SISTEMA FINANCEIRO DE HABITAÇÃO E ESTRUTURA
LEGISLATIVA
AUTOR : JUIZ FEDERAL RUBENS MARTINEZ CUNHA
Rubem Martinez Cunha
RESUMO
Em virtude do disposto no art. 192 da Constituição
Federal de 1988, o
sistema financeiro nacional e, dentro dele, o sistema financeiro
da
habitação são regidos por leis materialmente
complementares. As
mudanças legislativas pós-Constituição,
bem como os regulamentos dos
órgãos que ainda detêm poderes normativos
devem levar em conta esse
aspecto, sob pena de o Poder Judiciário, ao aplicá-las,
desconsiderar
grande parte de seus dispositivos atendendo à hierarquia
das leis.
O sistema financeiro nacional, nos termos do art. 192 da Constituição
de
1988, "será regulado em lei complementar". A idéia
do constituinte era de
que tal regulamentação fosse editada no prazo de
cento e oitenta dias ao
cabo do qual estariam revogados "todos os dispositivos legais
que
atribuam ou deleguem a órgão do Poder Executivo
competência assinalada
pela Constituição ao Congresso Nacional, especialmente
no que tange a: I
- ação normativa;..." (art. 25 do Ato das Disposições
Constitucionais
Transitórias).
A ressalva "sujeito este prazo a prorrogação por
lei", constante do último
dispositivo, faz com que até hoje, passados quase oito
anos, o sistema
financeiro nacional seja praticamente o mesmo de antes da Constituição.
O sistema é regulado ainda hoje pela Lei n. 4.595, de 31/12/64,
agora
promovida a lei materialmente complementar, em virtude daquela
disposição do art. 192 da Constituição.
Na cúpula do sistema está o Conselho Monetário
Nacional, com imensos
poderes normativos que o constituinte pretendeu abolir em seis
meses.
De início, o Conselho era integrado por nove membros que,
na prática,
seguiam a orientação de seu presidente, o ministro
da Fazenda.
A grande estrutura do sistema, porém, chama-se Banco Central
da
República do Brasil. Ele é a secretaria do Conselho
Monetário, devendo
cumprir e fazer cumprir suas normas. Na prática, o Banco
Central é o
laboratório onde são geradas e trabalhadas as idéias
norteadoras do
sistema financeiro, nos seus escaninhos burocráticos,
que ganham, depois,
burilamento técnico gerador de aparência que permite
que elas aterrizem
no Diário Oficial da União.
Os problemas dos sistemas financeiros, nacional e da habitação,
agravaram-se após a Constituição de 1988.
Não é porque o Congresso Nacional deixa de elaborar
a lei complementar
de que cuida o art. 192 da Carta Maior que as necessidades de
mudança
deixarão de existir. Só que, muitas vezes, essas
mudanças somente
poderiam dar-se por lei complementar, e a dificuldade outra vez
é a
mesma: é necessária a aprovação qualificada
do Congresso. Então, é
possível que tenhamos, hoje, leis, medidas provisórias,
resoluções e até
circulares, materialmente complementares, em considerável
subversão
da ordem jurídica.
Isso parece particularmente verdadeiro no sistema financeiro da
habitação.
Dentre as atribuições privativas do Conselho Monetário
Nacional, está a
de "disciplinar o crédito em todas as suas modalidades
e as operações
creditícias em todas as suas formas, inclusive aceites,
avais e prestações
de quaisquer garantias por parte das instituições
financeiras" (art. 4º, VI,
da Lei n. 4.595).
Ocorre que, anteriormente à edição da Lei
n. 4.595, já existia a Lei n.
4.380, de 21/8/64, que, entre outras medidas, instituiu o "sistema
financeiro para aquisição da casa própria".
Essa lei sofreu alterações ao longo do tempo e foi
recepcionada pela
Constituição de 1988. Como ela trata também
de parcela significativa do
sistema financeiro nacional, entendo que, em grande parte, ela
foi
recebida como lei materialmente complementar.
Verifique-se, a propósito, o que há no art. 8º,
parágrafo único, da Lei n.
