TEORIA DA IMPREVISÃO E FINANCIAMENTOS
FEITOS COM
CLÁUSULA DE CORREÇÃO
CAMBIAL
Talvez o leitor tenha observado, enquanto ia para
o trabalho, alguma das tantas flamantes BMW que circulam pelas ruas das
nossas cidades nos últimos anos. É bem possível que
o seu proprietário a tenha adquirido com um financiamento que, na
época, parecia muito favorável.
É mais possível ainda que se tenha
ajustado, como indexador da dívida, os índices de variação
cambial. E, nesta hipótese, a recente desvalorização
da moeda brasileira poderá ter uma de duas conseqüências:
será irrelevante ou será catastrófica, caso o valor
da prestação inicial tenha sido fixado no limite da capacidade
de pagamento do mutuário.
Neste último caso, se ele resolver consultar
um advogado é muito provável que o profissional avente a
possibilidade de utilizar a teoria da imprevisão como instrumento
jurídico capaz de modificar o contrato cujo cumprimento se tornou
excessivamente oneroso. A manifestação mais antiga desse
instituto pode ser encontrada no Código de Hamurabi, mais de dois
mil e setecentos anos atrás, na lei 48, que tinha o seguinte teor:
"Se alguém tem um débito a juros, e uma tempestade devasta o campo ou destrói a colheita, ou por falta dágua não cresce o trigo no campo, ele não deverá nesse ano dar trigo ao credor, deverá modificar sua tábua de contrato e não pagar juros por esse ano". (Cit. por J. Othon Sidou em "A revisão judicial dos contratos", Forense, 1984, pág. 03).
De lá para cá, a teoria da imprevisão
teve uma trajetória acidentada. A idéia de que em todos os
contratos está implícita a cláusula "rebus sic stantibus",
em decorrência do que podem os mesmos ser modificados sempre que
houver alteração imprevisível das circunstâncias
existentes à época de sua celebração, de forma
a tornar seu cumprimento excessivamente oneroso ou mesmo impossível
para um dos contratantes, foi aceita pelos romanos, de maneira geral. Posteriormente
foi adotada pelo Direito Canônico e incorporada à legislação
de diversos países, com nuances variadas.
Caiu em desgraça com o advento do Código
Napoleão, inspirador das codificações feitas subseqüentemente
nos outros países da Europa continental, em suas colônias
e ex-colônias. A partir de então, passou a vigorar o princípio
da imodificabilidade do contrato, que passava a ter força de lei
entre as partes: "Pacta sunt servanda".
Apenas no século XX essa situação
se alterou. A eclosão das grandes guerras, com óbvios e traumáticos
reflexos sobre a economia, acarretou um sem-número de situações
de profundo desequilíbrio nos negócios jurídicos,
levando os tribunais a suavizar o princípio da força obrigatória
dos contratos.
O mesmo processo ocorreu entre nós, atê
que o Código de Defesa do Consumidor introduziu em nosso direito
positivo a possibilidade de revisão contratual nas circunstâncias
mencionadas acima. O art. 6°, inciso V, desse diploma legal estabelece
como um dos direitos básicos do consumidor "a modificação
das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações
desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes
que as tornem excessivamente onerosas".
Observe-se que, tal como redigido o dispositivo
legal, dispensou-se a imprevisibilidade das alterações como
requisito para o exercício do direito à revisão. É
suficiente que elas se verifiquem, pouco importando que, no momento em
que surgiu o vínculo negocial, pudessem ser previstas por qualquer
das partes.
Daí decorre, para o consumidor, o direito
de pleitear em juízo a modificação de contrato indexado
em dólar, dada a súbita valorização dessa moeda
nos últimos dias, processo cujo desenlace é completamente
imprevisível e que pode se tornar ainda mais trágico.
Acolhendo este ponto de vista, o Juizado Especial
Cível de Belo Horizonte acolheu, na semana passada ação
cautelar, determinando que a correção do débito passasse
a ser feita com base em outro índice. (http://cf3.uol.com.br:8000/consultor/chama1.cfm?numero=961).
Este, contudo, não é o caminho
mais correto. Sendo certo que o financiamento foi concedido com recursos
captados no exterior, a utilização de índice que não
reflete a variação cambial tem como resultado a imposição
de um prejuízo ao financiador, como é intuitivo. E a aplicação
da cláusula "rebus sic stantibus" deve servir para afastar excessiva
onerosidade sem, com, isso, reduzir o montante do débito. Chega-se
a este resultado, por exemplo, através do alongamento do prazo para
pagamento. A troca de indexador deve contar, necessariamente, com a concordância
do credor.
Nada obsta, por outro lado, que as partes resolvam
resolver o contrato, com a transferência do bem alienado fiduciariamente
para a financiadora. Nesta última hipótese, vale lembrar,
por aplicação analógica do art. 52, § 2º,
do Código de Defesa do Consumidor, o valor do saldo devedor a ser
quitado com a venda do bem é o que resulta da redução
proporcional dos juros e demais encargos incidentes sobre as prestações
vincendas.
Porto Alegre, 25.01.99.
Carlos Alberto Etcheverry - Juiz de Direito, (3º Juizado Especial Cível de Porto Alegre - RS)
Retirado de: www.infojus.com.br