REGIME TRIBUTÁRIO E ESTADO DE DIREITO
GERALDO ATALIBA
Professor Titular das Faculdades de
Direito da USP e da PUC
IGUALDADE E ANTERIORIDADE TRIBUTÁRIA
Vamos meditar sobre a
riqueza deste princípio, a importância da igualdade, na Constituição,
mas sobretudo fazer um esforço para torná-lo uma realidade.
Estamos acostumados aos princípios constitucionais, é um
vício mencioná-los - e são importantes - e fazer até
bonitos discursos a respeito. Quando chega a hora de agirmos, o legislador
não leva em consideração, não respeita os princípios.
A Administração finge que não existem. E o Judiciário,
que deve corrigir o legislador e o administrador para impor a eficácia
dos princípios, também muitas e muitas vezes falha. Nosso
esforço deve ser no sentido de dar real e efetivo valor aos princípios.
O tema hoje é "Regime Jurídico Tributário". O Prof.
Celso Antônio Bandeira de Mello, num trabalho recente, demonstra
que a palavra regime, no discurso jurídico, é sinônimo
de sistema. Portanto, quem fala em regime jurídico tributário
está falando do sistema tributário. Que é regime?
É o conjunto de princípios e regras que incide sobre uma
determinada situação de fato. Que é sistema? É
o conjunto de princípios e regras que rege os comportamentos das
pessoas em determinadas situações de fato. Logo, sistema
e regime são a mesma coisa. No caso, o ponto de referência
é o Estado, exercitando o poder de tributar.
Tributação,
ação de tributar. Essa ação do Estado é
disciplinada pelos princípios e regras que formam o sistema constitucional
tributário, como um subsistema dentro do sistema constitucional
tributário Se se perguntar qual é o princípio mais
importante, qual a diretriz que domina toda a Constituição
e que espraia suas exigências até os seus mais remotos confins
e cujas exigências não podem ser ignoradas em nenhuma hipótese,
por ninguém - nem pelo legislador, nem pelo administrador, nem pelo
aplicador, nem pelo homem comum - teremos que dizer "é a igualdade".
Esse é o maior princípio constitucional. Primeiro, porque
ele é um desdobramento e um fundamento da República, que
está no art. 1º. Segundo lugar; é uma implicação
necessária do Estado de Direito, que também está no
art. 1º - não há Estado de Direito sem igualdade. Terceiro,
porque o fulcro da Constituição está todo no art.
5º. O art. 5º - que define os direitos individuais - é
a razão de ser da separação de poderes. Por que os
poderes são separados? É só reler Montesquieu: os
poderes são três, separados, autônomos, e independentes,
para proteger os direitos individuais. É de Montesquieu a frase
"o poder corrompe; o poder absoluto corrompe absolutamente". 'É
preciso que o poder contenha o poder'. Daí a idéia que aplicamos,
à perfeição, no Brasil, secundando a tradição
americana de reconhecer no Poder Judiciário um verdadeiro e efetivo
poder, ao contrário do que acontece, por exemplo, na França,
onde o Poder Judiciário não é poder, porque exatamente
não pode emanar ordens aos demais poderes. O art. 5º é
a razão de ser da estrutura de Estado que temos e da separação
de poderes, que é o timbre do Estado de Direito. No art. 5º
o mais importante é a igualdade, que está na cabeça
do art. 5º, e está no inciso I. Parece que o constituinte foi
sensível a uma lição notável, cuja leitura
se recomenda, de um dos melhores estudos feitos no Brasil, de Francisco
Campos que, estudando o princípio da igualdade num trabalho magnífico
publicado na Revista Forense, há cinqüenta anos, um clássico
atualíssimo, diz: "é tão importante a igualdade" -
naquele tempo estava no § 1º do art. 141 da Constituição
de 1946 - "é tão importante que é preciso que se leia
todos os demais parágrafos" - ou, no nosso caso, incisos do atual
art. 5º - "como envolvendo a igualdade". Então, todos têm
direito ao acesso ao Judiciário, em igualdade de condições,
ao due process of law em igualdade de condições, à
propriedade em igualdade de condições, à liberdade
de pensamento em igualdade de condições, à
liberdade de reunião em igualdade de condições,
etc. Enfim, já Francisco Campos dizia "é preciso ler todos
os direitos individuais conjugado com a igualdade, tal sua importância".
Em matéria tributária, como em todos os setores do Direito,
a igualdade é básica e fundamental. É a igualdade
que informa todos os institutos e princípios do Direito Tributário,
mas que na verdade são de puro Direito Constitucional. Preciosíssimo
livro de Alberto Xavier - "Os Princípios da Legalidade e Tipicidade
da Tributação" - mostra que só há verdadeira
obediência ao regime constitucional tributário, onde haja
igualdade, e a igualdade postula a legalidade e a tipicidade, em matéria
tributária. Como um estudo geral do princípio da igualdade,
é preciso mencionar o livro do Prof. Celso Antônio Bandeira
de Mello, "Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade".
É o melhor trabalho feito no Brasil. É a adaptação
de um parecer que o Prof. Bandeira deu a um Juiz hoje deste Tribunal, que,
quando era Juiz de Primeira Instância, sofreu tremenda injustiça.
Mostrou que o princípio da igualdade exigia que se anulasse ato
do Tribunal e que se desse àquele Juiz seu direito, o que foi feito.
