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O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR E AS RELAÇÕES DECORRENTES DE OPERAÇÕES COM INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS


 
 

(Publicada na RJ nº 229 - NOV/96, pág. 16)

Jane Courtes Lutzky - O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR E AS RELAÇÕES DECORRENTES DE OPERAÇÕES COM INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS

Advogada

Professora de Direito Administrativo -

Universidade de Cruz Alta - RS

Especialista em Direito Processual Civil

Doutoranda em Direito - Convênio FURG

(Fundação Universidade do Rio Grande)

e UBA (Universidade de Buenos Aires)

I. INTRODUÇÃO

Com a entrada em vigor da L. 8.078, de 1990, CDC, cuja finalidade primordial é a disciplina jurídica da vida quotidiana dos membros da sociedade, ocorreu uma profunda alteração no Direito positivo do País.

Os consumidores sempre existiram, mas até o advento do CDC não tinham uma proteção específica e, em muitos casos, as regras até então existentes eram pouco eficientes. Atualmente, já existem, no Brasil, cerca de 750 serviços de Defesa do Consumidor que, segundo previsões do Governo, deverão evoluir para mais de 2.500 pontos de atendimento ao consumidor.

O Direito do Consumidor visa, não só, a proteger diretamente o consumidor, mas também a racionalizar e a dirigir o seu comportamento e, para tanto, é multidisciplinar, pois, além de seus conceitos, princípios e instrumentos próprios, busca forças em conceitos, princípios e institutos de outros ramos do Direito.

Na Argentina, GABRIEL A. STIGLITZ entende que será árdua a tarefa de implementar a legislação de proteção ao consumidor, uma vez que esta enfrentará reação contrária do esquema econômico e social predominante.

É importante lembrar, também, que, assim como no Brasil, na Argentina não existia uma tradição de proteção eficiente ao consumidor e que não basta existir a legislação, é preciso a conscientização de consumidores e fornecedores de seus direitos e deveres. Só a partir desta tomada de consciência é que se chegará à proteção desejada.

II. REPERCUSSÃO DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR NAS RELAÇÕES DECORRENTES DE OPERAÇÕES COM INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS

Saber se as relações existentes entre as instituições financeiras e seus clientes estão sujeitas às regras impostas pelo CDC é o principal aspecto a ser examinado, mas, como de resto ocorre na maioria das situações analisadas pelo Direito, as conclusões não são pacíficas, levando a doutrina e a jurisprudência a trilharem pelo menos dois caminhos diferentes.

Em primeiro lugar, faremos rápido relato do enfoque que é dado pela corrente que entende estarem também as relações acima nominadas sujeitas às regras da L. 8.078/90, pois se assim não fosse estaríamos reduzindo o campo de aplicação do texto legal.

Segundo a óptica do Juiz de Direito do TARS Dr. MÁRCIO DE OLIVEIRA PUGGINA, além de não ter sido feita exclusão expressa do relacionamento entre os bancos e seus clientes no CDC, é possível ainda, ao examinar inúmeros de seus dispositivos, concluir que a intenção do legislador era tutelar também este tipo de relação.

A título de exemplificação cita o § 1º do art. 3º do CDC: Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial, logo, seria produto, e por conseqüência protegido pela Lei, qualquer bem jurídico capaz de satisfazer as necessidades humanas, incluindo-se, assim, o crédito.

Continua PUGGINA em seu artigo publicado na Revista da AJURIS (fls. 200 a 206):

"... Se produto é todo o bem jurídico, não há como se negar que o crédito é um bem jurídico que é fornecido pelo Banco (fornecedor) ao tomador do crédito (consumidor), como destinatário final (do crédito, enquanto crédito). O mutuário só não seria destinatário final do crédito - enquanto crédito - se, em vez de `consumi-lo', ele o repassasse a terceiros."

