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Os regimes especiais no Sistema Financeiro Nacional

 

 

Luciano Balinski*

 

  

1. Introdução

 

No mundo atual, a pujança de uma economia está cada vez mais relacionada à higidez das instituições que compõem o seu sistema financeiro. É por meio delas que se faz a intermediação financeira, por meio da qual os recursos excedentes dos poupadores são transferidos para os tomadores, seja para financiar a produção seja como crédito para o consumo, em um processo que envolve a todos, pessoas naturais e jurídicas.

 

O papel desempenhado pelas instituições financeiras, [01] de captação de depósitos de um lado e de concessão de empréstimos do outro, [02] exercendo uma atividade em que a credibilidade é o principal ativo, faz com que essas sociedades atuem em praticamente todos os setores da economia.

 

Atento à questão, o legislador vem dedicando de longa data um tratamento especial ao segmento, visando à preservação e à sobrevivência das instituições financeiras em momentos de crise.

 

Nesse contexto, o presente trabalho tem por objetivo apresentar os chamados "regimes especiais": a intervenção e a liquidação extrajudicial, reguladas pela Lei nº 6.024/74, e o regime de administração especial temporária (RAET), disciplinado pelo Decreto-Lei nº 2.321/87.

 

Não se tratam de institutos para favorecer controladores ou administradores de instituições financeiras. Ao contrário, o que se busca é evitar que as dificuldades sofridas por essas sociedades gerem uma situação de desconfiança que possa se alastrar por todo o mercado, afetando a oferta de crédito e, por conseguinte, o crescimento da economia. Nesse sentido, aponta Luiz Alfredo Paulin:

 

[...] o Estado deve dispor de um instrumental que lhe permita dar respostas prontas e rápidas a certas situações enfrentadas por instituições financeiras, de sorte a, senhor absoluto da situação, evitar riscos sistêmicos. É neste sentido que se estabelece um regime diferenciado, o qual, sublinhe-se, não visa dar privilégios às instituições financeiras ou a seus controladores, mas, sim, instrumentaliza a autoridade pública, no caso, o Banco Central do Brasil, a atuar no mercado financeiro, de sorte a evitar conseqüências danosas, na hipótese de dificuldade ou insolvência de uma instituição financeira. [03]

 

Destacam-se, a seguir, as principais características de cada regime, com vistas à compreensão de como se dá sua contribuição para o saneamento de instituições financeiras em crise.

 

2. A intervenção

 

A intervenção constitui medida administrativa de natureza cautelar [04], aplicável às instituições financeiras privadas e às públicas não federais, bem como às cooperativas de crédito [05], na hipótese de sofrerem prejuízos decorrentes de má administração, de reiteradas violações à lei ou em caso de comprovada insolvência.

 

O instituto da intervenção em casas bancárias foi inserido no ordenamento nacional pelo Decreto-Lei nº 6.419, de 13.04.1944, no apogeu do Estado Novo. Ele dispunha que o governo poderia intervir na administração dessas sociedades, inicialmente sob o pretexto de garantir seus interesses como credor nas operações bancárias, desde que entendesse inconveniente a liquidação judicial das garantias decorrentes dos respectivos contratos [06].

 

De acordo com o artigo 2º da Lei nº 6.024/74, cabe intervenção quando ocorrerem as seguintes anormalidades nos negócios da instituição financeira:

 

a)a entidade sofrer prejuízo decorrente da má administração que sujeite a riscos os seus credores;

 

b)forem verificadas reiteradas infrações a dispositivos da legislação bancária, não regularizadas após as determinações do Banco Central, no uso de suas atribuições de fiscalização; [07] e

 

c)possibilidade de evitar-se a liquidação extrajudicial quando da constatação dos fatos mencionados nos artigos 1º e 2º do Decreto-Lei nº 7.661/45. [08], [09]

 

Considerando que a finalidade da intervenção é, em última análise, resguardar a higidez do sistema financeiro e, em decorrência, o interesse público, as hipóteses de cabimento da medida interventiva devem ser interpretadas de forma não exaustiva, de modo a ampliar o alcance de sua proteção.

 

Essa finalidade de preservação da empresa é reforçada quando se verifica que, por força do artigo 53 da Lei nº 6.024/74, as instituições financeiras não podem requerer concordata, e, de acordo com o artigo 198 da LRF, os devedores proibidos de requerer concordata nos termos de legislação específica estão proibidos de requerer recuperação judicial ou extrajudicial.