Este parecer resplandeceu perante o nosso Judiciário, foi até
ao Supremo, sempre acatado. Daí vem esse livro, pequeno, modesto,
mas de conteúdo, de riqueza notável. Muito bem. A igualdade,
de modo geral e especialmente em matéria tributária, comporta
duas perspectivas ou contém, na riqueza da sua fecundidade, duas
vertentes: as chamadas igualdade material e igualdade formal. A Prof. Diva
Malerbi faz questão de dizer: "igualdade na lei e igualdade perante
a lei". Se a igualdade é uma exigência da Constituição,
o legislador é o primeiro que deve respeitá-la, fazendo uma
lei igual, ou seja, que trate igualmente aos desiguais na medida das suas
desigualdades. Mas não basta isso. É preciso que o aplicador
administrativo ou judicial volte sempre os olhos para o princípio
da igualdade, quando vai aplicar a lei. Não basta que a lei tenha
observado a igualdade; que seja materialmente igual; é preciso que
o aplicador também a aplique igualmente. Ele também deve
dar a sua contribuição, quando vai aplicar a lei aos casos
concretos. E, como o preceito é constitucional, o princípio
é superior, é máximo, é supremo. Se, por acaso,
a lei viola a igualdade totalmente ou parcialmente, o aplicador então
deve fazer a correção da lei. Repito, "a correção
da lei". O aplicador, especialmente o judicial, corrige a lei para conformá-la
às exigências da igualdade. É verdade que há
casos em que isto é impossível. Há casos em que a
lei é tão radicalmente contrária à exigência
constitucional da igualdade que não há como consertar - daí
o aplicador dizer "eu não aplico esta lei" - porque há duzentos
anos isto está na tradição do Direito Constitucional,
cujos padrões adotamos, no Brasil. Quer dizer, desde a decisão
clássica do Juiz Marshall, da Suprema Corte dos Estados Unidos,
em 1803, quando se fundou essa técnica de tratamento constitucional
e de controle jurisdicional dos atos administrativos. Marshall dizia "se
a Constituição manda ir para o norte, a lei para o sul, não
tenho remédio, devo escolher uma das duas, e é obvio que
a minha escolha só pode ser pela lei maior, pela Constituição.
Então, para aplicar a Constituição, eu não
aplico a lei. É porque preciso aplicar a norma constitucional,
que eu aplico a lei". Mas, didaticamente, para explicar o que estou fazendo,
para que a decisão judicial não pareça arbitrária
- ela não é, mas para que não pareça - então
tenho que dizer "eu declaro esta lei inconstitucional, por isso não
a aplico". Mas, isto cabe quando há radical diversidade entre os
vetores apontados pela lei constitucional e pela lei ordinária.
Às vezes essa relação de contraditoriedade não
é tão radical, então o Juiz não precisa declarar
inconstitucional a lei - vamos usar a expressão da jurisprudência
americana já acolhida pelo nosso Supremo - o Juiz "força"
a lei, empurra a lei para o lado do princípio constitucional, interpreta
e aplica. Nós vamos dar aqui alguns exemplos, muitos deles acolhidos
pela nossa jurisprudência. Quer dizer, quando é radical a
divergência entre Constituição e lei, o juiz não
aplica a lei, fica com a Constituição. Quando não
é tão radical assim, quando a Constituição
diz "vá para o norte" e a lei diz "vá para o nordeste", então
não é radical, irremissível, irremediável a
contradição. Então o juiz empurra para cá,
empurra para o norte; assim cumpre a Constituição e a lei
ao mesmo tempo. A chamada igualdade material é um princípio
que nos arma para identificarmos e denunciarmos a lei inconstitucional
por desigualdade. Quer dizer, o conteúdo dela é desigual.
A igualdade formal dá armas e instrumentos para denunciar o ato
de aplicação da lei inconstitucional, violador da igualdade,
o decreto executivo e os atos inferiores praticados pela administração
ou por qualquer aplicador. A igualdade formal, a igualdade perante a lei
também deve ser assegurada pelo Poder Judiciário, para que
não falhe na missão de assegurar a supremacia da Constituição.
No primeiro caso, segurança jurídica contra o legislador;
no segundo caso (igualdade formal), segurança jurídica contra
o aplicador. O constituinte brasileiro, escrevendo a norma constitucional
para um país com a cultura que temos, fez questão de pôr
no art. 5º, cabeça e inciso I, igualdade como um padrão
fundamental de todo o comportamento do Estado e, portanto, em primeiro
lugar, o comportamento do Legislativo. Bastava isso para que já
soubéssemos que só a lei cria tributo, só a lei estabelece
a carga tributária, só a lei designa sujeito passivo, só
a lei fornece ao aplicador todas as condições, exaustivamente
todos os elementos necessários para se ver configurada e quantificada
uma obrigação tributária. Bastava o art. 5º,
inciso I. Entretanto, o constituinte no art. 150 pôs: é proibido
("é vedado") União, Estados e Municípios exigirem
tributo sem lei. Item II, art. 150: esta lei terá que tratar igualmente
as situações iguais e desigualmente as situações
desiguais. Todos somos capazes de ler, admirar e fazer um esforço
para deduzir o conteúdo disso. Agora devemos fazer esforço
para dar eficácia a este enunciado, num país onde o legislador
é pouco reverente com a Constituição e não
estuda a Constituição. E, por não estudar, não
conhece. E, por não conhecer, não a estima e, não
a estimando, nem pensa nela. Quanto ao administrador (o Poder Executivo)
ocorre a mesma coisa. Ele não gosta, então ele não
estuda; não estudando, não conhece. Não conhecendo,
não pode gostar. E é um círculo vicioso. Sobra o Poder
Judiciário: é obrigado a conhecer; conhecendo, termina gostando.
Não é o gosto estético, subjetivo, pessoal, e sim
esta paixão que o jurista tem pela norma jurídica, especialmente
pela norma constitucional. O Juiz fica, na sociedade, com a função
de corrigir o erro do legislador e o erro do administrador (aplicador administrativo).
