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OS CONTRATOS EM DÓLAR E SUA REVISÃO
Leonardo Roscoe Bessa




A mudança repentina na economia atingiu diretamente os consumidores que celebraram contratos de execução diferida com cláusula de reajuste vinculada à variação cambial do dólar norte-americano. Os advogados das instituições financeiras e, também, o senso comum proclamam: o contrato é lei entre as partes; o que foi pactuado deve ser cumprido. Não é bem assim. Aliás, historicamente, nunca foi.

O Código de Hamurabi, de aproximadamente 2000 anos antes de Cristo, previa no artigo 48: ‘‘Se alguém tem um débito a juros e uma tempestade devasta o campo ou destrói a colheita, ou por falta de água não cresce o trigo no campo, ele não deverá, nesse ano, dar trigo ao credor, deverá modificar sua tábua de contrato e não pagar juros esse ano’’.

Em Roma, nos seus treze séculos de história, existia previsão de alteração do conteúdo dos contratos, caso houvesse modificação das condições iniciais que estimularam o acordo.

Na Idade Média houve uma intensa preocupação com a denominada lesão nos contratos, especialmente com a usura.

Somente após a Revolução Francesa, que exaltou o individualismo e a liberdade quase absoluta, foi que a possibilidade de revisão contratual foi deixada de lado por alguns anos. O homem, sendo livre e igual, poderia, manifestando sua vontade, contrair obrigações perante terceiros. Por algum tempo não se falou mais na cláusula rebus sic stantibus. O Código Civil francês de 1804 explicitou: ‘‘O contrato é lei entre as partes’’.

O pacta sunt servanda tornou-se verdadeiro dogma. Mas nem mesmo no século XIX acreditava-se piamente que o contrato tinha uma força cogente e absoluta. Se o acordo fosse celebrado sob algum vício de consentimento, poderia ser invalidado. Também negavam-se efeitos ao contrato com objeto ilícito, violador de norma de ordem pública.

Mas, especialmente após as duas grandes guerras deste século, os juristas e legisladores voltam a atenção ao conteúdo do contrato. Percebe-se que a igualdade entre os homens, declarada pela Revolução Francesa, era apenas formal. A desigualdade econômica, cada vez mais contundente, permitia abusos contratuais. Havia, de regra, imposição das cláusulas que privilegiavam uma das partes. Novas técnicas de contratação surgiram, onde a vontade passa a mero elemento formal. Destaca-se, no contexto, o contrato de adesão: uma das partes — economicamente mais forte — elabora o contrato, cabendo à outra simplesmente aderir ou não às disposições preestabelecidas, sem qualquer possibilidade de discussão do seu conteúdo.

Renasce, no início do século, a possibilidade de revisão dos contratos. Diversos países europeus promulgam leis com referência expressa à ‘‘teoria da imprevisão’’. A resolução ou revisão dos contratos passaria a ser prevista em caso de agravamento imprevisto e exagerado para uma das partes.

No âmbito desse movimento de dirigismo contratual, atenção diferenciada foi conferida aos contratos em que uma das partes é naturalmente vulnerável, como o empregado, nas relações trabalhistas, e o consumidor, nas relações de consumo.

Especialmente na década de 70, vários países do mundo ocidental, preocupados com a vulnerabilidade do consumidor, promulgam leis visando à sua proteção contratual: Suécia (1971), Dinamarca e Venezuela (1974), Alemanha e México (1976), Inglaterra (1977), França (1978), Áustria (1979), Irlanda (1980), Luxemburgo (1984), Espanha (1984) e Portugal (1985).

O Brasil, na mesma linha, edita, em 1990, a Lei nº 8.078 que, em seu art. 6º, V, expressamente prevê, como direito básico do consumidor, a possibilidade de revisão do conteúdo dos contratos em razão de fatos supervenientes que os tornem excessivamente onerosos. Ressalte-se que não é requisito para a revisão contratual a imprevisibilidade do fato novo, ensejador da vantagem exagerada. Basta que haja uma onerosidade excessiva para o consumidor.

Os contratos de leasing de veículos com reajuste da prestação vinculado ao dólar constituem-se, atualmente, situação que ilustra fielmente a onerosidade excessiva do contrato. Em janeiro, o dólar valorizou-se em aproximadamente 70% (setenta por cento) frente ao real, enquanto ainda se convive com inflação mensal próxima de zero.

No Brasil inteiro, o Judiciário tem concedido, em ações individuais e coletivas, liminares impondo a substituição do reajuste pelo dólar por índice que reflita a taxa inflacionária.

Entre as discussões que o tema tem gerado, além da afirmação simplista e apressada de que o reajuste pelo dólar estava previsto contratualmente e, portanto, deve ser seguido, ouve-se outro argumento falho. As empresas captaram recursos no exterior para aquisição dos veículos arrendados. Possuem, portanto, obrigações em dólar, sendo injusto impor-lhes o ônus decorrente da desvalorização do real.

Ora, a instituição que realmente contraiu empréstimo no exterior fez por conta e risco próprios, intencionando pagar juros menores do que obteria no país. Com assessorias jurídicas muito bem estruturadas conheciam, ou deveriam conhecer, o art. 6º, V, da Lei nº 8.078/90, que consagra a possibilidade de revisão do contrato em favor do consumidor, caso este se torne excessivamente oneroso. Se, mesmo conhecendo esta circunstância específica da lei de proteção do consumidor, o empresário optou pelo dólar, eventual prejuízo será resultado do risco da atividade empresarial.

Antes de assumir o empréstimo, a empresa já sabia desta opção do legislador em proteger a parte mais fraca no contrato. A lógica jurídica é clara. O consumidor é destinatário final do produto. Adquire o bem por necessidade. A empresa fez a opção pelo dólar como estratégia empresarial para aumentar seus lucros. Ao contrário do dito popular, juridicamente, a corda deve arrebentar do lado do mais forte.
 
 

Leonardo Roscoe Bessa
Titular da Segunda Promotoria de Defesa do Consumidor do Ministério Público do Distrito Federal
 

Extraído do site do jornal Correio Braziliense


 
 

Retirado de : www.neofito.com.br