4.380:
O Conselho da Superintendência da Moeda e do Crédito
fixará normas que
regulam as relações entre o sistema financeiro
da habitação e o restante
do sistema financeiro nacional, especialmente quanto à
possibilidade, às
condições e aos limites de aplicação
de recursos da rede bancária em
letras imobiliárias, emitidas, nos termos desta lei, pelo
Banco Nacional da
Habitação.
Ou seja, a própria lei básica que criou o Sistema
Financeiro da Habitação
declara que ele integra o sistema financeiro nacional, sendo
que a relação
entre ambos seria regulada pelo Conselho da antiga SUMOC, predecessora
do atual Conselho Monetário Nacional.
Depois disso, o Decreto-lei n. 2.291, de 21/11/86, confirmou:
Art. 7º. Ao Conselho Monetário Nacional, observado
o disposto neste
Decreto-lei, compete:
I - exercer as atribuições inerentes ao BNH, como
órgão central do
Sistema Financeiro da Habitação, do Sistema Financeiro
do Saneamento e
dos sistemas financeiros conexos, subsidiários ou complementares
daqueles;
II - deferir a outros órgãos ou instituições
financeiras federais a gestão
dos fundos administrados pelo BNH, ressalvado o disposto no artigo
1º, §
1º, alínea "b"; e
III - orientar, disciplinar e controlar o Sistema Financeiro da Habitação.
A nossa atual Constituição apanhou assim os dois
sistemas e, se hoje a
doutrina e jurisprudência aceitam com tranqüilidade
a idéia de que a Lei n.
4.595 foi recebida como materialmente complementar, não
há porque não
considerar também assim grande parte da Lei n. 4.380 e
suas alterações
legislativas anteriores à Carta vigente.
Então, aquelas atribuições já destacadas
(Lei n. 4.595, art. 4º,VI), o
Banco Central, isto é, o Conselho Monetário Nacional
as exerce também no
sistema financeiro da habitação – e agora, não
há mais uma, mas pelo
menos duas leis materialmente complementares virtualmente maltratadas
por leis, medidas provisórias, resoluções
etc., tal como vem ocorrendo com
o próprio sistema financeiro nacional.
Como decifrar essa esfinge?
É imprescindível que o intérprete identifique,
na lei que contenha
dispositivos materialmente complementares, aqueles que são
efetivamente
complementares, tal como aprendemos a fazer com o Código
Tributário
Nacional perante a carta outorgada em 1967. A partir daí,
devem-se
analisar as alterações legislativas (leis, decretos-leis)
anteriores à
Constituição de 1988. Essas leis podiam alterar,
e efetivamente alteraram,
as Leis n. 4.380 e n. 4.595, e passaram a ser elas também
tidas como
materialmente complementares à Constituição.
Aquelas e estas, após a
Constituição, somente podem ser alteradas por leis
complementares.
Examino alguns casos concretos.
É de observar-se, por exemplo, que o art. 5º da Lei
n. 4.380, de 21/8/64,
estabelece para toda a duração do contrato a permanência
da relação
original entre a prestação mensal de amortização
e o salário do tomador
do empréstimo. Para isso, a lei estabeleceu que, relativamente
aos
funcionários públicos, cujos vencimentos eram reajustados
em lei, fosse
levada em consideração a percentagem nela estabelecida.
Quanto aos
mutuários não-funcionários públicos,
o índice que seria levado em
consideração era o do salário-mínimo.
Pode ser que os critérios tenham mudado ao longo do tempo,
índices foram
mudados "n" vezes, mas o princípio aí insculpido,
esse somente poderá ser
alterado por lei complementar.
Como o Supremo Tribunal Federal já decidiu que não
há direito adquirido a
determinado índice, isso não é matéria
objeto de lei complementar.
Até que ponto a Lei n. 8.692, de 28/7/93, que criou o Plano
de
Comprometimento de Renda - PCR, está de acordo com esse
sistema de
equalização renda/prestação?
