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UM MUNDO IMPERFEITO

A globalização é mais complexa do que imaginam seu oponentes

 

Por Selma Santa Cruz

 

O que uma espécie de formiga argentina e uma rara flor havaiana podem ensinar sobre globalização? Muita coisa, a acreditar nos jornalistas ingleses John Micklethwait e Adrian Wooldrige, autores de A Future Perfect: The Challenge and Hidden Promise of Globalization (Um Futuro Perfeito: Ameaças e Promessas da Globalização, a ser lançado em janeiro em português pela editora Campus). Um capricho da natureza que só se reproduz a cada 50 anos, a "espada de prata" sobreviveu milhares de anos protegida pela distância que separa o Havaí do continente. Nem a chegada dos colonizadores, que levou à extinção outras espécies locais, ameaçou a exótica flor branca, que floresce em altitudes de difícil acesso, nas bordas de crateras vulcânicas. Até que, anos atrás, um navio sul-americano trouxe para o arquipélago a novidade da formiga argentina - que logo descobriu um apetite especial pelas larvas das abelhas que polinizam a flor.

Hoje, a "espada de prata" corre o risco de desaparecer. E a sua história vale como metáfora da vulnerabilidade de países, empresas e profissionais diante do avanço da globalização. Como destacam Micklethwait e Wooldrige, correspondentes do The Economist nos Estados Unidos e autores de um best-seller anterior, The Witch Doctors (vertido para o português como Os Bruxos da Administração), tornou-se quase impossível localizar um canto do planeta ou um tipo de atividade econômica ainda imune à competição estrangeira. Num mundo cada vez mais interconectado, empresas, empregos e até profissões podem ser obliterados. de uma hora para outra, por um simples clique de computador - ou por um equivalente qualquer da formiga argentina.

Não é de estranhar, portanto, que a globalização tenha se tornado o vilão da hora - mais ou menos o que o comunismo representava algumas décadas atrás. Se os otimistas de sempre apostam na emergência de uma nova era de abundância, graças à maior competitividade e eficácia econômica, a maioria da opinião pública culpa a globalização por quase tudo que anda errado no planeta. E, como se viu recentemente durante a reunião do Fundo Monetário Internacional, em Praga, a virulência das manifestações antiglobais só tem aumentado.

Os autores admitem que é difícil permanecer insensível diante das crises que lançam milhares de pessoas ao desemprego ou à miséria, como no colapso do baht tailandês, em 1977, que arrastou em sua queda Indonésia, Coréia. Rússia e Brasil. Na Indonésia, para ficar só num exemplo. o PIB per capita despencou de 3 500 dólares para 750, pulverizando os ganhos de 25 anos de crescimento econômico. Mas seria mesmo a globalização um fenômeno tão intrinsecamente nefasta? Ou ela estaria se tornando o bode expiatório preferencial deste começo de milênio?

A tese de Micklethwait e Wooldrige é de que a globalização é um fenômeno muito mais complexo e multifacetado do que sugerem os antiglobais. Que fariam melhor se abandonassem berros e bombas para refletir sobre os prós e contras da interdependência, como eles fazem nas 386 páginas de A Future Perfect. Mais sensato que vituperar contra as mudanças, como os luditas que tentaram barrar a Revolução Industrial, seria buscar entendê-las para colher seus benefícios e defender-se dos prejuízos. Até porque, como lembram os autores, talvez não haja mesmo escolha.

Micklethwait e Wooldrige atribuem esse impulso a três forças motrizes que se intensificam individualmente e se reforçam mutuamente. A primeira seria a aceleração da inovação tecnológica na área da informação, transformando 0 mundo num único e sistêmico organismo nervoso. Em segundo lugar, estaria a poder sem precedente do mercado de capitais, capaz de deslocar montanhas de dólares de um país para o outro num piscar de olhos. E, em terceiro, a universalização das práticas de administração, que coloca agentes econômicos de todas as latitudes falando a mesma língua e trabalhando com os mesmos métodos.

O resultado seria uma nova divisão internacional do trabalho, determinada pelas vantagens competitivas de cada economia. Um sistema darwiniano onde só sobrevivem as empresas e profissionais cujas competências lhes permitem levar a melhorem seus mercados numa escala global. Os autores admitem que o processo tende a ser caótico e cruel e analisam os casos de várias pessoas cujas vidas foram viradas de ponta-cabeça pela globalização - entre elas, um favelado de São Paulo, desempregado após a desvalorização do real em 99. Reconhecem, ainda, que, longe de ser um modelo de racionalidade, os mercados financeiros podem "comportar-se de modo tão neurótico quanto um personagem de Woody Allen".

Mas defendem que, no cômputo geral, a globalização - e a competitividade que ela traz em seu bojo - gera maior eficácia econômica e maior oferta de oportunidades, o que acabaria beneficiando, no longo prazo, a maioria das pessoas. Enquanto muitos empregos desaparecem em determinadas indústrias ou países. outros são criados num outro lugar. E o mercado, com todas as suas deficiências, ainda seria um alocador de recursos melhor do que os burocratas descompromissados com resultados. Só que as perdas provocadas pela globalização estariam sendo muito mais alardeadas do que os ganhos.

Eles lembram, por exemplo, que a abertura econômica na China mais do que dobrou a renda de 800 milhões de camponeses em seis anos - talvez, o maior golpe já infligido à pobreza em todos os tempos.

Para os jornalistas ingleses, grande parte dos malefícios atribuídos à globalização deveria ser debitado, na verdade, na conta dos governos e suas políticas equivocadas. A estes caberia, aliás. controlar melhor o processo de integração de suas economias, paia assegurar os interesses de cada país. Mas seu argumento mais forte a favor da globalização diz respeito ao seu impacto potencial sobre cada indivíduo. Mais do que simplesmente garantir maior eficácia à economia, a globalização seria um instrumento poderoso para aumentar as oportunidades, o acesso a bens e informações e o poder de escolha de cada ser humano. Em suma: seria uma força decisiva a favor dos direitos e das liberdades políticas.

 

 

 

 

A jornalista Selma Santa Cruz é sócia-diretora da TV1.com

EXAME/29 DE NOVEMBRO DE 2000