® BuscaLegis.ccj.ufsc.br
 

O ICMS ANTECIPADO E A CRÔNICA DA MORTE ANUNCIADA

Francisco Martônio Pontes de Vasconcelos
(Juiz de Direito da 3a Vara da Fazenda Pública)

 
A tese fundamental está centrada no argumento de que, dentro do nosso conhecimento, a segurança jurídica deva ser buscada através de princípios e regras assentados na Constituição da República, dentro os quais avulta-se, em importância, o princípio da legalidade ou princípio da tipicidade fechada em matéria tributária, de sorte que só se faça ou se deixe de fazer alguma coisa em virtude de expressa disposição de lei.

O centro da controvérsia diz respeito à possibilidade do Estado, através de seu órgão arrecadador, possuir a faculdade de promover a cobrança antecipada do ICMS, por substituição tributária incidente sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre a prestação de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicações, na forma de expressa disposição emanada na Lei Estadual nº 11.530/89.

Sob tal prisma, sustentam que a incidência do tributo em apreço somente deva ocorrer nas operações que impliquem em circulação de mercadorias, tornando-se a expressão neste caso como mudança do titular jurídico, ao que equivale dizer que a exação fiscal somente se daria quando concretizada cada uma das "operações".

Ocorre que o Estado do Ceará editou o decreto nº 23.969/95, estabelecendo que os contribuintes enquadrados nos "códigos de atividades econômicas – CAE" de rubricas 61.11.00.9 – Produtos de Gêneros Alimentícios em Geral; 61.11.10.6 – Produtos de Supermercados; 61.11.11.4 – Artigos de Mercadorias e Minimercados e 61.12.10.2 – Cooperativas de Consumo, ficam responsáveis pelo pagamento de ICMS devido na operação subseqüente, na qualidade de contribuintes substitutos, abrangendo a exação todas as mercadorias desta e de outras unidades da Federação e também aquelas importadas de países do exterior. Tal implica que a autora se diz obrigada a pagar antecipadamente o ICMS que incidiria sobre operações futuras realizáveis, impondo o recolhimento do tributo independente da ocorrência do fato gerador, conduta que se afigura antijurídica.

Este é o ponto nodal do dissídio e sobre o qual nos debruçaremos.

D’outra sorte, o Estado tem defendido a legalidade de seu ato, invocando, de plano, o § 7º do art. 150 da Constituição Federal, de seguinte dicção:

"Art. 150 – Sem prejuízos de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

... omissis

§ 7º - A lei poderá atribuir a sujeito passivo de obrigação tributária a condição de responsável pelo pagamento de imposto ou contribuição, cujo fato gerador deva ocorrer posteriormente, assegurada a imediata e preferencial restituição da quantia paga, caso não se realize o fato gerador presumido."

O Decreto-Lei 406/68, com as alterações que lhe foram introduzidas pela Lei Complementar nº 44, de 7 de dezembro de 1993, a seu turno, tem a seguinte redação sobre a matéria em tablado:

"Art. 2º – omissis

...

§ 9º – Quando for atribuído à condição de responsável ao industrial, ao comerciante atacadista ou ao produtor, relativamente ao imposto devido pelo comerciante varejista, a base de cálculo do imposto será:

o valor da aplicação promovida pelo responsável, acrescida da margem estimada de lucro do comerciante varejista, obtida mediante a aplicação do percentual fixado em lei sobre aquele valor.
Reza o § 3º do art. 6º do mesmo diploma, verbis:

"Art. 6º – omissis

§ 3º – A lei estadual poderá atribuir a condição de responsável:

ao industrial, comerciante, ou a outra categoria de contribuinte, quanto ao imposto devido na operação ou operações anteriores promovidos com a mercadoria ou seus insumos;

ao produtor, industrial ou comerciante, quanto ao imposto devido pelo comerciante varejista;

ao produtor ou industrial, quanto ao imposto devido pelo comerciante atacadista e pelo comerciante varejista.
No âmbito específico deste Estado da Federação, vale mencionar, foi promulgada a Lei nº 11.532, de 2 de março de 1989, com seguinte redação:

"Art. 3º – O Poder Executivo, por razões de ordem econômica e no interesse de simplificar o processo de arrecadação, poderá nos casos e na forma prevista em regulamento, relativamente a determinadas mercadorias ou categorias de contribuintes, exigir o pagamento antecipado de imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestação de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação.