No Brasil, com uma Constituição tão minuciosa e tão
extensa, o risco de inconstitucionalidade, a probabilidade de inconstitucionalidade
- mesmo que o legislador seja muito consciente - é muito grande,
maior do que em qualquer outro país. Acontece que a quantidade de
inconstitucionalidades é gritante, brutal. Vamos, justamente, centrar
a atenção nesta primeira exigência do sistema, que
é a igualdade nessa matéria. Art. 150, inciso II: "é
proibido" - "quem" é proibido? O legislador. "É proibido
ao legislador tratar igualmente situações desiguais". E se
o legislador fizer isto? Então voltamos àquela premissa.
Ou o que ele fez é radicalmente irremediável e então
o Juiz não aplica a lei (porque contrariou este preceito constitucional)
ou, quando não é tão radical a discrepância,
então o Juiz aplica a lei, adaptando-a às exigências
da Constituição, entende e interpreta a lei 'em consonância'
com as exigências superiores da Constituição. E assim
'salva' a lei, não tal e qual ela é, mas aproveitando dela
o que seja consentâneo com o espírito da Constituição.
Noventa por cento da jurisprudência deste Tribunal é na linha
do que vou expor. O Decreto-lei 2.434 estabeleceu o seguinte: "são
isentos do imposto sobre operações de câmbio as operações
de câmbio realizadas para cobrirem importações cujas
licenças de importação sejam expedidas depois do dia
x".
Esta lei é alguns meses anterior ao tal dia x. Ficou imediatamente
evidente, para a maioria dos contribuintes, mesmo leigos, que havia algo
de muito esquisito. Eles se sentiram desigualmente tratados. Por quê?
Ora, se alguém obtém a licença para importar antes
do dia tal, paga o imposto; se for depois do dia tal, não paga o
imposto. Então, ficou muito chocante para o leigo que havia uma
violação da igualdade. Ora, o que tem o fato de eu tirar
licença agora ou depois, com a carga tributária que vou ter
que pagar?. Este tratamento desigual não é justificado. Então,
isto foi elaborado pela jurisprudência de Primeira Instância
e especialmente por este Tribunal, mas acompanhado por alguns outros Tribunais
Regionais Federais do País. E predomina a seguinte orientação:
se a lei deu isenção deste imposto sem nenhuma razão
objetiva, clara, transparente, ou seja, sem fundamento, já que o
Judiciário não vai questionar o mérito da decisão
de dar isenção, então o Judiciário dá
isenção para todo mundo em igualdade de condições,
tenham ou não as pessoas obtido a licença no dia x
ou no dia y, que é um dia futuro. Há acórdãos
com os mais variados fundamentos. Eu diria, pelo que tenho visto - se eu
estiver errado, vou ser corrigido pelo Dr. Kallás, Dra. Diva, Dr.
Américo Lacombe - que o fundamento predominantemente acolhido é
o seguinte: se a lei tributária deve descrever um fato dizendo "a
partir do acontecimento deste fato nasce uma obrigação tributária",
a lei tributária é obrigada, por exigência constitucional,
a descrever satisfatoriamente, integralmente o fato. Descrever o fato integralmente
quer dizer: o legislador é obrigado a explicitar os dados básicos
deste fato, para que ele possa ser reconhecido pelos intérpretes
como fato tributável. Deve dizer qual é a materialidade do
fato, qual é o momento em que acontece o fato, qual é o local
- se for relevante - em que acontece o fato, quem é o sujeito passivo
que vai ser responsável pela obrigação que vai nascer
do acontecimento deste fato, qual é a base imponível (ou
seja, deste fato, qual é a dimensão economicamente mensurável
que é legislativamente qualificada para sofrer a aplicação
da alíquota). E a lei ainda deve estabelecer a alíquota.
Tudo isso deve estar na lei. A falta de qualquer destes elementos na lei
impede que se reconheçam preenchidas as exigências do princípio
da legalidade. Então, haveria intenção de tributar,
mas não uma norma tributária; o Estado quis tributar. Só
que não foi eficaz, ele não conseguiu fazer a norma inteirinha.
A mesma coisa que aconteceria numa norma penal a que faltasse um elemento
substancial qualquer, e o Prof. Kallás me corrigirá. Nenhum
aplicador pode suprir aquela deficiência da lei penal. O legislador
quis punir, mas não conseguiu, não conseguiu criar a figura
punitiva, porque faltou um elemento. A legalidade exaustiva estrita é
tão válida em Direito Penal quanto em Direito Tributário.
Pois bem, este fato com as suas perspectivas econômicas é
que serve de fundamento para a armação da chamada trama tributária
concreta. Então o legislador descreveu o fato, já que se
trata do imposto de importação (se alguém quiser estudar,
deve ler o livro do Prof. Américo Lacombe). O legislador deve descrever
o fato, exige a Constituição. No caso, obedecendo ao art.
153, I, da Constituição, ele deve descrever o fato "importar".
Quer dizer, "fazer com que uma coisa, um produto, uma mercadoria passe
a linha aduaneira". A pessoa que fizer isto produziu o fato que a Constituição
consente que seja erigido em fato tributável. E quem erige é
o legislador, é a própria Constituição que
diz, É o legislador. Para que o sujeito pague ao vendedor, no exterior,
o produto importado, ele é obrigado a comprar moeda. Isto configura
operação de câmbio, negócio jurídico-financeiro,
entregar moeda nacional em troca de uma moeda estrangeira. A operação
de câmbio é regulada por lei administrativa. O fato "realizar
operação de câmbio" é um fato que está
qualificado pela lei tributária como capaz de fazer nascer obrigação
de pagar o tributo, imposto genericamente chamado de IOF. No caso, Imposto
sobre Operação de Câmbio. Há quem chame de IOC.