 

Como se vê, a ocorrência de indisciplina autoriza o BC a intervir na sociedade. Porém, em virtude do surgimento de mecanismos mais eficazes e menos traumáticos para se fazer cessar essa indisciplina (RAET), a intervenção ficou praticamente restrita a crises de caráter patrimonial e de liquidez e, de forma residual, disciplinar.

 

Cabe ressaltar que, proativamente, a autoridade monetária impõe uma série de requisitos aos interessados na concessão da autorização para funcionamento de instituições financeiras, tais como a elaboração de plano de negócios e estudo de viabilidade, demonstração de capacidade econômico-financeira, comprovação da origem dos recursos, definição de padrões de governança corporativa, qualificação dos administradores, entre outros [10].

 

Essa atuação do Banco Central está de acordo com um dos "Princípios Essenciais para uma Supervisão Bancária Eficaz", elaborados pelo Comitê de Supervisão Bancária da Basiléia [11]. Determina especificamente o princípio nº 3 que:

 

O órgão autorizador deve ter o direito de estabelecer critérios e de rejeitar pedidos de autorização para operação que não atendam aos padrões exigidos. O processo de autorização deve consistir, no mínimo, de uma avaliação da estrutura de propriedade da organização bancária, seus diretores e principais administradores, seu plano operacional e seus controles internos, e suas condições financeiras projetadas, inclusive a estrutura de capital. Quando o proprietário ou controlador da instituição proponente for um banco estrangeiro, deve-se condicionar a autorização a uma prévia anuência do órgão supervisor do país de origem. [12]

 

Por serem de natureza prudencial, tais requisitos visam conferir às instituições autorizadas maiores chances de perenidade no curso de seu funcionamento. Entretanto, ainda assim, desvios poderão ocorrer após o início das atividades, ocasião em que caberá ao mesmo BC intervir na instituição-problema, na tentativa de trazê-la de volta à normalidade.

 

De acordo com o artigo 3º da Lei nº 6.024/74, a intervenção pode ser decretada de ofício pelo BC, a pedido fundamentado de Bolsa de Valores [13] ou por solicitação devidamente motivada dos administradores da instituição financeira, desde que autorizados pelo estatuto social. Caso contrário, caberá à assembléia geral extraordinária deliberar sobre o assunto e investir a administração de tais poderes, pois estes não se enquadram nos poderes gerais implícitos a ela conferidos. [14]

 

A lei elenca em seu artigo 6º os seguintes efeitos da intervenção:

 

a)suspensão da exigibilidade das obrigações vencidas;

 

b)suspensão da fluência do prazo das obrigações vincendas anteriormente contraídas;

 

c)inexigibilidade dos depósitos já existentes à data de sua decretação.

 

Não há a suspensão da fluência dos juros, porque a intervenção decorre, como já visto, de má gestão ou de dificuldades financeiras transitórias, não se confundindo com a insolvência, presumida ou declarada, que autoriza a falência.

 

A intervenção será conduzida por interventor nomeado pelo BC e não poderá exceder a seis meses, prorrogáveis uma vez por igual período, a critério da autarquia (artigos 4º e 5º). Durante a intervenção fica suspenso o mandato dos administradores e membros do Conselho Fiscal da sociedade (artigo 50), o que não deve ser visto como uma sanção, pois, se assim o fosse, sucumbiria à exigência do devido processo legal, ante a ausência de contraditório e ampla defesa que caracteriza a medida.

 

Pelo contrário, o afastamento nada mais é do que uma providência necessária a fim de dar plenas condições ao interventor de investigar com minudência a efetiva situação econômico-financeira da instituição.

 

Nesse contexto, Rubens Requião destaca a atecnia contida no artigo 10, no qual o legislador se utiliza da expressão "ex-administradores" para se referir à administração com mandato suspenso: "A expressão ‘ex-administradores’ é imprópria, pois a intervenção não importa na destituição ou cassação dos mandatos da administração, que ficam suspensos, conforme dispõe o art. 50." [15]

 

A intervenção, por ter natureza cautelar e preventiva, caracteriza-se por ser de curta duração, já tendo sido comparada ao instituto da concordata preventiva [16], outrora existente. Ou o interventor consegue trazer a instituição de volta à normalidade no prazo máximo de um ano ou não restará outra saída se não a liquidação extrajudicial, quiçá a falência direta.