Parágrafo único – Para os fins do disposto neste artigo adotar-se-á a base de cálculo prevista no art. 32 da Lei Estadual nº 11.530 de 27 de janeiro de 1990."

Por sua vez a Lei 11.530/90, estabelece, ipsi litteris:

"Art. 16 – Fica atribuído à condição de contribuinte substituto a:

II – Produtor, distribuidor ou comerciante atacadista, pelo pagamento devido nas operações subseqüentes."

E arremata o Art. 32:

"Art. 32 – Na hipótese do inciso II do art. 16, a base de cálculo do imposto é o preço máximo, ou único, de venda do contribuinte substituto, fixado pelo fabricante ou pela autoridade competente ou, na falta desse preço,..."

O cotejo sistemático do conjunto de comandos normativos, há de implicar, sob a nossa ótica, na inevitável incursão nos meandros da Lei Complementar nº 87, de 13 de setembro de 1996, que dispõe sobre o ICMS, enquanto tributo da competência dos Estados e do Distrito Federal, bem como sobre a constitucionalidade dos efeitos por ele produzidos relativamente a situações jurídicas, gerados com base na ordem anterior derrogada, a fim de que se possa apreciar, com razoável índice de certeza, a matéria em foco.

Pergunta-se: Dentro do atual contexto normativo, é possível a incidência do ICMS sem que se configure a ocorrência do fato gerador?

A matéria comporta duas vertentes. Uma vertente formal e uma substancial. A primeira diz respeito a intermediação legislativa construída para dar substrato ao instituto da substituição tributária. A segunda respeita a uma questão substancial que implica na análise da Emenda Constitucional nº 3, que acrescentou o § 7º, ao art. 150 da CF/88, que deve ser analisado e cotejado em face dos princípios norteadores da referida Carta Política, no campo genérico e nos princípios que regem o direito tributário, no campo específico.

Quanto ao primeiro aspecto, afigura-se inquestionável que tanto no âmbito federal, quanto na esfera dos Estados, já se editou todo um conjunto de normas legais com a finalidade de instituir e regulamentar a substituição tributária, tal como já demonstrado com as citadas constantes do presente aresto.

Cumpre-nos, sem arrodeios, encetar análise mais amiúde quanto às especificidades substanciais da Norma Constitucional que viabilizou o surgimento do instituto em comento dentro da ordem jurídica vigente.

O Professor EDVALDO BRITO, lecionando na Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, em didático trabalho publicado na Revista Dialética de Direito Tributário, nº 2, pág. 25 e seguintes, esclarece:

"17 – A hipótese do fato gerador da obrigação tributária é uma norma jurídica que, veiculando os elementos que descrevem o fato tributável, fornecem o tipo necessário e necessita ser dissecada para que conhecido na intimidade, cada qual desses elementos, possa o aplicador da Norma – que é, também, seu intérprete – conferir a figura do tipo (facti specie) com o fato-tipo ocorrido na relação social.

18 – Esses elementos, que são colhidos desde a norma constitucional de outorga de competência, têm sido indicados, entre nós, em número de quatro: subjetivo, espacial, objetivo e temporal.

19 – O elemento subjetivo corresponde à parte da hipótese do fato gerador que descreve as pessoas envolvidas com o fato por ele debuxado. Nele são identificados o titular do direito subjetivo, das prerrogativas e dos poderes (sujeito ativo), bem assim aquele que deve satisfazer a prestação, isto é, cumprir o dever jurídico, suportar os ônus e ficar em sujeição (sujeição passivo).

20 – O elemento espacial é expresso na hipótese do fato gerador, pelo esboço da área em que o acontecimento previsto deverá desenrolar-se com o condão de provocar as conseqüências prenunciadas na norma. Aqui se delimita o espaço físico ou virtual dentro do qual a Norma tem aplicação.