Ora, qual é a relação que há entre o fato de
ter que comprar moeda - que é um fato que faz nascer obrigação
tributária, porque está qualificado na lei, com base na Constituição
- com o fato de alguém importar? Qual é a relação
jurídica do próprio fato? Nenhuma. É lógico
que todos os nossos negócios são encadeados. É porque
sou proprietário de um imóvel que posso alugá-lo e,
alugando, recebo uma renda. Isto não autoriza nenhum legislador
a misturar o contrato de locação com o imposto predial urbano
sobre aquele meu imóvel, o IPTU. Se eu não for dono do imóvel,
é evidente que eu não posso locá-lo, mas esta conexão
dos fatos na minha pessoa não autoriza que o legislador faça
nenhum tipo de mistura legislativa, desobedecendo aos critérios
da Constituição. E a Constituição é
claríssima. Uma coisa é importar, como fato capaz de fazer
nascer obrigação tributária; outra coisa é
realizar operação de câmbio, para pagar a importação.
Então, o que fez este legislador que disse "são isentas as
operações de compra de moeda estrangeira, cuja licença
de importação se realize depois do dia tal"?. Mas como? A
licença de importação é um procedimento administrativo
que vai permitir o fato de importar. Fato este que pode fazer nascer um
outro imposto. Obter licença administrativa para importar é
um fenômeno administrativo, o condicional do acontecimento de um
outro fato, tributável por outro imposto. E vem esse legislador
e diz "quando for comprar moeda vai ficar dependendo deste acontecimento
e dessa data". É um arbítrio total. Por quê? Ensina
a teoria tributária - desdobrando a Constituição -
que o fato que o legislador põe na materialidade da hipótese
de incidência deve ter conteúdo econômico. No caso,
não precisamos nem discutir teoria, a Constituição
já deu os conteúdos econômicos (arts. 153, 155, 156).
Os conteúdos são aqueles que estão na Constituição:
importar, exportar, ser proprietário rural, receber renda, produzir
produtos industrializados, realizar operação financeira,
prestar serviço, ser proprietário imobiliário, praticar
operações mercantis... São estes os fatos tributáveis
no Brasil. Não precisamos nem fazer discussão teórica.
Estes fatos o legislador pode dizer "quando acontecidos e se
acontecidos, farão nascer obrigação tributária".
Só podem fazer nascer obrigação tributária
a cargo de quem promova esses fatos, realize esses fatos, produza esses
fatos, ou tire proveito desses fatos. Há alguns fatos que a gente
não promove. Por exemplo, transmissão causa mortis. Ainda
que alguém promova a morte de outra pessoa, não está
promovendo a transmissão. É o fenômeno natural morte
que promove, provoca a transmissão, a mudança de titularidade
de uma coisa. Então ficou claro o arbítrio do legislador.
Ele misturou elementos administrativos, elementos ou dados de outro imposto
para disciplinar o imposto sobre operação de câmbio
- quer dizer, o negócio de compra de moeda - e estabeleceu que umas
pessoas pagam e outras não pagam, quando preceituou a isenção,
arbitrariamente, sem levar em conta os elementos do próprio fato,
ou os elementos ligados à pessoa que produz o fato 'comprar moeda'
ou 'vender moeda'. Arbítrio total. Os Tribunais reconheceram isto.
Este Tribunal disse: "esse artigo da lei violou o princípio da igualdade;
está tratando desigualmente as pessoas, uns pagam, outros não
pagam sem nenhuma razão objetiva, sem fundamento, sem proteção,
sem amparo constitucional". Muitas decisões, aliás, dizem
só isso: "esse artigo do Decreto-lei nº 2.334 é inconstitucional".
Mas não basta dizer que é inconstitucional (Decreto-lei nº
2.434, art. 6º, tenho um trabalho publicado na Revista de Direito
Tributário, sobre isto). Não exerce a função
jurisdicional o Juiz que disser "este art. 6º é inconstitucional",
porque afirmar isto, só, é criar a seguinte situação:
todas as pessoas que estão inquestionavelmente isentas - foi brigar
quem obteve licença de importação antes do dia x
- os que obtiveram ou vieram a obter depois do dia x não
foram brigar, é lógico, nem tinham legitimidade, nem interesse,
eles estavam sendo dispensados do pagamento do tributo. Então, dizer
que é inconstitucional - realmente é, porque está
violando a Constituição - não resolve o pedido feito,
não ampara o direito subjetivo do cidadão que vai ao Juiz
e diz "Senhor Juiz, eu fui tratado desigualmente". Então, a jurisprudência
deste Tribunal estabeleceu que esta norma, realmente, se interpretada como
baseada exclusivamente no dia x, é arbitrária. Então,
eu ignoro a menção ao dia x, porque a menção
ao dia x faz com que uns paguem e outros não paguem. É
a data a partir da qual vai ser aplicável a isenção
que está criando a desigualdade. Esta data ignoro; ela é
arbitrária; o resto da lei não é arbitrário.
A lei da União pode estabelecer isenções de modo geral,
ninguém impugnou o mérito da isenção. Logo,
enquanto não seja impugnado eu aceito, só que sem data nenhuma.
A partir de vigente a lei, todas as pessoas que comprarem moeda para cobrir
importação, tenham ou não guia de importação,
estarão dispensadas de pagamento do tributo. A Fazenda invocou um
artigo do Código Tributário Nacional bem tacanho que diz
o seguinte, mas enfim é um artigo de lei: "não se admite
o emprego da analogia com o efeito de dispensar tributo devido". A União
invocou isto, e este Tribunal desprezou a invocação. Desprezou
a invocação, porque disse "aí não há
analogia; não se está dando tratamento analógico à
questão, Está-se, isto sim, estendendo a norma a todos os
fatos que se compreendem no seu conteúdo. Tirando a data que era
arbitrária e que criava desigualdade, tirando a data, a norma deve
ser aplicada a todos os fatos que estão na sua hipótese".