NELSON NERY JÚNIOR, na consagrada obra "Código de Defesa do Consumidor", da Ed. Forense Universitária, onde escreve em conjunto com os demais autores do projeto que levou ao referido Código, nas págs. 313, 314 e 318 leciona:

"O aspecto central da problemática da consideração das atividades bancárias como sendo relações jurídicas de consumo reside na finalidade dos contratos realizados com os bancos. Havendo a outorga do dinheiro ou do crédito para que o devedor o utilize como destinatário final, há a relação de consumo que enseja a aplicação dos dispositivos do CDC. Caso o devedor tome o dinheiro ou crédito emprestado do banco para repassá-lo, não será destinatário final e portanto não há que se falar em relação de consumo. Como as regras normais de experiência nos dão conta de que a pessoa física que empresta dinheiro ou toma crédito de banco o faz para sua utilização pessoal, como destinatário final, existe aqui uma presunção hominis, juris tantum de que se trata de relação de consumo, quer dizer, de que o dinheiro será destinado ao consumo. O ônus de provar o contrário, ou seja, que o dinheiro ou o crédito tomado pela pessoa física não foi destinado ao uso final do devedor, é do banco, quer porque se trata de presunção a favor do mutuário ou creditado, quer porque poderá incidir no art. 6º, VIII, do CDC, com a inversão do ônus da prova a favor do consumidor.

Já para os devedores pessoa jurídica, a presunção é de que emprestam ou tomam crédito do banco para ser utilizado em sua atividade de produção, isto é, para aplicar em sua linha de produção, montagem, transformação de matéria-prima, aumento de capital de giro, pagamento de fornecedores, etc. O ônus da prova de demonstrar que emprestou como destinatário final é da pessoa jurídica que celebrou o contrato de mútuo ou crédito com o banco.

....................

O art. 52 do CDC, a seu turno, confirma as disposições do art. 3º, § 2º, quando estipula regra sobre os créditos e financiamentos ao consumidor, não deixando dúvidas sobre a inclusão dessas atividades em sua sistemática."

Por outro lado, existe corrente que defende não estarem as relações existentes entre os bancos e seus clientes sujeitas às normas do CDC e, para defender este posicionamento, alega que a lei de proteção ao consumidor só abrange às relações de consumo, nelas não se enquadrando a poupança e as operações que constituem o ciclo de produção.

Entre os produtos referidos no art. 2º da L. 8.078/90 não estão incluídos nem o dinheiro, nem o crédito, pois a entrega de dinheiro sob forma de mútuo, desconto, etc., não constitui aquisição de produto pelo destinatário final, porque é notório que os valores monetários, por sua própria natureza, destinam-se à circulação.

Este posicionamento é ratificado pela lição do Prof. ARNOLDO WALD, Lei de Defesa do Consumidor, Cadernos IBCB, 22, págs. 61/62, item IV - Conclusões:

"b) a nova lei também não se aplica às operações de empréstimos e outras análogas realizadas pelos Bancos, pois o dinheiro e o crédito não constituem produtos adquiridos ou usados pelo destinatário final, sendo, ao contrário, instrumentos ou meios de pagamentos, que circulam na sociedade e em relação aos quais não há destinatário final (a não ser os colecionadores de moeda e o Banco Central, quando retira a moeda de circulação)."

Por este enfoque, uma vez que para regulamentar o sistema financeiro há o CMN e o Banco Central do Brasil, as normas de defesa do consumidor é que deveriam se submeter ao disposto pelas autoridades monetárias para que não acontecessem conflitos de competência que instabilizariam o sistema jurídico vigente.

As instituições financeiras, em suas operações, ativas ou passivas, não podem ser consideradas como produtoras ou fornecedoras de serviços. À luz do CDC, só se caracterizariam como fornecedoras quando efetivamente prestassem serviços (art. 3º, § 2º, da L. 8.078/90).

III. OUTROS ASPECTOS RELEVANTES: O CONTRATO DE ADESÃO E

AS CLÁUSULAS ABUSIVAS

O CDC regula, pela primeira vez no direito brasileiro, o Contrato de Adesão:

"Art. 54. Contrato de adesão é aquele cujas cláusulas tenham sido aprovadas pela autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor de produtos ou serviços, sem que o consumidor possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo.

§ 1º. A inserção de cláusula no formulário não desfigura a natureza de adesão do contrato.

§ 2º. Nos contratos de adesão admite-se cláusula resolutória, desde que alternativa, cabendo a escolha ao consumidor, ressalvando-se o disposto no § 2º do artigo anterior.

§ 3º. Os contratos de adesão escritos serão redigidos em termos claros e com caracteres ostensivos e legíveis, de modo a facilitar sua compreensão pelo consumidor.

§ 4º. As cláusulas que implicarem limitação de direito do consumidor deverão ser redigidas com destaque, permitindo imediata e fácil compreensão."

Novamente, nos valemos do ensinamento de NELSON NERY JÚNIOR:

"O contrato de adesão não é categoria contratual autônoma nem tipo contratual, mas somente técnica de formação do contrato, que pode ser aplicada a qualquer categoria de contrato, sempre que seja buscada a rapidez na conclusão do contrato, exigência das economias de escala.