21 – O elemento objeto é a parte mais saliente da hipótese do fato gerador, porque identifica o objeto, a matéria tributável, bem assim fornece a natureza jurídica de cada tributo, servindo, como já acentuaram Giannini e Becker, para diferenciar um tributo do outro, constituindo-se, assim, no núcleo da hipótese do fato, a ponto de ser decisivo para a distinção das diferentes espécies tributárias (imposto, taxa e contribuição) porque dá o tipo jurídico de cada qual. Esse elemento consiste na própria materialidade da hipótese do fato: se, em geral, ela corresponde a um fato jurídico (lato sensu) estará caracterizando um imposto: se, especificamente, um ato jurídico expresso por uma ação estatal, uma taxa ou uma contribuição. Mas, a relevância desse elemento ainda se encontra na circunstância de que nele a norma oferece a mensuração do objeto tributável, o dimensionamento da parte de um todo, ou até o desse todo integral, que será tributada (base de cálculo) e que, uma vez submetida a um índice matemático (alíquota) dá o quantum de tributo a pagar ou, em termos mais precisos, dá o valor do crédito tributário.

22 – O elemento temporal representa o momento em que se realiza, totalmente, o fato. É o instante em que se completa, dentro das integrais circunstâncias em que foi normativamente desenhado, o acontecimento social. A fixação desse termo é do maior relevo, uma vez que, correspondendo seja a uma data, seja a um período de tempo em que se forma toda a materialidade da hipótese, ele é que marca o nascimento da obrigação, isto é, do vínculo entre o sujeito ativo e passivo na linha do cumprimento da prestação. ELE MARCA, POIS, QUAL A NORMA DA LEGISLAÇÃO TRIBUTÁRIA QUE É APLICÁVEL. POR ISSO, O ARTIGO 106 DO CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL "VEDA A APLICAÇÃO RETROATIVA" DA NORMA TRIBUTÁRIA, PORQUE SOMENTE AUTORIZA QUE INCIDA SOBRE ATO OU FATO PRETÉRITO, SE FOR PARA BENEFICIAR.

23 – Dissecando, portanto, a hipótese normativa do fato gerador para encontrar esses elementos, a fim de verificar se eles revestem um determinado acontecimento social, o intérprete estará aplicando a norma e, afinal, identificando o crédito tributário, ou tornando-o exigível ou, nos termos do Código Tributário Nacional, estará constituindo o crédito pelo lançamento. Logo, é inevitável a análise dessa hipótese, relativamente a cada tributo e de referência a cada fato a que se queira atribuir a qualidade de gerador de uma obrigação de pagar uma prestação pecuniária a título tributário."

Com espeque em tais balizamentos, o Professor Edvaldo Brito, procedendo aprofundada análise do tema, termina por concluir que "tributar fatos futuros conflita com a Constituição", uma vez que o que se tributa é a capacidade econômica atual e não a futura, ou que, potencialmente, há de vir, mesmo sabendo-se da existência de antecipações tributárias perfeitamente toleráveis, mas incidentes sobre fatos que, ainda futuros, estejam perfeitamente prenunciados, o que não acontece com o ICMS, imposto rotulado de "plurifáico", daí chegando ele à conclusão de que, embora com o advento da Emenda Constitucional nº 3/93, antes de haver surgido a LC nº 87/96, verbis:

"A substituição tributária imposta à consulente pelos Convênios nos 105/92 e 112/93 É INCONSTITUCIONAL."

Parece inquestionável que todo aquele acervo normativo preexistente à Lei Complementar nº 87, de 13 de setembro de 1996, conduzia ao entendimento dominante quanto à indiscutível inconstitucionalidade do instituto da substituição tributária, tanto que o próprio SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL terminou por não analisar o mérito das várias demandas que lhe foram submetidas, justo quando declarou prejudicada a matéria por força do advento da referida LC nº 87/96.

A isto equivale dizer que, a partir de 13 de setembro de 1996, desenhou-se no horizonte um novo quadro jurídico, de contornos bem definidos e silhueta translúcida onde o que se haverá de discutir é se aquele comando normativo preencheu todas as exigências constitucionais e se acham, ou não, formal e substancialmente aptas a emprestar constitucionalidade ao instituto aqui discutido.

Em outras palavras, a indagação: É constitucional ou não a Lei Complementar nº 87/96?

De início, estou em que a competência em matéria tributária é indelegável e que a Constituição Federal, seja através do Poder Originário, seja através do Poder Derivado, não poderia – e não pode – remeter para as Unidades da Federação assunto que é de sua exclusiva competência (art. 146, inciso III, da CF/88).