Quais são os fatos? "Realizar operação de câmbio",
a partir do momento em que a lei está em vigor. Então, a
partir do momento que a lei está em vigor, a operação
de câmbio é isenta. O Tribunal fez foi aplicação
extensiva da lei. Em outras palavras, com a maior naturalidade estendeu
a lei a todos os fatos que a lei cobria. Portanto, interpretou a lei. Mais
nada que isto. Em muitos votos e em muitos acórdãos está
explícita a acolhida a um exemplo maravilhoso para o qual eu quero
pedir a atenção dos Senhores, porque é de uma fecundidade
extraordinária. O exemplo é invocado pelo Prof. Ézio
Vannoni, um dos maiores professores de Direito Tributário da Itália,
ao lado do Prof. Giannini, talvez o maior estudioso de Direito Tributário
da Itália. Então Vannoni dá o seguinte exemplo - que
eu vou aplicar ao Brasil, ele dá em relação à
Itália - há uma inundação tremenda em São
Caetano, e o Congresso Nacional fica condoído de ter a notícia
e ver nas fotografias e na televisão o estrago, a destruição,
a devastação provocada. Então o Congresso Nacional,
no legítimo uso da sua competência, faz uma lei dizendo "os
contribuintes que moram em São Caetano ficam exonerados das suas
obrigações tributárias nascidas no ano de 1993". Portanto,
quem mora em São Caetano, e tem indústria, comércio,
ou mesmo renda pessoal a pagar, fica dispensado de imposto federal - porque
a lei é federal - nascido em 1993. O Congresso exerceu a sua função
igualadora, porque aquelas pessoas sofreram de tal maneira que ficaram
em desigualdade em relação a todos nós. Então
a lei diz "vou igualar a todos, vou dispensar, durante um ano, aquela gente
que está destruída economicamente". E ninguém questionaria
essa decisão. Posta a lei em vigor, comparece a juízo um
cidadão dizendo "eu moro no bairro do Ipiranga, Município
de São Paulo e quero que V. Exa. me aplique esta lei, porque eu
sofri a mesma inundação que o pessoal de São Caetano.
Não estou no Município de São Caetano, mas sofri a
mesma inundação, quer dizer, a razão jurídica
pela qual o Congresso deu aquela isenção para eles eu quero
que o Senhor aplique a mim. Em outras palavras, eu quero, Senhor Juiz,
que o Senhor me dê aquilo que a lei deu aos que estão em situação
igual a mim. Eu também sofri a inundação". Em termos
científicos, o que está postulando este cidadão? Ele
está dizendo "Senhor Juiz, não vá, por favor, à
letra da lei. A letra da lei é um veículo para o Senhor apreender
o conteúdo da lei, mas, por favor, não fique na letra da
lei. Por favor, aplique os princípios constitucionais, na sua inteireza.
Por favor, dê eficácia aos maiores princípios constitucionais,
primeiramente ao da igualdade. Se eu estou na mesma situação
dos outros, quero que V. Exa. me aplique, não por analogia; não
é isto que eu quero. Eu quero que o Senhor entenda que, quando a
lei federal falou São Caetano, foi o jeito que o legislador no momento
teve de designar as pessoas que foram atingidas pela enchente; não
foi privilegiar cidadão que mora numa circunscrição.
Não foi essa a idéia do legislador, nem poderia ser, porque
já seria uma idéia discriminatória, violadora da Constituição.
Não, a idéia do legislador foi 'vamos igualar e socorrer
aquela gente que sofreu a inundação'. Mas, para não
dizer vagamente, diz 'a inundação que houve em São
Caetano'. É mera linguagem que o legislador está usando.
Então, Senhor Juiz, eu lhe peço, não fique no caminho,
no 'meio' que revela a lei. Não, eu quero que o Senhor me dê
a lei. Enfim, quero o 'conteúdo' da norma para mim e eu invoco,
em meu benefício, as exigências maiores do princípio
constitucional da igualdade".
APLICAÇÃO
INTEGRATIVA
Foi isto que o Tribunal
fez, usou a lição de Vannoni e aplicou a este caso. Não
usou, portanto, analogia, mas fez a interpretação integrativa
do preceito jurídico. Quer dizer, integrou na norma todos os fatos
que estavam compreendidos na norma, que teve a infelicidade de usar na
sua linguagem essa categorização territorial "São
Caetano", o que, então, é desprezada pelo Juiz. O problema
não é 'estar em São Caetano', o problema é
'ter sofrido aquela enchente' que houve em 1993, naquela região
do Brasil. E quem preenche esses requisitos deverá ser beneficiado,
ou ver a lei estendida a si.
ANALOGIA
Foi isto que o Tribunal
fez no caso do Imposto sobre Operação de Câmbio. E
Vannoni, inclusive, escreve a esse respeito, no livro "Interpretação
do Direito Tributário" - cuja parte principal foi traduzida para
o português pelo Prof. Rubens Gomes de Sousa, obra em italiano, em
dois volumes, belíssimo livro. Ele diz, tratando do Direito italiano:
"Há no Direito italiano uma lei que diz ser proibido aplicar analogia,
quando se trata de dispensar obrigação de Direito Público".
Diz ele: "Esta lei é tacanha, esta lei ainda é napoleônica.
