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Lavagem de dinheiro ao olhar de Jobim

Erros da lei são propositais, diz Jobim ao participar de seminário, o ministro do STF revelou a existência de manobras na elaboração de leis para tornar possível a aprovação de textos pela maioria parlamentar

VÂNIA NOVELLI


        “Erros técnicos brasileiros são propositais para conseguir a aprovação de leis”, disse o ministro do Supremo Tribunal Federal e ex-ministro da Justiça Nelson Jobim, em seminário sobre lavagem de dinheiro, promovido recentemente em São Paulo por Mission – Desenvolvimento Profissional. O ministro citou a Lei 9.613/98, que trata da lavagem de dinheiro. Segundo ele, alguns pontos polêmicos e imprecisos contidos na lei permaneceram no texto visando à aprovação. O próprio nome da lei gerou críticas, “pois muitos achavam que lavagem não é nome de ilícito”.
Caso no Brasil se adotasse a tradução da lei francesa, “branqueamento de dinheiro”, poderiam ser geradas questões raciais, afirmou o ministro. E se o nome da lei ficasse como ocultação e dissimulação, como chegou a ser sugerido, haveria uma dúvida: “Se o ilícito não envolvesse ocultação, o autor estaria cometendo o crime de lavagem de dinheiro?” Ele enfatizou: “Os advogados de defesa são ricos na apresentação de argumentos contrários.” Por isso, ficou definida no texto a mesma pena para quem ocultar e dissimular, ou não, a lavagem de dinheiro.
Dispositivos dúbios, porém, não estão apenas na Lei 9.613/98. Na elaboração da Constituição Federal de 88, foi feito propositalmente o mesmo, segundo o ministro. Quando os constituintes se reuniam com Ulysses Guimarães, revelou, “eu escrevia e apresentava a ele o texto tecnicamente perfeito”. E “ como se via que teria pouco voto, começava-se a esvaziar e introduzir ambigüidades para obter a aprovação da maioria”. Quanto às eventuais correções e interpretações necessárias na legislação, “jogava-se para lei complementar futura”, acrescentou.
Um exemplo da questão foi o acordo sobre o direito trabalhista de repouso semanal remunerado. “A esquerda queria que fosse obrigatório aos domingos e a direita, definição sob acordo coletivo de trabalho”(art. 7º), contou Jobim. O texto que todos aprovaram foi “repouso semanal remunerado preferencialmente aos domingos”. Para a esquerda, “domingo era a palavra chave”, disse o ministro. Mas, se o dia fosse obrigatório, “seria repudiado pela direita”. Segundo Jobim, até erros de português às vezes são propositais para as leis serem aprovadas; “advérbios de modo e adjetivos são acordo político para viabilizar a lei”. Trata-se do “preço da democracia”. Ele contou que o local da colocação de vírgula já foi capaz até de atrair votos.

        Lavagem de dinheiro — Se o combate ao crime encontra dificuldades já na feitura das leis, a aplicação da legislação não gera menos polêmica. Pelo menos no que se refere à lavagem de dinheiro, um ilícito dependente de outro ilícito básico. Quase sempre é resultado do crime organizado, que movimenta grandes volumes de dinheiro pelo mundo, com atividades como o narcotráfico, tráfico de armas, terrorismo, contrabando, extorsão mediante seqüestro e crimes contra a administração pública.
Jobim disse que a sofisticação da lavagem de dinheiro avança cada vez mais. O modelo tradicional adotado pela máfia americana, de transformar o lucro conseguido através de atividades criminosas em lavanderias e restaurante, vem sendo abandonado. Hoje o dinheiro pode ser “legalizado” por meio de operações financeiras e investimentos na construção civil e empréstimos envolvendo grandes e respeitáveis bancos mundiais. Até a arbitragem é utilizada pelas organizações criminosas no processo.
Um tipo de transação mafiosa para lavagem de dinheiro relatado pelo ministro, comum na década de 80: era depositada elevada quantia em dinheiro numa conta bloqueada na Colômbia, por exemplo. Aí, alguém da organização — detentor de empresa de construção civil — pedia dinheiro emprestado para um banco de Londres e dava como garantia aquela conta colombiana. Ou ele pagava ou o banco executava a conta e ficava com o dinheiro.
“Grandes lavagens envolvem no mínimo dois países; criam-se mecanismos específicos e fica difícil o combate”, disse Jobim. Chega-se a gastar 40 dólares para limpar 60. Tentando evitar a prática, o Brasil assinou em 88 a Convenção de Viena para coibir este tipo de atividade — introduzir grande quantidade de dinheiro de origem ilícita que concorre com o dinheiro lícito.