A propósito do controvertido tema, o eminente Professor ROQUE ANTÔNIO CARRAZA (in ICMS, Editora Malheiros, 3ª ed., São Paulo, 1997, p. 138) diz:

"Os artigos 5º, 6º e 8º da Lei Complementar nº 87/96, que tratam da substituição tributária no ICMS, são igualmente inconstitucionais, porquanto, além de acutilarem o princípio da segurança jurídica, delegam à Lei ordinária atribuições que a Carta Suprema deu à Lei Complementar. Também malfere a segurança jurídica o art. 7º deste mesmo ato normativo."

E justifica:

"Ora, tal competência é privativa da Lei Complementar, ex vi do já citado Art. 155, § 2º, inciso XII, letra "b" da Constituição Federal. Não poderia, destarte, ser objeto de delegação, se por mais não fosse em razão do princípio geral contido no aforisma: "DELEGATUR DELEGARE NON POTEST". Lembramos que é próprio das competências concedidas pela Constituição o atributo da indelegalidade. Não podem ser transferidas, quer no todo, quer em parte."

E, mais adiante, arremata:

"Como se tudo não bastasse, o referido artigo 5º cria substituição tributária de conotação nitidamente punitiva. Quando terceiro, por ação ou omissão concorrer para o não-recolhimento do ICMS, poderá ser chamado, pela Lei (ordinária), a efetuar seu pagamento, na condição de responsável. Coloca, pois, todos os cidadãos sob o guante da insegurança, já que, numa interpretação literal, que não leva em conta o imprescindível elemento subjetivo, até mesmo o consumidor final, adquirindo a mercadoria, pode concorrer para o não recolhimento do ICMS, tornando-se passível, assim, de ser eleito substituto."

Como já foi dito anteriormente, nos dias atuais a substituição tributária se acha regulamentada pela Lei Complementar nº 87/96, com a seguinte redação:

"Art. 5º – Lei poderá atribuir a terceiros a responsabilidade pelo pagamento do imposto e acréscimos devidos pelo contribuinte ou responsável, quando os atos ou omissões daqueles concorrerem para o não recolhimento do tributo."

Art. 6º – Lei Estadual poderá atribuir a contribuinte do imposto ou a depositário a qualquer título a responsabilidade pelo seu pagamento, hipótese em que o contribuinte assumirá a condição de substituto tributário."

§ 1º – A responsabilidade poderá ser atribuída em relação ao imposto incidente sobre uma ou mais operações ou prestações, sejam antecedentes, concomitantes ou subseqüentes, inclusive ao valor decorrente da diferença entre alíquotas interna e interestadual nas operações e prestações que destinem bens e serviços a consumidor final localizado em outro Estado, que seja contribuinte do imposto."

"§ 2º – A atribuição de responsabilidade dar-se-á em relação a mercadorias ou serviços previstos em lei de cada Estado."

"Art. 7º – Para efeito de exigência do imposto por substituição tributária, inclui-se, também, como fato gerador do imposto, a entrada de mercadoria ou bem no estabelecimento do adquirente ou em outro por ele indicado."

A Procuradoria da Fazenda Nacional, em bem lançado parecer da lavra da ilustrada Procuradora, Doutora Cláudia Regina Gusmão, de 25 de novembro de 1996, transcrito em "Revista Dialética de Direito Tributário, vol. 19, pág. 97", asseverou que "a substituição tributária é utilizada pelas Unidades Federadas no intuito de minimizar a sonegação do imposto, facilitando sua fiscalização"; tal prática tem supedâneo no art. 128 do CTN e art. 6º da Lei Complementar nº 87, de 13 de setembro de 1996, além, é claro, do dispositivo constitucional citado. No corpo da mesma Lei Complementar, que dispõe sobre o imposto de competência dos Estados e do Distrito Federal sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, é estabelecida a base de cálculo do tributo no caso de que se cuida..."

O art. 150 da CF/88 inaugura a Seção II – DAS LIMITAÇÕES DO PODER DE TRIBUTAR, do Capítulo I – DO SISTEMA TRIBUTÁRIO NACIONAL, Título VI – DA TRIBUTAÇÃO E DO ORÇAMENTO, verificando-se que os artigos que integram a Seção II cuidam, especificamente, das hipóteses em que a capacidade de tributar do Estado vê-se contida e limitada pelo balizamento ali estabelecido nos seguintes termos:

"Art. 150 – omissis

...

§ 7º – A lei poderá atribuir a sujeito passivo de obrigação tributária a condição de responsável pelo pagamento de imposto ou contribuição, cujo fato gerador deva ocorrer posteriormente, assegurada a imediata e preferencial restituição da quantia paga, caso não se realize o fato gerador presumido."