 

O interventor, pessoa física ou jurídica [17], é nomeado livremente pelo Banco Central e atua em nome da autarquia. Para alienar ou onerar bens do patrimônio da instituição e admitir ou demitir seus empregados, o interventor necessita de autorização específica da entidade supervisora, uma vez que tais atos não se enquadram nos poderes nos quais está investido (parágrafo único do artigo 5º).

 

Dentro de sessenta dias, prorrogáveis por outros tantos, contados de sua posse, o interventor apresentará ao BC relatório da situação da entidade. Conforme prevê o artigo 11, desse relatório constará:

 

a)exame da escrituração da aplicação dos fundos e disponibilidades, e da sua situação econômico-financeira;

 

b)indicação, devidamente comprovada, dos atos e omissões danosos que eventualmente tenha verificado; e

 

c)proposta justificada da adoção das providências que lhe pareçam convenientes.

 

De acordo com o parágrafo único do mesmo artigo, o interventor não fica adstrito ao relatório, podendo, antes da sua apresentação, propor ao Banco Central a adoção de medidas que julgar urgentes e necessárias.

 

Da apresentação do relatório ou da proposta do interventor poderão ocorrer quatro situações, a critério da autoridade monetária (artigo 12):

 

a)cessação da intervenção, retomando a sociedade as suas atividades sob o comando dos administradores outrora suspensos;

 

b)continuidade da intervenção até o prazo máximo legal, visando sanar as irregularidades ainda existentes;

 

c)decretação da liquidação extrajudicial; e

 

d)autorização ao interventor para requerer ao juízo diretamente a decretação da falência, quando o ativo não for suficiente para cobrir metade do valor dos créditos quirografários, ou quando julgada inconveniente a liquidação extrajudicial, ou quando a complexidade dos negócios da instituição ou a gravidade dos fatos apurados aconselharem a medida.

 

Embora a intervenção vise primordialmente à recuperação da instituição, na prática este é um objetivo muito difícil de ser alcançado, dado o efeito negativo sobre a credibilidade que uma medida dessa natureza produz sobre o mercado e o público em geral, podendo acarretar, inclusive, sérias dificuldades financeiras para as demais sociedades que atuam no mesmo nicho, em razão de um eventual aumento inesperado de retiradas de depósitos nos bancos. Essas dificuldades poderão, por sua vez, ensejar novas intervenções, gerando dessa forma um círculo vicioso.

 

Ainda que não tenha chegado a esse extremo, a seguinte matéria jornalística [18] demonstra como essa questão ainda é atual:

 

A agência de classificação de risco Moody''s colocou anteontem sob revisão, "para possível rebaixamento", o rating dos bancos Rural, Fibra e Indusval Multistock, em ação relacionada à decisão do Banco Central de intervir no Banco Santos, em novembro.A agência colocou sob revisão o rating de depósitos globais em moeda local e em escala nacional das três instituições e disse ainda estudar a saúde financeira do Banco Rural. "A revisão foi motivada pela avaliação da Moody''s de uma mudança no comportamento do BC ao impor o congelamento de depósitos após a intervenção do Banco Santos", informou a agência em comunicado.

 

A Moody''s explicou que a revisão terá como foco o efeito que a decisão do BC terá sobre os clientes, que "podem se tornar um pouco mais avessos ao risco, especialmente em relação aos bancos de pequeno e médio portes".

 

"Como resultado, o custo de financiamento desses bancos pode aumentar com o tempo, causando potencialmente impacto em seus fundamentos financeiros", avaliou a agência.

 

A Moody''s disse ainda que o comportamento dos órgãos reguladores em relação ao Santos coloca em questão certas expectativas relacionadas às prioridades desses órgãos em casos de intervenção. "O congelamento de depósitos no Santos parece revelar uma disposição dos [órgãos] reguladores a expor o sistema a um risco um pouco maior."

 

No fim de novembro, outra agência de classificação de risco, a Fitch, afirmou que via riscos acentuados, embora gerenciáveis, de que a desconfiança gerada pelo Banco Santos tivesse impacto sobre as operações de bancos de pequeno e médio portes. Na semana passada, porém, a agência Standard & Poor''s afirmou que não via risco sistêmico e previu que os pequenos bancos que tiverem saúde financeira não devem ser afetados.