Mas" - diz ele - "eu não preciso brigar com esta lei. Pode mantê-la
em vigor". Vamos distinguir analogia, ou interpretação analógica,
de 'interpretação integrativa'. Haverá interpretação
analógica quando, a um fato não previsto, pelas mesmas razões,
se aplica a lei que contemplava um fato previsto. Não é isto
que se está postulando. Está-se postulando que a um fato
previsto, mas mal enunciado pelo legislador, se aplique a lei. Portanto,
esta é a tarefa desafiadora da interpretação, especialmente
quando está em jogo um princípio tão importante quanto
o da igualdade. Há muito decreto-lei e legislação
esparsa federal dizendo: haverá imposto de renda nas hipóteses
tais e tais, haverá imposto de renda exclusivamente na fonte, nos
casos tais. Qual é a interpretação que o fisco dá
a esta incidência de imposto de renda 'exclusivamente na fonte'?
Assim se interpreta administrativamente: aquele imposto é retido
na fonte, o contribuinte sofre a carga tributária, porque deixa
de receber aquela parte do seu rendimento, e aquilo é esquecido,
desaparece, não vem como um crédito do contribuinte, como
quantia que, no fim do ano - quando vai fazer a sua declaração
- o contribuinte compensa com os seus débitos de imposto de renda.
O legislador reconhece que está exigindo Imposto de Renda, antecipadamente
- porque é na fonte - e ainda diz que o contribuinte não
aproveita aquilo? Então isto não é bem imposto de
renda; isto aqui é um imposto semi-confiscatório, que invade
o patrimônio do cidadão, porque Imposto de Renda deve comportar
uma avaliação complexa de todas as entradas dentro de um
determinado período, para que o sujeito compense o que entrou com
o que saiu. Isto é que é renda: saldo positivo, depois de
uma composição, dentro de um período, de diversos
eventos. Tomar um evento isolado, tirar dele o que pareça ao legislador
ser renda e dizer "o contribuinte esquece, não vai aparecer mais
em lugar algum, em benefício do contribuinte" é dizer "não
estou tributando a renda, estou dando o nome de imposto de renda, mas isto
aqui não é imposto de renda". É imposto sobre o quê?
Depois nós vamos ter um seminário a esse respeito. O princípio
da igualdade não consente que o intérprete judicial aceite
imposto de renda com incidência 'exclusiva' na fonte. "Pois não.
Quer incidir na fonte? Muito bem, mas o contribuinte tem direito de levar
isto ao cômputo final, que vai fazer, no fim do período, de
tudo que ele pagou, de tudo que entrou, de tudo que saiu e daquilo que
ele já antecipou". Porque, se não, em alguns casos estabelece
incidência exclusiva na fonte e em outros não. Se diz "incidência
na fonte", então já se sabe: vou ficar com este crédito,
para levar ao meu cálculo anual. Ora, se em alguns casos há
incidência exclusiva na fonte, eu não posso levar para o cálculo
anual, estou sendo tratado em desigualdade de condições com
os demais contribuintes. Não é preciso declarar inconstitucional
a lei que estabelece a incidência exclusiva na fonte. Inconstitucional
é só a palavra 'exclusiva'(este adjetivo). Então o
Juiz diz "já que é inconstitucional, não leio o adjetivo.
Então é incidência na fonte. Pois incidiu bem, mas
o contribuinte fica com o direito de levar isto ao cômputo final".
Do modo como a legislação final está deformando a
contabilidade no Brasil, volta e meia ela já não diz mais
qual é a realidade de uma empresa. Empresas que parecem sadias,
ricas, e que estão muito bem, não têm dinheiro, não
fazem investimento, estão para estourar. E outras, que parecem que
vão muito mal, na verdade vão bem. A contabilidade das empresas
- por causa de todas as manobras e manipulações que os sucessivos
governos vêm fazendo, sempre na tentativa de produzir milagres econômicos
- já não dá segurança, para quem examina essa
contabilidade, sobre a situação real das empresas. A inflação
trouxe a possibilidade de que o legislador um dia inventasse um imposto
sobre 'lucro inflacionário', deixando o Judiciário na seguinte
situação: o Judiciário cansou-se de dizer que a inflação
é mera atualização de valores, é uma mera expressão
- com novos números - dos mesmos valores. Os valores não
mudaram, a correção é puramente monetária,
é puramente formal, puramente de expressão numérica.
Pois não é que o legislador brasileiro já descobriu
um jeito de tributar a diferença de expressão numérica?
Tributação sobre o 'lucro inflacionário'. Há
casos em que, debaixo da rubrica contábil "lucro inflacionário",
há lucro. Então pode haver tributação. Há
casos em que há prejuízos. Identificar estes casos será
muito importante, mas, sobretudo não havendo 'conteúdo econômico',
não pode haver tributação. Imposto de renda sobre
correção monetária? Se se tratar simples, efetiva
e verdadeiramente de pura correção monetária, não
pode haver imposto sobre uma nova representação numérica
da mesma realidade econômica, de um fato econômico que
tenha a mesma dimensão. E assim haveria milhares de exemplos. Acho
que o mais engraçado é o da Lei nº 8.200. Quando o Collor
tomou posse, a inflação estava em oitenta e não sei
quantos por cento. No dia 15 de março tomou posse, dia 16 saíram
as tais medidas de congelamento etc., e depois uma série de outras
normas jurídicas - algumas até desgraçadamente aprovadas
pelo Congresso Nacional - que se transformaram em leis, deformando a realidade
que existia: a inflação. Mas, de modo geral, a manipulação
deste conjunto de regras permitiu que o Tesouro Nacional ficasse numa situação
mais confortável, e que uma porção de cidadãos
que sofriam tanto quanto o Tesouro ficassem numa situação
extremamente desconfortável. Então pessoas que tinham créditos
baseados em dívidas de dinheiro viram, de repente, desaparecer a
correção monetária do dia 1º ao dia 15, que foi
o dia do congelamento. Ainda discutem os economistas de quantos por cento
foi a brutal inflação nos últimos quinze dias do Sarney.