....................

Os contratos de adesão são a concretização das cláusulas contratuais gerais, que enquanto não aceitas pelo aderente são abstratas e estáticas, e, portanto, não se configuram ainda como contrato. As cláusulas gerais de contratação tornar-se-ão contrato de adesão, dinâmicas, portanto, se e quando forem aceitas pelo aderente" ("Código de Defesa do Consumidor", Ed. Forense Universitária, 4ª ed., 1995, págs. 300 e 302).

Nos dias atuais, a existência do contrato de adesão é fundamental para agilização de negócios, mas deverá se ter um cuidado especial para que a sua utilização não venha a ser sinônimo de desrespeito aos direitos do consumidor.

O art. 51 do CDC elenca em dezesseis incisos cláusulas abusivas, no entanto este rol é meramente exemplificativo, isto significa dizer que poderão existir outras cláusulas que, examinadas pelo Poder Judiciário, venham a ser consideradas abusivas.

Convém lembrar que o controle das cláusulas contratuais será feito pelo Poder Judiciário e, neste aspecto, é relevante o que ensina ALBERTO DO AMARAL JÚNIOR, na obra "Comentários ao Código de Proteção ao Consumidor", Ed. Saraiva, 1991, pág. 193:

"Nos termos do CDC, o controle judicial das cláusulas contratuais abusivas tanto pode ocorrer nos limites da relação concreta deduzida em juízo, referindo-se às cláusulas particulares deste ou daquele contrato, quanto verificar-se em abstrato, ocasião em que incide sobre a totalidade das cláusulas contratuais predispostas pelo fornecedor. No primeiro caso, o controle será efetuado mediante provocação do interessado, restringindo-se aos limites da relação concreta deduzida em juízo. Já no segundo caso, o controle será exercido mediante a provocação de qualquer interessado, das associações de consumidores e do MP (art. 51, § 4º, c.c. o art. 83).

IV. CONCLUSÃO

Não há como se negar autonomia ao Direito do Consumidor, que já é uma realidade em todos os Estados, quer possuam ou não legislação própria e específica sobre o tema.

O Estado e a comunidade têm se estruturado para garantir a proteção ao consumidor, que, por sua vez, está se tornando mais consciente de seus direitos e se fazendo mais atuante na defesa dos seus interesses.

Com relação à cobrança de uma dívida, cumpre lembrar que é uma coisa comum e legítima, o que não se pode aceitar é a existência de abusos, onde se busque cobrar o que não é efetivamente devido.

É fundamental, também, que não se descaracterize o CDC, transformando-o em mecanismo de consecução de vantagens indevidas e, por isto mesmo, ilegais e imorais, levando este, que deve ser um instrumento para a melhoria da qualidade de vida da população, a se tornar um meio para o enriquecimento ilícito de indivíduos inescrupulosos.

BIBLIOGRAFIA

BASTOS, Celso Ribeiro. "Comentários à Constituição do Brasil". SP, Ed. Saraiva, 1990.

BENJAMIN, Antônio Herman V. "O Direito do Consumidor". RS, Revista do Ministério Público do Rio Grande do Sul, nº 26, 1992.

BULGARELLI, Waldírio. "Contratos Mercantis". SP, Atlas, 1979.

GRINOVER, Ada Pellegrini e outros. "Código Brasileiro de Defesa do Consumidor". RJ, Ed. Forense Universitária, 1995.

MORAES, Voltaire de Lima. "Da Tutela do Consumidor". RS, Revista da Ajuris, v. 16, nº 47, págs. 25/27, nov. 1989.

NASCIMENTO, Tupinambá Miguel Castro do. "Comentários ao Código do Consumidor". RJ, Aide, 1991.

NERY JÚNIOR, Nelson e outros. "Código Brasileiro de Defesa do Consumidor". RJ, Ed. Forense Universitária, 1995.

OLIVEIRA, Juarez de (coordenador). "Comentários ao Código de Proteção ao Consumidor". SP, Ed. Saraiva, 1991.

PUGGINA, Márcio de Oliveira. "Âmbito de Incidência do Código de Defesa do Consumidor". RS, Revista da Ajuris, págs. 200 a 206.

SILVA, Oscar José Plácido e. "Vocabulário Jurídico", RJ, Ed. Forense, v. 1 e 2, 1986.

WALD, Arnoldo. "Lei de Defesa do Consumidor". Cadernos IBCB, nº 22.

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