        Penalidades — Segundo o ministro, é equivocada a crença brasileira de que “quanto maior a pena melhor”. Na verdade, “com pena alta acham-se mais maneiras para evitar o seu cumprimento”. E isso acaba gerando “um enfraquecimento do ilícito principal”. Ficou estabelecido, na Lei 9.613/98, a pena máxima de dez anos de reclusão e mínima de três, para evitar sursis.
“Vamos ter imensa dificuldade com o parágrafo 5º do artigo 1º da lei, que trata da barganha”, disse Jobim. O dispositivo consiste em não aplicar, ou substituir, a pena para quem colaborar na elucidação do crime. “Aqui tem postura política criminal clara; acabar com o crime antecedente é mais importante que coibir a lavagem”, esclareceu o ministro.
Ao criticar o que considerou o resultado da formação judaico-cristã, a aplicação da sanção para o crime de maneira legalista, sem observar os resultados seqüenciais do procedimento, Jobim provocou: “Aqui o desafio à Magistratura brasileira; quem está afastado do resultado das atividades não participa do combate a estes ilícitos.”
Entre as confusões da negociação, Jobim contou o caso de um juiz que falou de barganha da pena para um réu disposto a denunciar toda a quadrilha. O juiz responsável pelo processo apresentou um termo de acordo para o delator assinar. Jobim considerou este juiz “cartoresco”, pois ele temia que se saísse do processo o seu sucessor poderia não cumprir o acordo com o réu. “Ninguém que dede vai assinar”, observou o ministro.
Mas se na apuração do crime de lavagem de dinheiro for difícil identificar o crime antecedente, o inciso II do artigo 2º da lei cuida disso: trata o crime como autônomo, independente de outro e o sujeito envolvido já pode ser condenado. E os bens seqüestrados como punição só serão liberados se for apresentada prova de origem lícita. “Alguns acham que estamos invertendo o ônus da prova, mas se a polícia apreende o bem e ele não tem origem lícita, já é ilícito”, disse Jobim. E alertou: “Não se trabalha com criminosos primários, mas pós-graduados.”

Setor financeiro — A tendência inicial era envolver o sistema financeiro nos crimes de lavagem de dinheiro. Havia proposição de o gerente de banco comunicar às organizações controladoras do sistema financeiro todas as operações acima de 10 mil dólares. Poderia inclusive ser considerado cúmplice se não denunciasse as operações suspeitas. Mas Jobim indaga: “Como o gerente iria identificar esta operação suspeita?” Ficou definido que “o setor financeiro deve atuar como colaborador do sistema e não como réu”.
O Conselho de Controle de Atividades Financeiras, que tinha funções investigadoras, por acordo político ficou como fiscalizador. A quebra de sigilo bancário só poderá ser autorizada judicialmente para não contrariar o inciso XV do artigo 5º, da Constituição Federal, que define o sigilo bancário como inviolável. Alguns defendem o sigilo inclusive com o inciso X, de violação da intimidade. Mas Jobim questiona se violação da intimidade pode ser aplicada para o mercado financeiro.
O ministro revelou haver conflitos de poder entre várias instituições, o que impede maior colaboração no combate ao crime. “O Banco Central quer ser soberano e a polícia também; acham que se divulgarem informações começam a perder poder.” Ele questiona também o aspecto da soberania nacional na época da globalização. Em sua opinião, se a transação de bens e pessoas não tem fronteiras, o Judiciário também deve acompanhar esta tendência para evitar a “inconsistência das justiças nacionais” para o combate dos crimes transnacionais.
 
 

Retirado de: http://www.tribunadodireito.com.br/Agosto_99/agosto_10.htm