Então, o Governo fingiu que ela não existia. Acontece que
isso teve conseqüências nos negócios privados, nas obrigações
privadas, em mil contratos de direito privado e teve conseqüências
fiscais. Combinando todas estas leis, para o fisco, essa inflação
não houve. Ignorou-se essa inflação. A conseqüência
para o contribuinte foi um tremendo agravamento de carga tributária
- em alguns casos - ou o desaparecimento, na contabilidade das empresas,
por força da aplicação dessas normas, de uma série
de direitos de compensação que decorriam dessa inflação,
que houve naqueles quinze primeiros dias do mês de março de
1990. É evidente que, se o princípio da igualdade e os demais
princípios constitucionais - especialmente o da segurança
jurídica - nos garantem a todos e, portanto, também aos empresários
e às empresas o direito de que as suas demonstrações
financeiras espelhem a realidade econômica verdadeira, nenhuma lei
podia deformar aquela realidade econômica, seja para efeito das relações
entre os particulares, seja para efeito das relações entre
contribuinte e fisco. E algumas empresas - umas mais depressa, outras mais
devagar - foram procurando acertar essa situação, corrigir
as deformações que disso decorreram, consertar os prejuízos
que tiveram, enfim, buscaram restabelecer a fidelidade das suas demonstrações
financeiras. Até que sobreveio a Lei nº 8.200, lei essa que
veio no art. 1º dizer "o legislador reconhece que houve essa barbaridade
e, portanto, reconhece o direito dos contribuintes, reconhece que se fingiu
que não existiu uma inflação de quase 100% e que isso
teve graves conseqüências no plano das relações
fisco e contribuinte". E um artigo lá para adiante diz assim: "os
contribuintes poderão recompor a sua contabilidade e aproveitar
os efeitos dessa recomposição em 1993 e 1994". O art. 1º
é corretíssimo, é uma confissão solene, oficial,
do Estado, de que ele, há um tempo atrás, cometeu uma calamidade,
uma agressão aos direitos e à Constituição.
Este art. 3º já é safadinho. Qual era a conseqüência
de dizer "eu confesso que errei"? Seria dizer "bom, o Senhor recomponha
a sua contabilidade imediatamente". Mas, não, o artigo diz "os contribuintes
poderão aproveitar lá adiante este refazimento da sua contabilidade".
Então, é evidente, o contribuinte não precisa desse
art. 3º, nem precisava da lei; o direito emergia da própria
Constituição. Mas que bom que haja lei; facilita a vida!
O legislador está reconhecendo que fingiu que não existiu
uma inflação que existiu. O art. 3º é inconstitucional,
porque diz que vou aproveitar no futuro. Por quê? Se a lesão
ao meu direito é de 1990, eu vou até 1990, refaço
a minha contabilidade e considero os efeitos dessa correção
monetária que me beneficiam. Mas, agora, uma medida provisória,
já aprovada pelo Congresso, diz o seguinte: "está revogada
a Lei 8.200", com o desígnio de dizer "está revogado o reconhecimento
de que houve uma malandragem". Pode-se falar em malandragem, porque é
ato do Poder Executivo (depois aprovado pelo Congresso). Medidas provisórias
- são lições da Profª Misabel Derzi e da Profª.
Diva Malerbi - não podem tratar de matéria tributária,
como não podem tratar de matéria penal. Dois setores onde
o princípio da legalidade é absolutamente irredutível
e radical. Vamos tirar as conseqüências das exigências
da igualdade, tais como deduzidas pelo próprio legislador constituinte.
CLASSIFICAÇÃO
DOS TRIBUTOS
No art. 145 da Constituição
se fez uma classificação dos tributos. É um modo de
atender as exigências da igualdade. Adam Smith, 1780, Malthus, Ricardo,
os clássicos da Economia, já começam a dizer: é
preciso que o Estado saiba repartir equanimemente os custos da manutenção
da sociedade. Isto que no Direito americano se chama equity para nós
é muito mais, porque é igualdade efetiva de tratamento de
todos, a igualdade de tratamento que o Estado nos deve dispensar em matéria
de distribuir legislativamente os encargos que cada um de nós deve
ter para a manutenção do próprio Estado. A classificação
dos tributos é uma exigência da isonomia, da eqüidade.
Daí que o item I do art. 145 trate dos impostos separado do II,
que trata das taxas, separado do III, que trata da contribuição
de melhoria de modo geral, no texto atual, estendendo a todas as contribuições,
genericamente previstas no art. 149 da Constituição. É
o princípio da igualdade que postula a classificação
dos tributos. O art. 145, I, faz remissão implícita aos arts.
153, 155 e 156. A Constituição, no art. 145, não diz
quais são os impostos, diz "haverá impostos, que são
diferentes das taxas, que são diferentes das contribuições".
O texto do art. 145, II, diz qual é a materialidade da hipótese
de incidência das taxas. É o Estado (a) exercitar efetiva
e concretamente, o poder de polícia, ou é o Estado (b) prestar
serviço público. Um dos dois. Quer dizer, o enunciado da
hipótese de incidência está dado no próprio
item II do art. 150. No caso da contribuição de melhoria
está dito "valorização imobiliária causada
por obra pública". É mencionada a atividade do Estado - obra
pública - e a sua conseqüência - valorizar imóveis.
