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Contra a agiotagem, a Lei

Joaquim Ernesto Palhares

Publicado na edição de 26 de março de 1999, do Jornal Correio Braziliense

Certas iniciativas políticas geram consequências ainda mais importantes que suas intenções. Na última segunda-feira, o ministro da Justiça, Renan Calheiros, anunciou a edição de uma Medida Provisória destinada a combater a prática de agiotagem. Alguns espertalhões, explicou o ministro, estão tirando proveito da crise para impor à população que precisa de dinheiro contratos que implicam "juros estratosféricos", além de "coação, humilhação, constrangimento e até violência".

A providência é mais do que saudável. Principalmente porque, ao adotá-la, o ministro reafirmou uma tradição jurídica que não só os pequenos agiotas—mas em especial o poderoso sistema financeiro—procuram negar há anos de forma patética. Há mais de seis décadas, as leis brasileiras enquadram os abusos praticados pelos emprestadores de dinheiro. Estas leis permitem, inclusive, anular contratos que tenham sido assinados pelo devedor. Sempre que acionado devidamente, o Judiciário tem protegido os direitos do consumidor de crédito As vitórias contra a pequena e a grande agiotagem só não são maiores porque as vítimas dos usuários e dos banqueiros desconhecem seus direitos - ou temem sofrer represálias, ao lutar por eles.

Os primeiros dispositivos contra a usura foram introduzidos na legislação brasileira na década de 30. Escaldadas pela crise de 29, todas as economias modernas—a começar pela norte-americana— procuravam adotar providências contra a concentração de renda e o poder excessivo do sistema financeiro. Editado pelo governo provisório de Getúlio Vargas, o Decreto 22.626, de abril de 1933, proibia a cobrança de juros superiores a 12% ao ano, juros sobre juros, e multas de mais de 1 % do valor devido. O artigo 11 dizia claramente que "o contrato celebrado com infração desta lei é nulo de pleno direito, ficando assegurado ao devedor a repetição do que houver pago a mais".

Conhecido mais tarde como Lei de Usura, o decreto de Getúlio começou a estabelecer a base jurídica sobre a qual se apóia a MP da agiotagem. Mais tarde, a proteção legal ao consumidor de crédito seria confirmada pelas Constituições de 1934,1937 e 1946; e ampliada pela Lei da Economia Popular (de n° 1.521/51), que introduziu no Direito brasileiro o conceito da Lesão Enorme.

Agora, já não se trata de estabelecer apenas limites formais para as taxas de juros. Como o crédito é cada vez mais necessário para qualquer atividade econômica, é preciso criar condições para anular também outras vantagens que o banqueiro, ou o agiota, procurem tirar da pessoa física ou jurídica que precisa de dinheiro.
 
 

A figura de usura, embora jamais excluída da ordem jurídica nacional, foi renovada tanto na Carta de 1988 quanto no C6digo de Defesa do Consumidor (CDC). Segundo o CDC (artigo 6), por exemplo, "são direitos do consumidor", entre outros, "a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas".

Além disso, o artigo 41 prevê que "são nulas de pleno direito, entre outras", as cláusulas contratuais que "estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade".

Apoiados nestes dispositivos, empresas e pessoas físicas têm anulado práticas como cobrança de juros sobre juros, spreads (ágio) superiores a 1/5 da taxa de captação paga aos aplicadores em CDBs, leasings em que se exige antecipadamente o pagamento do valor residual, e inclusão arbitrária, nos cadastros do Serasa, do nome de supostos devedores.

Ao atingir o agiota, a Medida Provis6ria anunciada segunda-feira também não deixará imunes os bancos, que adotam práticas idênticas. Não é para menos. Poderia a lei fechar os olhos para o fato de milhares de empresas e familiares quebrarem ou se tornarem inadimplentes, enquanto os lucros das instituições financeiras não param de crescer?
 
 

Joaquim Ernesto Palhares é advogado e presidente doInstituto Brasileiro de Política e Direito Bancário e Financeiro (IBDB)

Retirado de: http://www.ibdb.org.br/online/atual0399.htm