 

3. O Regime de Administração Especial Temporária (RAET)

 

Segundo Francisco José de Siqueira:

 

o tempo demonstrou que no mais das vezes a intervenção não gerava o desejado efeito de normalização dos negócios da empresa, visto que no curso do processo é paralisada sua atividade, em razão de notória dificuldade operacional [19]

 

Assim, como a intervenção não se adequava à recuperação de instituições financeiras com problemas transitórios, o governo resolveu instituir o RAET por meio do Decreto-Lei nº 2.321/87, com vistas a proteger as instituições financeiras públicas e privadas contra gestões temerárias ou fraudulentas capazes de colocar em risco os credores e os depositantes [20].

 

O Banco Central pode decretar o RAET nas instituições financeiras privadas e públicas não federais quando nelas verificar (artigo 1º):

 

a) prática reiterada de operações contrárias às diretrizes de política econômica ou financeira traçadas em lei federal;

 

b) existência de passivo a descoberto;

 

c) descumprimento das normas referentes à conta de Reservas Bancárias, mantida no Banco Central;

 

d) gestão temerária ou fraudulenta de seus administradores; e

 

e) ocorrência de qualquer das situações descritas no artigo [21] 2º e 15 da Lei nº 6.024/74.

 

O RAET terá sua duração fixada no ato que o decretar, podendo ser prorrogada por período não superior ao primeiro (parágrafo único do artigo 1º). A medida não afetará o curso regular dos negócios da entidade nem seu normal funcionamento e produzirá, de imediato, a perda do mandato dos administradores e membros do Conselho Fiscal da instituição (artigo 2º).

 

A administração especial temporária será executada por um Conselho Diretor, nomeado pelo Banco Central, com plenos poderes de gestão, constituído de tantos membros quantos julgados necessários para a condução dos negócios sociais (artigo 3º), ou ainda por uma pessoa jurídica com especialização na área (artigo 8º). As providências a serem adotadas pelos membros do Conselho Diretor são idênticas às do interventor, definidas nos artigos 9º, 10 e 11 da Lei nº 6.024/74.

 

Percebe-se que o RAET é muito semelhante à intervenção. Luiz Tzirulnik [22] aponta, como principal diferença entre os dois regimes, a possibilidade de utilização pelo BC da conta de reserva monetária na tentativa de recuperar econômica e financeiramente a instituição, prevista no artigo 9º do Decreto-Lei nº 2.321/87.

 

O RAET pode cessar nas seguintes situações (artigo 14):

 

a)se a União Federal assumir o controle acionário da instituição mediante desapropriação, por necessidade ou utilidade pública ou por interesse social, das ações do capital social da instituição;

 

b)nos casos de transformação, incorporação, fusão, cisão ou de transferência do controle acionário da instituição, desde que aceitas as condições de garantia apresentadas pelos interessados; [23]

 

c)quando, a critério do Banco Central, a situação da instituição se houver normalizado; e

 

d)pela decretação da liquidação extrajudicial da instituição [24].

 

4. A Liquidação Extrajudicial

 

Na intervenção e na administração especial temporária, o Banco Central interfere na gestão da instituição sem, contudo, liquidá-la. Quando, porém, esses dois instrumentos ficam impotentes diante da magnitude atingida pela insolvência da sociedade, o caminho natural (e legal) é a decretação da liquidação extrajudicial, que pode ser definida como a:

 

forma excepcional de liquidação e extinção da empresa, por processo administrativo, determinada pelo Estado ex officio, ou a requerimento de seus próprios órgãos dirigentes. É aplicada quando, na instituição financeira, ocorrerem graves indícios ou evidência de insolvência ou lhe for cassada a autorização para funcionar, da qual sua existência depende. [25]

 

De acordo com o artigo 15 da Lei nº 6.024/74, a liquidação extrajudicial é decretada nas seguintes hipóteses:

 

a)ex officioa)

 

a.1) em razão de ocorrências que comprometem a situação econômica ou financeira, especialmente quando deixar de satisfazer, com pontualidade, seus compromissos, ou quando se caracterizar qualquer dos motivos que autorizem a declaração da falência;

 

a.2) quando a administração violar gravemente as normas legais e estatutárias que disciplinam a atividade da instituição, bem como as determinações do Conselho Monetário Nacional ou do Banco Central, no uso de suas atribuições legais;

 

a.3) quando a instituição sofrer prejuízo que sujeite a risco anormal seus credores quirografários; e

 

a.4) quando, cassada a autorização para funcionar, a instituição não iniciar, nos noventa dias seguintes, sua liquidação ordinária, ou quando, iniciada esta, o Banco Central verificar que a morosidade de sua administração pode acarretar prejuízo para os credores;

 

b)a requerimento dos administradores da instituição: se o respectivo estatuto social lhes conferir esta competência ou por proposta do interventor, expostos circunstanciadamente os motivos justificadores da medida.

