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Leasing e variação cambial
 
 

A necessidade de manutenção do equilíbrio contratual

Cláudio Antônio Soares Levada
Juiz de Direito, mestre em Direito Civil/USP, professor titular de Direito Civil das Faculdades "Padre Anchieta" de Jundiaí/SP

A questão dos reajustes previstos pela variação cambial do dólar norte-americano em contratos de leasing merece ser analisada sob dois aspectos distintos, o primeiro puramente em face do direito positivo, o segundo em face de princípios gerais de Direito que podem subsidiar o intérprete no momento da aplicação do ordenamento jurídico ao caso concreto.

No tocante ao direito posto, deve-se partir do artigo 6º da lei 8.880/94, ao dispor que "É nula de pleno direito a contratação de reajustes vinculados à variação cambial, exceto quando expressamente autorizado por lei federal e nos contratos de arrendamento mercantil celebrados entre pessoas físicas e domiciliadas no país, com base em captação de recursos provenientes do exterior" (grifei).

De uma certa forma regulamentando esse artigo da lei 8.880/94 — que, relembre-se, foi a que instituiu o agora finado Plano Real, a Resolução 2.308, de 28 de agosto de 1996, do Banco Central, prevê que "os contratos de arrendamento mercantil de bens cuja aquisição tenha sido efetuada com recursos provenientes de empréstimos contratados, diretamente ou indiretamente, no exterior, devem ser firmados com cláusula de variação cambial" (artigo 9º). Tirando-se o fato da discutível legalidade de se impor às partes a própria cláusula de reajuste, em primeiro lugar (ou seja, a cláusula móvel passa a ser obrigatória e não facultativa, o que é no mínimo estranho para quem se dizia comprometido com a estabilidade da moeda), e em segundo lugar de se impor a forma do reajuste — compulsoriamente pela variação cambial —, mesmo a Resolução do Banco Central em nada inova, e nem poderia, no sentido de estabelecer que só quando a empresa de leasing captar o dinheiro no exterior é que haverá o reajuste das parcelas pela variação cambial.

Daí o inegável acerto do entendimento jurisprudencial que se encontra na Revista dos Tribunais 601/191, em v. Acórdão relatado pelo então desembargador do Tribunal de Justiça gaúcho Athos Gusmão Carneiro, reconhecida autoridade na matéria, no Agravo de Instrumento n.º 585020563, de 18/6/85: "Leasing. Arrendamento mercantil. Correção das prestações em conformidade com a variação do valor de venda do dólar norte-americano. Tal fórmula de reajustamento, em contratos firmados no Brasil para execução no Brasil, somente é cabível se comprovado que os bens objeto do leasing foram comprados, pela arrendadora, com recursos provenientes de empréstimo em moeda estrangeira". No corpo do aresto, ensinava-se ainda que "Em negócios dentro do país, pagos em moeda nacional, somente é cabível a correção pelos índices das ORTN, ou índices outros admitidos pelas leis e pela autoridade monetária brasileira, mas desvinculados da chamada cláusula ouro, hoje cláusula dólar".

Após a vedação expressa da lei 8.880/94, reforça-se ainda mais esse posicionamento, restringindo a validade da cláusula de reajuste cambial à única hipótese de os recursos obtidos pela arrendadora terem sido captados através de empréstimos junto a bancos estrangeiros.

A prova da captação do dinheiro repassado ao arrendatário cabe à arrendadora, que é de fato financiadora (pois é disso que trata, modernamente, o contrato de leasing, um virtual financiamento para aquisição de bens móveis duráveis), até porque é a única em condições de produzi-la. Impossível ao arrendatário imiscuir-se nos negócios internos da arrendadora para provar a origem do dinheiro que lhe foi repassado e, como se trata de negócios entre particulares, não caberá ao Judiciário investigar essa origem, cuja prova é inteiramente cabente a quem captou o dinheiro, alegadamente, no exterior.