Dispõe ela em seu art. 2º que os contratos de financiamento
habitacional
celebrados em conformidade com o Plano de Comprometimento de
Renda
estabelecerão percentual de no máximo trinta por
cento da renda bruta
do mutuário destinado ao pagamento dos encargos mensais.
Nos
encargos mensais estão incluídos amortização,
juros e seguros.
Há, é certo, diferenças conceituais. Pela
Lei n. 4.380, não se pode alterar
a relação original entre a prestação
mensal de amortização e o salário do
mutuário. Já aqui se admite reajustar o valor do
encargo mensal até o
percentual máximo de renda estabelecido no contrato, sem
considerar a
relação inicial.
O princípio já havia sofrido alteração
com a introdução da equivalência
salarial como critério de reajustamento das prestações
pelo Decreto-lei n.
2.164, de 19/9/84 (art. 9º), o qual, entretanto, permitia
utopicamente
uma folga de pelo menos sete pontos percentuais em favor do mutuário
se
o salário aumentasse, no mesmo período, mais que
a variação da UPC.
Entendo que essa modalidade não vulnera o princípio
básico na medida em
que preserva a capacidade de pagamento do mutuário e também
garante
a sobrevivência do sistema financeiro da habitação,
embora passe a
onerar inteiramente os acréscimos de rendimentos que vierem
a ser
obtidos pelos mutuários.
Já o mesmo não se pode dizer quanto aos financiamentos
da chamada
faixa livre. Criação do legislador complementar
Conselho Monetário
Nacional (Resolução n. 1.446/88), a faixa livre
abriga financiamentos
habitacionais com encargos convencionados entre as partes (Circular
n.
1.278, de 5/1/88, do Banco Central).
Dizer "encargos convencionados entre as partes" é dizer,
todos sabem,
que o mutuário ingressa no território livre dos
banqueiros.
Nos financiamentos dessa faixa (20% de 65% dos recursos captados
em
poupança), o princípio da correlação
entre a renda do mutuário e os
encargos assumidos desaparece. Ficam assegurados apenas os ganhos
dos banqueiros, com o retorno dos recursos aplicados garantido
pela
hipoteca do imóvel.
Outra incongruência a comprometer o princípio de
manutenção da relação
renda/prestação é a aplicação
da famigerada TR (Taxa Referencial de
Juros) no reajuste das prestações mensais e do
saldo devedor. Embora
seu emprego, como taxa de juros, tenha sido condenado há
muitos anos
pelo Supremo Tribunal Federal, é mantida impavidamente
pela tecnocracia
oficial, fazendo com que a Justiça mais se sobrecarregue
de processos
repetitivos.
A criatividade veio no bojo de mais um plano econômico.
O art. 18 da Lei
n. 8.177, de 1/2/91, determinou a aplicação da
TR, então criada, nas
cadernetas de poupança e nas prestações
e saldos devedores do Sistema
Financeiro da Habitação.
Hoje a jurisprudência caminha firmemente no sentido da devida
correção
de rumos. Veja-se, a propósito, recente julgamento do
Tribunal Regional
Federal da 1ª Região (Diário da Justiça,
Seção 2, de 17/5/96, p. 31.863):
8. Contrariamente ao que vinha entendendo esta Turma, não
pode a TR
reajustar os saldos devedores; o INPC é o índice
adequado já que
corresponde à variação do poder aquisitivo
da moeda.
Também comprometendo grande parte dos financiamentos da
"faixa livre",
e talvez muitos outros, a Lei n. 4.380 (art. 6º, alínea
e), em absoluta
consonância com o § 3º do art. 192 da Constituição
em vigor, estabelece
que "os juros convencionais não excedem de 10% ao ano".
Então, a
decisão do Supremo Tribunal Federal, que tem esse dispositivo
como de
eficácia contida, dependente de regulamentação
mediante lei
complementar de que cuida o caput do referido artigo constitucional,
vale
para o restante do sistema financeiro nacional e não para
grande parcela
dos empréstimos habitacionais.
