixei expressas, a questão terá de colocar-se, além do mais, na formação, actualização e adequação cultural às novas leis, de molde a que as decisões e a jurisprudência, perante os novos textos legais, não se limitem, acriticamente, como por vezes acontece, a reproduzir a lógica e os valores das anteriores reformas, não tomando em conta o diferente espírito que se pretende introduzir.

 

Por outro lado, ainda, haveria de ter-se em consideração a possibilidade da criação de uma verdadeira figura de “juiz presidente”, que se legitime e actue como extensão do CSM,  e possa deter poderes efectivos de dirimir conflitos de gestão e iniciativa disciplinar própria, de molde a aproximar mais o Conselho Superior  da Magistratura dos restantes juizes, magistrados, advogados e dos cidadãos. [12]

  

 

4 - Há, também, que ter a noção  de que a chamada “crise da justiça” assenta, fundamentalmente, no desempenho e na imagem transmitida pelo funcionamento dos tribunais e magistraturas das grandes cidades e núcleos urbanos.

 

A verdade, porém, é que muitos dos modelos ensaiados para responder a esta crise urbana e até recentemente concretizados nalgumas reformas estatutárias e de organização judiciária não terão sido devida e suficientemente analisados na sua economia e eficiência – que tudo parece indicar não ser a melhor – para que a sua codificação tivesse sido consagrada de forma tão cristalizada.

 

4.1 - Refiro-me, por exemplo, à opção por um modelo de especialização da actividade do Ministério Público nos processos crime, em função, primordialmente, da fase processual e não do tipo de crime, como o que se consagrou com a legalização dos DIAP.

 

Tal modelo, pode propiciar uma irresponsabilização sucessiva dos diversos titulares do mesmo processo.

 

 Em muitos casos, acontece que, na fase de investigação e acusação, os magistrados responsáveis por ela, estimulados unicamente por preocupações estatísticas, se desinteressam do resultado final do mesmo, que, depois, não acompanham.

 

 Noutros, os novos titulares da fase de julgamento não se identificam cabalmente com a formulação ou o resultado da fase anterior.

 

 Tudo isto tende, naturalmente, a desenvolver um menor comprometimento e a uma menos convicta  e efectiva sustentação da acção penal pelos magistrados de julgamento.

 

Daí que, só o recurso a uma pesada e, em muitos casos, verdadeiramente contraproducente, iniciativa hierárquica pode voltar a dar alguma unidade e harmonia a acção do Ministério Público.

 

Isto tudo, com óbvio prejuízo para a formação de um espírito de auto-responsabilização e para a imagem pública de autonomia de cada magistrado. [13]

 

4.2 - No que a este assunto diz, ainda, respeito, não menos interessante seria, por exemplo, em tribunais como o da Boa-Hora, estudar a possibilidade constitucional de proceder à distribuição de processos, não através do sorteio, mas tendo por base os tipos criminais, de forma a permitir aos juizes um mais rigoroso conhecimento das matérias e uma mais eficaz gestão do seu tempo, do tempo das partes e dos seus advogados e dos espaços do tribunal.

 

Distribuição que, de qualquer forma, se deveria sempre realizar sob a orientação dos próprios juizes e no âmbito do mesmo tribunal, mas distinguindo-se proporcionalmente, em função daqueles critérios e da complexidade e morosidade dos processos, cada um dos  juízos.

 

Recorde-se, que uma tal solução foi já adoptada legalmente para o Tribunal Central de Instrução Criminal.

 

Isto é, haveria que questionar se o actual processo de sorteio entre juízos e juizes é único que garante o respeito dos princípios constitucionais do juiz natural e da não especialização de tribunais por tipos de crime e se é lógico, racional e eficiente. [14]

  

4.3 - Ainda a título de exemplo, seria curioso observar, com regularidade, o efectivo destino dado à introdução, no último Código de Processo  Penal, da forma abreviada de processo e da adequação da organização judiciária - tanto por parte do Ministério Público, como por parte da judicatura – à economia e eficiência pretendida com essa reforma.

 

4.4 - Ou, também, e desde já, uma análise da concretização, pelas actuais estruturas judiciárias, da  eficiência e utilidade dadas ao novo figurino do processo sumário.