Só nesse caso, em face do direito positivo, será válida, em princípio, a cláusula de reajuste pela variação cambial, ou seja, se e quando o dinheiro tenha sido captado no exterior para ser repassado no mercado interno brasileiro. Em caso contrário, a cláusula será nula de pleno direito, nos termos do art. 6º da lei 8.880/94, expressão que revela caráter cogente e peremptório, impossível de ser modificado por convenções entre particulares, pois jus publicum privatorum pactis derrogare non potest, ou, no dizer do artigo 6º do Código Civil francês, "Não se pode derrogar, por convenções particulares, as leis que interessam à ordem pública e aos bons costumes" e, no caso, o curso forçado da moeda nacional, por mais fraca e ilusória que seja ela, interessam à ordem pública e à própria soberania nacional. Como se trata de hipótese de nulidade, e não de mera anulabilidade, o juiz pode decretá-la de ofício, independente de pedido expresso do arrendatário, em qualquer tempo ou grau de jurisdição, pois o que é nulo não convalesce, não sana, não ratifica.

O exame da questão em face dos princípios gerais de Direito é mais sutil, mas milenarmente já se entendia que, em determinadas situações, o princípio pacta sunt servanda (de que o contrato faz lei entre as partes) cede lugar à necessidade maior de manutenção do equilíbrio contratual se, deforma imprevista, determinada circunstância gerar lucro excessivo a uma das partes e, em conseqüência, onerosidade excessiva à outra. É a aplicação da antiga cláusula rebus sic stantibus, modernamente denominada teoria da imprevisão, a qual, embora sempre excepcionalmente, tem sido admitida pela doutrina e pela jurisprudência, como demonstra a lição do mestre Silvio Rodrigues em seu tradicional "Direito Civil":

"Na jurisprudência, por igual, tal tendência tem prevalecido. De fato, após algumas hesitações onde predominam arestos em sentido contrário, parece ter se firmado orientação no sentido de se permitir a rescisão dos contratos, em virtude da excessiva onerosidade das prestações, oriunda de acontecimentos extraordinários e supervenientes, imprevisíveis por ocasião do negócio.

O primeiro caso vitorioso no Supremo Tribunal Federal ilustra bem a figura em estudo e revela, de maneira nítida, o calor da controvérsia, àquele tempo.

Certa firma brasileira prometeu comprar de empresa belga, durante os anos de 1930 a 1933, vultosa quantidade de porcas e parafusos, num montante de três milhões e duzentos mil francos. Os fornecimentos haviam de ser pagos em moeda estrangeira, devida ainda a comissão ao intermediário. Advindo a Revolução de 1930, que transformou fundamentalmente as condições do negócio, não só pela alta do câmbio, como pelas restrições ocorridas no mercado interno, pleiteou a compradora a rescisão do contrato, com base na cláusula rebus sic stantibus.

Acolhida a pretensão pela sentença de primeira instância, foi a decisão cassada em apelação, para ser novamente restabelecida em embargos, recebidos pelas Câmaras Conjuntas do Distrito Federal (RT, 121/703).

O Supremo Tribunal, desprezando o recurso extraordinário, entendeu que a tese esposada pelo aresto recorrido (onde havia expressa admissão da cláusula rebus sic stantibus) não colidia com a lei federal (Arq. Jud., 39/178).

Outros numerosos casos de admissão da teoria em estudo podem ser conferidos na jurisprudência citada por WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO (ob. cit., p. 22, nota 19) e por PAULO CARNEIRO MAIA (ob. cit., p. 242, nota 381).

Assim, vê-se como tem evoluído o contrato, talvez no sentido de se sacrificar a amplitude de seus princípios básicos em favor das restrições que almejam fazê-lo mais justo e mais humano".1

Setenta anos passados desse leading case junto ao Supremo Tribunal Federal, verifica-se que a história muitas vezes se repete, ainda que como farsa, de maneira absolutamente similar, pois o que hoje se vê acontecer no Brasil volta a justificar amplamente a aplicação da vetusta teoria da imprevisão.