Se outra razão relevante de ordem jurídica não pudesse ser invocada, nessa ocasião em que, em última análise, infere-se sobre as limitações do poder de tributar no Estado, o instituto da substituição é praticado com o intuito de ampliar o campo de arrecadação do fisco, sendo lógico concluir-se que o parágrafo 7º se acha, inquestionavelmente, situado em capítulo impróprio da Constituição permitindo-se ao operador do direito mais cuidadoso perscrutar sobre a sua constitucionalidade.

A propósito, o Professor HUGO DE BRITO MACHADO, em recente artigo publicado na Revista Dialética do Direito Tributário, vol. 26, págs. 27/37, com indisfarçável saber jurídico, ensina:

"Tendo em vista as inúmeras ações nas quais vinha sendo apontada a inconstitucionalidade da cobrança antecipada do ICMS sob a forma de substituição tributária, os governos estaduais conseguiram que o Congresso Nacional aprovasse a Emenda Constitucional nº 3 que introduziu o parágrafo 7º, no artigo 150 da Constituição Federal, para validar a malsinada cobrança antecipada.

(...)

Ocorre o direito de somente pagar o imposto depois da ocorrência do respectivo fato gerador, como o direito de somente se submeter aos efeitos da incidência de qualquer regra jurídica depois que tal incidência acontece, o primeiro, e de todas as pessoas, o segundo, mais abrangente.

Assim, em face do que estabelece o artigo 60, § 4º, inciso IV, da vigente Constituição, a proposta da qual resultou a Emenda nº 3 nem poderia ter sido objeto de deliberação. Sua inconstitucionalidade é flagrante, porque afronta um dos mais elementares direitos individuais, qual seja, repita-se, o de não se submeter a qualquer efeito de incidência de norma jurídica antecipadamente. Admitir-se a cobrança de um imposto em face de um fato gerador futuro é submeter o contribuinte ao efeito da incidência de uma norma de tributação sobre um fato gerador que ainda não aconteceu. Tanto é assim que o próprio dispositivo, introduzido na Constituição com a referida Emenda, preocupou-se em garantir ao contribuinte substituído imediata e preferencial restituição na hipótese de não se realizar o fato gerador presumido.

Nem se diga que no caso do ICMS a cobrança antecipada justifica-se em face da presunção induvidosa de que as operações subseqüentes vão acontecer. Se para a cobrança de um imposto fosse suficiente a presunção da ocorrência de fatos futuros, o Fisco poderia lançar e cobrar, desde logo, de todos, o imposto sobre heranças, porque há a absoluta certeza de que todos vão morrer. E como nossos herdeiros, também, com certeza, um dia morrerão, deles também seria possível desde logo a cobrança do mesmo imposto.

O absurdo é tão evidente que dispensa maiores comentários.

Entretanto, não obstante inconstitucional, a Emenda nº 3 de 17 de março de 1993, parece haver afastado, na prática, a possibilidade de escaparem os contribuintes do ICMS ao regime da chamada "substituição tributária para frente", que na verdade nada mais é, repita-se, do que uma fórmula para cobrança antecipada do imposto. É que o Superior Tribunal de Justiça, onde se esboçava uma reação contra a exigência, com o advento da Emenda nº 3 passou a decidir pela sua legitimidade.

A nosso ver, porém, mesmo admitindo a constitucionalidade da Emenda nº 3, ainda assim, a cobrança estava a depender de Lei Complementar Federal. Por isso mais uma vez se fez valer no Congresso Nacional a força dos governadores dos Estados, que obtiveram a Lei complementar nº 87."

Ainda sobre a constitucionalidade ou não da E.C. nº 3, o Professor IVES GRANDA MERTINS, em brilhante parecer que se acha transcrito no vol. 22 da mesma obra acima citada, às págs. 77/85, assim se posiciona:

"Desde a Emenda Constitucional nº 3/93 tenho defendido a tese de que seria ela inconstitucional por ferir cláusuala pétrea colocada na seção das limitações do poder de tributar da Constituição Federal.

Com efeito, determinando, o artigo 150, inciso I, que o direito tributário rege-se pelo princípio da legalidade e a legalidade, quando da promulgação da Constituição Federal, não permitia esta a criação de tributo sobre fato gerador inexistente, isto é, toda obrigação tributária deveria corresponder a um fato gerador econômico sobre a qual incidiria a tributação.