O § 3º do art. 5º da Lei n. 4.380 dá uma
garantia importante ao tomador
de recursos do sistema financeiro da habitação:
Cada reajustamento entrará em vigor após 60 (sessenta)
dias da data de
vigência da alteração do salário-mínimo
que o autorizar e a prestação
reajustada vigorará até novo reajustamento.
Isso, segundo me parece, é norma geral, equiparável
a direito individual,
de natureza quase alimentar porque concede uma folga para o mutuário
recompor seu orçamento e é importante para a segurança
na aplicação do
reajustamento da prestação. É direito do
participante do sistema, qualquer
que seja a data de seu ingresso no mesmo.
Não poderia vir a Lei n. 8.004, de 14/3/90, e atravessar:
Art. 17. O reajustamento das prestações dos mutuários
enquadrados no
Plano de Equivalência Salarial por Categoria Profissional
- PES/CP levará
em consideração também o reajuste de salário
concedido no próprio mês
da celebração do contrato, ainda que a título
de antecipação salarial.
Algumas conclusões.
O Tribunal de Contas da União constatou:
3. É lamentável que os dados coletados, uma vez
mais, demonstrem o
descalabro do Sistema Financeiro Habitacional, com conseqüente
prejuízo
para a política operacional do Governo e para a população
como um todo.
4. Mais do que nunca, nesse momento em que a Nação
principia a
retomada dos rumos do desenvolvimento e o novo Governo pretende
imprimir profundas mudanças de ordem social, econômica
e financeira,
faz-se necessário alertar o Executivo de que não
bastam ao bom
andamento do Estado a supressão da concessão de
benefícios e o
aumento da arrecadação, fazendo-se necessária
a conjugação desses
esforços com uma política de austeridade no controle
da aplicação dos
recursos públicos.
(Do voto do Ministro Luciano Brandão no proc. TC 25.637/92-4
- Rev.
TCU, v. 26, n. 63, p. 1, jan./mar.95).
Acrescentaria que aquele descalabro decorre também do vezo
tecnocrático em relação às normas
da boa técnica jurídica, com o que se
contornam dispositivos legais e princípios tidos como
empecilhos aos
desígnios oficiais.
No entanto, quando se ferem direitos individuais, entra em cena
indefectivelmente o Poder Judiciário e correções
de rumo necessariamente
ocorrerão, mesmo quando tidas como decisões absurdas.
Nesse sentido, deve ser estendido o alerta ao Poder Executivo,
de que
fala o ministro Luciano Brandão, até porque isso
vem em prol da tão
desejada contenção de despesas, na medida em que
se alivia a Justiça de
milhares de processos repetitivos decorrentes de normativos ilegais
ou mal
elaborados.
Também ao Poder Legislativo pode-se imputar a responsabilidade
por esse
caos não só porque não legisla com boa técnica,
mas porque o faz a
reboco das medidas provisórias do Poder Executivo e, principalmente,
não
elabora a lei complementar que deve regulamentar o sistema financeiro
nacional.
Na verdade, porém, o Sistema Financeiro da Habitação
está em extinção.
Seu maior inimigo é o entendimento extremamente duvidoso
– porque já
vem de longa data e nunca deu resultados – de que salário
digno gera
inflação.
Salários comprimidos não podem sustentar o sistema,
que exige juros
extratosféricos, correção integral e outros
acessórios convenientes.
De outra parte, não se pode simplesmente pensar em transferir
para o
contribuinte, debitando-se à conta do Tesouro Nacional,
os erros, os
rombos e as mazelas do sistema. O contribuinte também
possui os seus
direitos e o exercício dos mesmos conduzirá a mudanças
de rumo das
políticas oficiais.
De sua parte, o Poder Judiciário deverá continuar
aplicando de forma
correta e científica as leis, considerando o seu sistema
hierárquico e
constitucional. Isso é garantia de segurança social
e jurídica. É direito dos
cidadãos. E é fator educativo da maior importância
para o
restabelecimento, inclusive de modo preventivo, do ordenamento
jurídico,
resgatando tradição de técnica esmerada,
já longínqua, de nosso Direito.
Rubem Martinez Cunha é juiz federal da Seção
Judiciária do Estado de
Mato Grosso
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