 

A lei recomenda cautela na adoção da medida, dadas as suas graves repercussões e efeitos. Diz o § 1º do artigo 15 da Lei nº 6.024/74:

 

O Banco Central do Brasil decidirá sobre a gravidade dos fatos determinantes da liquidação extrajudicial, considerando as repercussões deste sobre os interesses dos mercados financeiros e de capitais, e, poderá, em lugar da liquidação, efetuar a intervenção, se julgar esta medida suficiente para a normalização dos negócios da instituição e preservação daqueles interesses.

 

Verifica-se portanto o caráter excepcional da liquidação extrajudicial, que somente deve ser aplicada se a intervenção não se apresentar como a melhor solução.

 

A liquidação extrajudicial é semelhante ao procedimento falimentar. Em decorrência, o legislador determinou, no artigo 34 da Lei nº 6.024/74, a aplicação subsidiária da Lei de Falências, dispositivo esse que guarda correlação com o artigo 197 da LRF, já descrito neste trabalho. Outrossim, a lei interventiva equipara o liquidante ao síndico (hoje administrador judicial) e o Banco Central ao juiz da falência.

 

O ato do Banco Central que decretar a liquidação extrajudicial nomeará o liquidante, que pode ser uma pessoa física ou jurídica [26], e fixará o termo legal, que não poderá ser superior a sessenta dias contados do primeiro protesto por falta de pagamento ou, na falta deste, do ato que haja decretado a intervenção ou a liquidação (§ 2º do artigo 15).

 

O liquidante é investido de amplos poderes de administração e liquidação, abrangendo a verificação e classificação de créditos, nomeação e demissão de funcionários, fixando-lhes os vencimentos, outorga e cassação de mandatos, propositura de ações e representação da massa judicial ou extrajudicialmente (artigo 16).

 

De acordo com o artigo 17, uma vez estando sob o regime, a instituição liquidanda passará obrigatoriamente a utilizar ao final da sua denominação a expressão "em liquidação extrajudicial".

 

Pode-se dividir a liquidação extrajudicial em duas etapas: a primeira, que inicia o processo liquidatório, assemelha-se à intervenção, regulando-se pelos mesmos artigos 9º a 11 da Lei nº 6.024/74, referentes àquele regime especial, e finda com a elaboração do relatório do liquidante. A etapa seguinte corresponde à essência de uma liquidação, isto é, à realização do ativo e pagamento do passivo, para posterior extinção da sociedade.

 

Entretanto, se o relatório do liquidante apontar que o ativo da sociedade não é suficiente para cobrir a metade do valor dos créditos quirografários, ou quando houver fundados indícios de crime tipificado na Lei nº 11.101/05, migrar-se-á diretamente para o requerimento de falência (artigo 21), até porque a sentença declaratória da falência é condição de punibilidade dessa modalidade de crime. [27]

 

De acordo com o artigo 18, a liquidação extrajudicial produz, de imediato, os seguintes efeitos:

 

a)suspensão das ações e execuções iniciadas sobre direitos e interesses relativos ao acervo da entidade liquidanda, não podendo ser intentadas quaisquer outras enquanto durar a liquidação;

 

b)vencimento antecipado das obrigações da liquidanda;

 

c)não-atendimento das cláusulas penais dos contratos unilaterais vencidos em virtude da decretação da liquidação extrajudicial;

 

d)não-fluência de juros, mesmo que estipulados, contra a liquidanda, enquanto não integralmente pago o passivo;

 

e)interrupção da prescrição relativa à obrigação de responsabilidade da instituição financeira; e

 

f)não-reclamação de correção monetária de quaisquer dívidas passivas, nem de penas pecuniárias por infração de leis penais ou administrativas.