Por esta razão, só poderia haver tributação sobre fatos geradores reais, isto é, a pessoa física ou jurídica só poderia pagar tributo se houve obrigação real.

Caso contrário, a tributação teria o efeito de confisco, corresponde à apropriação, pelo Estado, de parte do patrimônio do cidadão, sem ocorrência de hipótese econômica a justificar a incidência.

Em outras palavras, sempre que a incidência tributária não tivesse sustentação econômica relacionada à hipótese prevista na lei explicitadora da Constituição (Lei Complementar exigida pelo Art.146 da CF) feriria o princípio da legalidade (imposição sem fato gerador real) e provocaria o efeito confisco (confiscar bens de cidadãos sem a ocorrência de fato econômico capaz de gerar a obrigação).

(...)

O § 7º, introduzido no artigo 150 pela lei EC 3/93 fala, inclusive, em "fato gerador presumido" e presumido, sequer entre os léxicos, pode ser considerado "fictício". Presume-se fato existente embora desconhecido, mas não se presume fato inexistente. Pode-se criar uma ficção sobre o fato inexistente, que nunca será presumido pelo simples fato de inexistir. E a EC nº 3, embora fazendo clara menção a fato gerador presumido, explica que o fato gerador presumido, de rigor, não é presumido, mas fictício, pois não existe e, se nunca vier a existir, a imposição tributária se transformará em Empréstimo Compulsório e deverá ser devolvida, imediata e preferencialmente, a quantia confiscada, ao sujeito passivo escolhido para suportá-la."

Seguindo a esteira do mesmo raciocínio, é salutar trazer à lume o pensamento do eminente e sempre lembrado Mestre GERALDO ATALIBA, em sua obra "Hipótese de Incidência Tributária", Ed. Revista dos Tribunais, 4ª edição, 2ª tiragem, São Paulo, 1991, respeito do conceito de fato gerador da obrigação tributária, à luz da sua teoria da hipótese de incidência para a qual convergem pressupostos perfeitamente delimitados:

"A hipótese de incidência é, primeiramente, a descrição legal de um fato: é a formulação hipotética, prévia e genérica, contida na lei, de um fato (é o espelho do fato, a imagem conceitual de um fato: é seu desenho).

É, portanto, mero conceito, necessariamente abstrato. É formulado pelo legislador fazendo abstração de qualquer fato concreto. Por isso é mera "previsão legal" (a lei é, por definição, abstrata, impessoal e geral).

Assim, uma lei descreve hipoteticamente um estado de fato, um fato ou m conjunto de circunstâncias de fato, e dispõe que a realização concreta, num mundo fenomênico, do que foi descrito, determina o nascimento de uma obrigação de pagar um tributo.

Portanto, temos primeiramente (lógica e cronologicamente) uma descrição legislativa (hipotética de um fato); ulteriormente, ocorre, acontece, realiza-se este fato concretamente.

A obrigação só nasce com a realização (ocorrência) deste fato, isto é: só surge quando este fato concreto, localizado no tempo e no espaço, se realiza, (pressuposto, fattispecie, hecho imponible, hecho generador, Tatbesband, pressupuesto de hecho, fait genérateur).

E arremata com singular maestria:

"Tal é a razão pela qual sempre distinguimos estas duas coisas, denominando "hipótese de incidência" ao conceito legal (descrição legal, hipotética, de um fato, estado de fato ou conjunto de circunstâncias de fato) e "fato imponível" ao fato efetivamente acontecido, num determinado tempo e lugar, configurando rigorosamente a hipótese de incid~encia." (op. Cit. Págs. 46/47).

O Professor HUGO DE BRITO MACHADO, já citado no presente aresto, não destoa do pensamento do Professor GERALDO ATALIBA, ao dissertar sobre a hipótese de incidência tributária em sua obra "Curso de Direito Tributário", 3ª edição, Rio de Janeiro, Ed. Forense, 1985, pág. 59, ditando o seguinte magistério:

"A expressão hipótese de incidência designa com maior propriedade a descrição, contida na lei, da situação necessária e suficiente ao nascimento da obrigação tributária, enquanto que a expressão fato gerador diz da ocorrência, no mundo dos fatos, daquilo que está descrito da lei. A hipótese é simples descrição, abstrata, enquanto que o fato é a concretização da hipótese."