Nem se diga que era previsível a explosão cambial, desculpa de última hora de quem não teve competência para fazer a economia seguir os rumos originariamente traçados. Às vésperas da explosão cambial, o então presidente do Banco Central, Gustavo Franco, dizia que a "âncora cambial" era essencial à manutenção do Plano Real e, portanto, não seria em nenhuma hipótese substituída. Se havia essa garantia governamental, aliás endossada pelo presidente da República, que se reelegeu com a promessa tantas vezes repetida de manter o Plano Real a qualquer preço, é evidente que se encontra presente a imprevisibilidade da alteração da situação econômica, a influir na própria comutatividade dos contratos celebrados, que de nenhuma maneira possuem a natureza aleatória que agora se lhe querem emprestar.

E a ausência de má-fé das arrendadoras é absolutamente irrelevante. Assim como no abuso de direito a preocupação deve ser a configuração do dano injusto sofrido pela vítima, objetivamente considerado, a quebra das perspectivas contratuais deve ser analisada à luz da caracterização objetiva do dano sofrido pelo arrendatário, sem qualquer preocupação com a análise da boa ou má-fé da arrendadora. Mesmo porque, em estando de boa-fé, não há de querer enriquecimento sem causa, o que por si só já desfiguraria a alegada ausência de malícia.

Em oportuno artigo intitulado "Quebra de confiança", publicado na Folha de S. Paulo de 6 de fevereiro último, na seção Data Venia, o professor de Direito Civil da Universidade Federal do Paraná, Luiz Edson Fachin, demonstra de forma insofismável que:

"Mais que noção ética, é princípio jurídico a proteção da confiança, que conduz, dentro da relação jurídica, à igualação de cargas e, externamente, à manutenção do equilíbrio econômico-financeiro coerente com as condições existentes á época da contratação. Se o contrato faz lei entre as partes, o equilíbrio do início da contratação deve ser mantido. É um postulado da justiça comutativa que vincula os contratantes e o próprio Estado.

A quebra da confiança é juridicamente protegida. Confiava-se no futuro, que se presentificou transformando em pesadelo o sonho da estabilidade. Por isso mesmo, com acerto, aquelas ações ou omissões estão passando pelo crivo do direito e do Judiciário.

O contratante de boa-fé tem direito à proteção contra o enriquecimento sem causa. Não há regra nem princípio jurídico que tutele a vantagem exagerada dos credores, e aos que se mantiveram na fidelidade contratual não se pode causar agora uma lesão enorme. Os contratos devem se manter, na sua execução, aptos a alcançar sua finalidade, o que não ocorrerá em casos de pagamento manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta. O credor não tem o direito potestativo de fazer exigências incompatíveis com os fins que deram causa ao contrato".

Essa linha de argumentação, que privilegia o princípio geral da boa-fé e o da própria segurança das relações jurídicas (ao preservar o equilíbrio contratual inicialmente previsto bilateralmente pelas partes), torna irrelevante saber se os contratos de leasing enquandram-se ou não no Código de Defesa do Consumidor, pois a defesa de seu caráter sinalagmático (do grego sinalagma, significando reciprocidade), da necessária correspondência entre prestação e contraprestação — a equivalência própria também aos contratos comutativos em geral —, ainda que aproximada, justifica amplamente, com o devido respeito, que se possa restabelecer pela via judicial o equilíbrio contratual perdido pela incompetência governamental, procurando-se o meio termo capaz de conciliar os interesses das partes envolvidas. O equilíbrio contratual acima do enriquecimento sem causa, é o que se defende.

Nota

1 Volume 3, "Dos contratos e das declarações unilaterais de vontade", Saraiva, 25ª ed., 1997, pág. 23/24.

Retirado de: www.apamagis.com