 

Em relação às alíneas "a" e "f" desse artigo, o Subprocurador-geral do Banco Central Haroldo Mavignier Guedes Alcoforado [28] observa que, no Resp 177.535/BA o STJ pacificou o entendimento de que a alínea "a" abrange somente as execuções, não se aplicando às ações de conhecimento, que prosseguiriam normalmente. Os créditos oriundos destas, passariam a concorrer na fase de execução com os demais créditos habilitados perante a massa liquidanda, mediante inclusão no Quadro Geral de Credores, em obediência a par conditio creditorum. Assim decidiu o STJ a respeito [29]:

 

Liquidação extrajudicial. Execução para cobrança de crédito fundada em título extrajudicial. Suspensão. A decretação da liquidação produz a "suspensão das ações e execuções iniciadas sobre direitos e interesses relativos ao acervo da entidade liquidanda, não podendo ser intentadas quaisquer outras, enquanto durar a liquidação" (Lei nº 6.024/74, art. 18, a). Tratando-se de execução, é de rigor a suspensão, não vindo a pêlo precedentes do STJ a propósito da ação de conhecimento. É irrelevante tenha a execução se iniciado antes da edição do decreto de liquidação. Recurso especial conhecido e provido.

 

Quanto à alínea "f", ressalta-se que o artigo 46 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) derrogou sua parte inicial, que isentava o passivo de correção monetária, passando a dispor que:

 

Art. 46. São sujeitos à correção monetária desde o vencimento, até seu efetivo pagamento, sem interrupção ou suspensão, os créditos junto a entidades submetidas aos regimes de intervenção ou liquidação extrajudicial, mesmo quando esses regimes sejam convertidos em falência.

 

Mesmo no ordenamento anterior à CRFB/88, o entendimento era pela correção monetária desses créditos, por força da Lei nº 6.899/81, e do Decreto-Lei nº 2.278/85. Nesse sentido, cabe destacar os fundamentos utilizados no seguinte acórdão do TJSP [30]:

 

A correção monetária dos créditos sujeitos a falência ou liquidação extrajudicial é devida não só a contar do Decreto-Lei nº 2.278, de 1985, mas a partir do vencimento dos créditos habilitados ou, no mínimo, a partir da Lei nº 6.899, de 1981, visando não permitir a ocorrência do locupletamento indevido por parte do liquidando e seus administradores, ou impedir a imprestabilidade do princípio da par conditio creditorum e, até mesmo, garantia constitucional da isonomia. À não admissão de correção monetária sobre os créditos habilitados de liquidação extrajudicial, desde o vencimento, beneficiar-se-ão credores por títulos mais recentes, prejudicando credores por títulos mais antigos.

 

Por fim, de acordo com o artigo 19 da Lei nº 6.024/74, a liquidação extrajudicial cessará:

 

a)se os interessados, apresentando as condições necessárias de garantia, julgadas a critério do Banco Central, tomarem para si o prosseguimento da atividade econômica da empresa;

 

b)por transformação em liquidação ordinária;

 

c)se decretada a falência; e

 

d)com a aprovação das contas do liquidante e o arquivamento do respectivo ato na Junta Comercial.

 

5. Conclusão

 

A intervenção constitui medida administrativa de natureza cautelar, aplicável às instituições financeiras privadas e às públicas não federais, bem como às cooperativas de crédito, na hipótese de sofrerem prejuízos decorrentes de má administração, de reiteradas violações à lei ou em caso de comprovada insolvência. Pode ser decretada a pedido ou de ofício, pelo Banco Central, podendo ter duração de seis meses, prorrogáveis por igual período, tempo em que os administradores ficam com o mandato suspenso de forma a permitir a livre análise da situação social pelo interventor, na qual o Banco Central se baseará para permitir o restabelecimento das atividades normais, decretar a liquidação extrajudicial ou requerer diretamente a falência da instituição.

 

Entretanto, a experiência demonstrou que uma vez decretada a intervenção, dificilmente a sociedade conseguia se recuperar, até mesmo em virtude do efeito negativo da medida para a credibilidade da instituição perante o mercado e a sociedade. Por essa razão, foi criado o RAET, medida cuja duração é determinada no ato de sua decretação, prorrogável por período não superior ao primeiro, e que gera a perda do mandato dos administradores, que são substituídos por um Conselho Diretor, órgão colegiado com atribuições semelhantes às do interventor.