Mesmo que todos os aspectos conceituais e doutrinários já amplamente colacionados não fossem suficientes para a formação do meu juízo de valor ao derredor do instituto da substituição tributária, ainda assim, restaria o caminho da abordagem pragmática. Refiro-me, precisamente, à análise de determinada situação fática vislumbrada no caminho que medeia o surgimento de determinada operação comercial de compra e venda de mercadoria até o efetivo momento da incidência tributária.

É de todo factível que o comerciante, efetuando o pagamento da obrigação tributária antecipadamente, na condição de contribuinte substituto e nos moldes estabelecidos pela emergente lei, neste Estado, venha padecer de circunstâncias alheias à sua vontade que impossibilitem a venda da mercadoria que se encontra em seu estabelecimento (extravio, desgaste, perecimento, furto, roubo, etc.). Em assim se dando, mesmo levando-se em consideração que o comerciante poderá ser restituído daqueles valores previamente recolhidos, mesmo em caráter preferencial, consoante a dicção da lei, ainda assim estaria configurado o confisco.

Parece lógico chegar-se a esta ilação, uma vez que, para a cobrança do tributo antecipadamente, não se teve por presente o pressuposto básico, qual fosse a ocorrência do fato gerador da obrigação tributária, mas mera presunção de que o mesmo viesse a ocorrer, no futuro, e sob condições imaginadas pelo próprio agente arrecadador (pauta fiscal), que inclui na sua composição numérica a alíquota do imposto, mais a margem consignável de lucro que o comerciante teria naquela mercadoria determinada quando e se realizada a operação previsível, tudo em função de meras conveniências do Fisco, o que é de todo incompatível com o poder de tributar do Estado.

Do acervo de argumentos expendidos, por fim, chego às seguintes conclusões:

Inexiste dúvida entre os doutos de que a legalidade outorgada ao instituto da substituição tributária para frente, com a edição da LC 87/96, é meramente formal. Tal norma, nascida ao abrigo da EC nº 3, na    prática, importou em desconstituição de um princípio básico, assentado em outra LC que é o próprio Código Tributário Nacional, sem que tenha havido a revogação expressa do CTN, onde as regras e condições, bem como o balizamento da incidência tributária, estão devidamente conceituados assentados.

A justificativa utilizada pelo legislador comum, para inserir no texto da Constituição Federal o instituto da substituição tributária, foi o de que "a sua utilização regular evitaria (ou pelo menos diminuiria sensivelmente) a evasão fiscal". Ora: a ineficiência da máquina arrecadadora do Estado e dos seus métodos de fiscalização, historicamente têm sido os reais causadores daquela evasão não sendo tolerável, juridicamente, a superação de tais deficiências mediante o uso de um instituto patentemente antijurídico, quando se faz incidir a obrigação tributária, antes da ocorrência do fato gerador, contrariando-se, assim,  tudo quanto já foi construído em matéria de Direito Tributário.

Considerar, d’outra sorte, inconstitucional a própria EC nº 3, em face da Constituição Federal, não se me configura tarefa intangível, até porque a doutrina dominante e o entendimento pretoriano têm se orientado no sentido de consagrar a tese da "inconstitucionalidade da norma constitucional", sempre que a mesma contrariar o todo lógico-sistemático que deve orientar o processo interpretativo das normas inseridas na Constituição, entendida como uma unidade e não como um acervo de normas fragmentárias. Tal circunstância impõe impedir-se que nenhum dispositivo dela deva ser interpretado isoladamente, sob pena  de concluir-se pela falta de sentido de uma determinada norma ou ainda a sua incompatibilidade com outra norma (a propósito leia-se: "Curso de Direito Constitucional", Paulo Bonavides, 6ª edição, pág. 405 e também "Interpretação e Aplicação da Constituição", Luís Roberto Barroso, Editora Saraiva, 1996, pág. 128).

Como se vê: a cobrança do ICMS antecipado por substituição, diante da unanimidade de respeitáveis juristas, em decretar a inconstitucionalidade da medida, pensamento veiculado por diversos artigos e teses doutrinárias, não deixa de criar a mesma expectativa da "Crônica de uma morte anunciada", lembrando os créditos ficcionais do fabuloso escritor colombiano Gabriel Garcia Marquez.
 
 

Retirado de: http://www.ribeiros.com.br/icmsantec.htm