 

É que, do ponto de vista da imagem e de eficiência da Justiça e das preocupações de segurança da generalidade dos cidadãos são ou devem ser esses os campos privilegiados de intervenção e preocupação dos órgãos de governo das magistraturas e das instâncias hierárquicas intermédias comuns.

 

4.5 - Num plano totalmente diferente, mas ainda no seguimento das ideias que inicialmente propus seria interessante estudar a eficácia real das decisões tomadas em sede de tribunais de família quanto, por exemplo, à validade temporal e ao cumprimento das sentenças relativas ao poder paternal e aos respectivos alimentos e, daí, retirar consequências relativamente à eventual necessidade de invenção e introdução de novos e menos formais instrumentos de resolução deste tipo de conflitos.

 

4.6 - O mesmo, ainda, no que respeita à importância do contencioso disciplinar, no âmbito da função pública, relativamente à Justiça administrativa.

 

- conclusão -

 

5 - Em suma, é por todas estas e por muitas outras questões que, como referi, inicialmente, o assunto das prioridades – com o comedimento com que, até agora, tem sido abordada - é, evidentemente, um bom tema para dar início a uma discussão profunda sobre o sistema judiciário.

 

 Essa discussão deveria, porém, recair não só sobre a política criminal, como sobretudo sobre as opções políticas quanto ao âmbito razoável da intervenção do sistema judiciário, dos seus operadores e órgãos de governo.

 

 Finalmente, mais modesta e pragmaticamente, teria, prioritariamente, de incidir sobre o valor, métodos e capacidade de concretização das diversas instâncias e dos actuais órgãos de governo das magistraturas.

 

É que a Justiça de uma sociedade democrática, se não pode demitir-se dos seus princípios estruturantes, nem abdicar da sua prioritária tarefa, que consiste, fundamentalmente, na salvaguarda dos direitos liberdades e garantias dos cidadãos, não pode, por outro lado, prescindir de um grau de eficácia conveniente e politicamente aceitável, que assegure a sua própria legitimidade social.    

 

António Cluny

 

 


[1]     Boaventura de Sousa Santos; Os Tribunais nas Sociedades Contemporâneas; e ainda A Sociologia dos Tribunais e a Democratização da Justiça in, Pela Mão de Alice – O Social e o Político na Pós -Modernidade

 

[2]     Antoine Garapon; Le Gardien des Promesses

 

[3]    Na verdade os Sindicatos, grupos de defesa dos consumidores, associações de moradores, de pais, de emigrantes etc., não conseguiram ainda alcançar a eficácia e o poder integrador e de intervenção extra-judicial de instituições tradicionais, como a paróquia e, por exemplo, a colectividade local.

Por outro lado, no nosso país não se assiste, ao menos com a importância por ele descrita, como existindo em outras sociedades,  aos fenómenos citados por Boaventura de Sousa Santos [Pela Mão de Alice] de uma maior utilização da Justiça oficial por Sindicatos e associações cívicas. Pelo contrário os sindicatos canalizam hoje mais os seus associados para os serviços do Ministério Público, pois, em muitos casos, não possuem contenciosos nem poder económico para os sustentar.

 

[4]     V. Antony  Giddens; Para além da Esquerda e da Direita

 

[5]    Vejam-se as constantes queixas da Advocacia no que se refere ao aparecimento de novas profissões jurídicas.

 

[6]    Nesse sentido parece-nos mais importante a alteração da prática dos Conselhos Superiores do que insistir na mudança da sua composição.

Com efeito, não é tanto da modificação do leque de figuras que compõem os Conselhos ou da mudança da sua legitimação democrática que poderá resultar uma diferente perspectiva de funcionamento desses órgãos; essa necessária mudança resultará preferencialmente da alteração de perspectivas e cultura dos membros escolhidos.

Ora, não é  a introdução de mais figuras hierárquicas na composição dos Conselhos ou a escolha de elementos políticos ou da magistratura pelo Parlamento que poderá proporcionar a necessária mudança de estilo de trabalho desses órgãos.

Disso é exemplo claro o Conselho Superior do Ministério Público que, além de ver incluídos quatro membros da hierarquia intermédia, ainda integra cinco membros de origem parlamentar e dois de designação governamental, contra apenas sete eleitos pelos magistrados.