Implicitamente está dito "será contribuinte quem tiver o
imóvel valorizado". No art. 149, a Constituição implicitamente
diz quais são os fatos que o legislador pode adotar como hipótese
de incidência das diversas contribuições. Nos impostos
(item I) está implicitamente remetendo aos arts. 153, 155, 156,
onde então o leitor verá: importar, exportar, ser proprietário
de imóvel rural, ter renda, produzir produto industrializado, realizar
operações financeiras, etc. No art. 155: realizar operação
mercantil, transmitir imóvel, etc. No art. 156: ter imóvel
na área urbana, prestar serviços, etc. A materialidade da
hipótese de incidência é dada em todas as hipóteses.
Em todos estes casos, o fato posto pelo constituinte, como necessário
à lei que cria estes impostos, é sempre um fato produzido
por um particular (ou relacionado com um particular), fato que nada tem
a ver com o Estado. É 'alguém' importar, 'alguém'
exportar, 'alguém' produzir produto industrializado, ou 'alguém'
ser proprietário urbano ou rural, 'alguém' prestar serviço,
'alguém' ter renda, etc. São fatos da vida econômica,
relacionados com a atividade normal, ordinária de todas as pessoas.
Qual é a constante que vamos encontrar nesses (art. 145, II e III)
dois outros casos? Os fatos que a Constituição põe
como devendo ser adotados pelo legislador ordinário são (fatos)
produzidos pelo Estado. São atos estatais. O Estado (a) exercitar
a atividade de polícia, o Estado (b) prestar serviço público,
o Estado (c) realizar obra pública que valorize imóvel; no
caso das implícitas, o Estado fiscalizar profissões por meio
da autarquia - Conselho de Medicina, Conselho de Engenharia - o Estado
intervir na ordem econômica. A classificação dos tributos
é uma exigência da igualdade. O próprio art. 145, no
parágrafo 1º, diz claramente: os impostos serão informados
pelo princípio da capacidade econômica. É o modo pelo
qual o legislador ordinário tratará igualmente as pessoas:
buscar fatos que revelem capacidade econômica (fatos já indicados
na Constituição). São riquíssimos os estudos
que os italianos fazem dos arts. 23 e 53 da Constituição
italiana. Mas aquela comparação que fizemos no primeiro dia
entre o Direito italiano e o Direito brasileiro, entre outras vantagens,
traz a seguinte: vamos achar interessante, útil e enriquecedor ler
os italianos, mas não precisamos lê-los, para interpretar
a Constituição brasileira. Por quê? Porque o mesmo
legislador constituinte, no Brasil, que disse "os impostos serão
informados pelo princípio da capacidade contributiva", esse mesmo
legislador constituinte já disse quais são esses fatos: importar,
exportar, receber renda, ter imóveis, produzir produto industrializado,
etc. O próprio legislador constituinte já disse quais são
os fatos. É lógico que o princípio do parágrafo
1º continua importante: é a aplicação da igualdade
no campo dos impostos. Mas ele é importante como critério
de interpretação. Por quê? Porque, se o legislador
ordinário for correto, for fiel aos arts. 153, 155, 156 - legislador
ordinário federal, estadual e municipal, se ele for fiel - fica
inquestionável a lei, mas a interpretação da lei pode
ser questionada, e daí a diretriz que emerge do parágrafo
1º do art. 145: capacidade contributiva é o critério
de interpretação das leis de impostos. O art. 154 - impostos
da competência residual - é teoricamente dificílimo
de acontecer. A Constituição quase não deixou espaço
para a aplicação do art. 154 (agora não cabe falar
nele). Capacidade contributiva é a aplicação do princípio
da igualdade no plano dos impostos. E nas taxas? Como se aplica o princípio
da igualdade? Não é pela capacidade contributiva. Não
é pelo parágrafo 1º do art. 145. É pelo critério
da equivalência, da comutatividade. Quanto custa para o Estado expedir
uma carta? Custa tanto. Então, o sujeito vai pagar tanto. É
como a igualdade vai funcionar. Quem expedir uma carta, paga uma; quem
expedir dez, paga dez; quem expedir mil, paga mil. E se não expedir?
Não paga nada.
CONTRIBUIÇÕES
Diferentemente disso,
a contribuição se informa pelo princípio da correspondência
entre o benefício e a carga tributária, ou correspondência
entre a despesa
que ele está causando ao Estado e a carga
da contribuição, mas este princípio não funciona
só. A Profª Diva Malerbi, num belíssimo trabalho, mostra
que, por causa do art. 3º da Constituição e por causa
do art. 170, as contribuições, especialmente as sociais,
sofrem o influxo do princípio da solidariedade que, então,
atenua as exigências do princípio da proporcionalidade, informador
das contribuições. Em síntese, a Constituição
põe igualdade como princípio capital; a igualdade tem eficácia,
a igualdade não é uma afirmação retórica.
Se o legislador não obedecer à igualdade, o Judiciário
é obrigado a fazer com que ela tenha eficácia no caso concreto
e, ao fazê-lo, o Judiciário estará aplicando os demais
preceitos constitucionais. Deles, o art. 145 é a expressão
mais ampla de coerência do constituinte em trazer clara e especificamente
às espécies tributárias as exigências da igualdade.
Se este conjunto de regras for obedecido pelo legislador, a igualdade está
sendo obedecida. Se, já obedecidas formalmente estas exigências,
surgirem casos de desigualação no plano da aplicação
administrativa, o Judiciário corrige com a interpretação
integrativa ou com a declaração de inconstitucionalidade
da norma que infringiu a igualdade, conforme o caso.
Retirado de: http://www.acta-diurna.com.br/biblioteca/doutrina/tributario/doutri2g.htm
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