Isto, sem que, até hoje, daí tenha resultado uma maior empenhamento deste órgão, designadamente dos seus membros de origem política ou hierárquica, no aprofundamento da gestão processual e humana desta magistratura.

Assim, no que ao Conselho Superior do Ministério Público concerne, o que é fundamental é que os seus membros queiram, de facto, assumir, desasombradamente, todas as suas competências legais, não permitindo que este órgão  actue quase exclusivamente, de um ponto de vista formal, como mero órgão sancionador.

 

[7]    A propósito da influência dos profissionais do foro e designadamente dos advogados no desenvolvimento do “mercado” do Direito ver a interessantíssima intervenção de Jacques Faget - Investigador do CNRS - França, inserida na publicação dos trabalhos do seminário que decorreu em Paris em 29 e 30 de Janeiro de1999, subordinado ao tema: POUR UNE NOUVELLE JUSTICE CIVILE - La crise d’ efficacité de la Justice en Europe .           

 

[8]    Nesta perspectiva importaria estudar se a actual preocupação com a limitação das possibilidades legais dos recursos, não deveria antes ser substituída pela limitação do universo de advogados que podem advogar no Supremo Tribunal de Justiça ou no Tribunal Constitucional. Na Alemanha só um reduzido número de advogados, seleccionados, periodicamente, por concurso público pode subscrever peças processuais para esses tribunais.

 

[9]     No caso do Ministério Público por indigitação do Procurador-Geral da República, na judicatura por eleição, pelos pares, dos presidentes das Relações. 

 

[10]  Por isso, aqui se reafirma a ideia de que os Procuradores-Gerais Distritais, não deveriam participar do Conselho Superior do Ministério Público.

 

[11]  A referência genérica a chefias, tem aqui um significado não técnico e mais sociológico no que respeita à magistratura judicial. É que é conhecida a influência que, por exemplo os inspectores desta magistratura têm no sentido jurisprudencial das decisões das instâncias inferiores.

 

[12]  Em rigor entendo que toda a actual estruturação das carreiras das magistraturas é totalmente negativa e contribui de forma muito decisiva para a chamada “crise da Justiça”.

Por um lado, a confusão entre “carreira” e sistema remuneratório distorce totalmente as pretensões e a vocação e formação profissional dos candidatos a determinados lugares de hierarquia ou de especialização.

Por outro, proporciona um condicionamento interno e corporativo, verdadeiramente preocupante, do ponto de vista da independência de cada magistrado, que, por vezes, não é menos perigoso e determinante do que os que provêm do exterior.

 

[13]  Este tipo de intervenção - ou a imagem que dela vem sendo cultivada por alguns órgãos do Ministério Público -  tem dado origem aos mais recentes e demagógicos discursos provindos de alguns responsáveis da advocacia e dos media. Apesar de tudo, o Ministério Público não é propriamente um exército hierarquizado, composto por funcionários políticos. Os seus magistrados são individualmente responsáveis e têm estatutáriamente um elevado grau de autonomia que geralmente preservam. Recorde-se que as instruções dirigidas aos processos revestem,  agora, obrigatoriamente, a forma escrita e podem ser sindicáveis.

De qualquer forma não foram consagradas, com evidente prejuízo para a transparência do sistema e para a imagem de autonomia e responsabilidade dos magistrados do Ministério Público, propostas avançadas pelo Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, que visavam introduzir a obrigatoriedade de que, todas as instruções, necessáriamente escritas, constassem dos autos - como acontece em França -  e que ficasse consagrada explicitamente a liberdade de palavra do magistrado do Ministério Público em audiência.

Parece hoje, no entanto, mais clara a necessidade e justeza de tais propostas.

 

[14]   Pessoalmente sou levado a crer que o único fim que a Constituição da República Portuguesa prossegue e por isso a única proibição que ali se consagra com a estatuição da proibição da criação de tribunais criminais especializados por tipos de crime é o de evitar que o poder político possa, assim, condicionar a escolha dos juízes para esses tribunais e tentar alterar a s regras processuais em função de tipos de crime específicos.