 

O RAET cria a possibilidade de utilização da reserva bancária na tentativa de recuperar financeiramente a instituição, objetivo que, se alcançado, encerrará o regime, o qual também pode ser extinto em virtude da aquisição do controle pela União, por alguma solução de mercado (transformação, cisão, fusão, incorporação ou transferência de controle) ou pela decretação da liquidação extrajudicial.

 

De maior gravidade é a liquidação extrajudicial, que só deve ser aplicada quando a intervenção ou o RAET não obtiveram êxito. Por ser semelhante à falência, a Lei nº 6.024/74 determinou a aplicação subsidiária da legislação falimentar e equiparou o liquidante ao síndico (administrador judicial) e o Banco Central ao juiz da falência.

 

Em última análise, a medida visa à realização do ativo da sociedade para o pagamento do seu passivo, mediante o levantamento e classificação dos créditos contra a instituição. Se o ativo não for suficiente para cobrir metade do valor dos créditos quirografários ou houver indícios de crime tipificado na Lei nº 11.101/05, o liquidante requererá diretamente a falência ao juízo. Além dessa hipótese, a liquidação encerrar-se-á se os interessados, mediante apresentação de garantias ao BC, desejarem prosseguir com a sociedade, se a liquidação converter-se de extrajudicial em ordinária ou quando aprovadas as contas do liquidante com o respectivo arquivamento na Junta Comercial.

 

Notas

 

   1. O artigo 17 da Lei nº 4.595/64 introduziu em nosso ordenamento o conceito de instituição financeira, nos seguintes termos: "Consideram-se instituições financeiras, para os efeitos da legislação em vigor, as pessoas jurídicas públicas ou privadas, que tenham como atividade principal ou acessória a coleta, intermediação ou aplicação de recursos financeiros próprios ou de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, e a custódia de valor de propriedade de terceiros".

   2. A diferença entre a taxa de juros cobrada no empréstimo e a taxa de juros paga na captação constitui o spread bancário, que sempre foi, ao lado da receita com tarifas, uma das principais formas de remuneração das instituições financeiras.

   3. PAULIN, Luiz Alfredo. Conceito de Intervenção e Liquidação Extrajudicial. In: SADDI, Jairo (Org.). Intervenção e liquidação extrajudicial no sistema financeiro nacional: 25 anos da Lei 6.024/74. São Paulo: Textonovo, 1999, p. 125.

   4. REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Falimentar. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 1995, v. 2, p. 201.

   5. As cooperativas de crédito encontram-se reguladas pela Lei nº 5.764/71, que disciplina o cooperativismo em geral. Sua constituição e funcionamento dependem de prévia autorização do Banco Central por força do artigo 103 da lei cooperativista c/c os artigos 4º, incisos VI e VIII, e 55, da Lei nº 4.595/64. Aplicam-se-lhes ainda, no plano infra-legal, a Resolução nº 3.442/07, do Conselho Monetário Nacional (CMN), e a Circular nº 3.201/03, do BC.

   6. SIQUEIRA, Francisco José de. O Papel do Banco Central no Processo de Intervenção e Liquidação Extrajudicial. In: SADDI, Jairo (Org.). Op. Cit. p. 93-94.

   7. Essa hipótese foi ligeiramente esvaziada pelo artigo 18 do Regulamento Anexo à Resolução CMN nº 3.040/02, que, independentemente de prévia intervenção, prevê o cancelamento da autorização para funcionamento da instituição financeira quando constatada ao menos uma das seguintes situações: "I – inatividade operacional, sem justificativa aceitável; II – instituição não localizada no endereço informado ao Banco Central do Brasil; III – interrupção, por mais de quatro meses, sem justificativa aceitável, do envio de demonstrativos financeiros exigidos pela regulamentação em vigor, àquela Autarquia; IV – não-observância do prazo para início de atividades. Parágrafo único: O Banco Central do Brasil, previamente ao cancelamento pelos motivos referidos neste artigo, divulgará, por meio que julgar mais adequado, sua intenção de cancelar a autorização de que se trata, com vistas à eventual apresentação de objeções, por parte do público, no prazo de trinta dias." Norma semelhante é prevista para o segmento cooperativista no artigo 36 da Resolução CMN nº 3.442/07, tendo sido aplicada, exemplificativamente, no cancelamento da Cooperativa de Economia e Crédito Mútuo dos Empregados em Grupo Buaiz, decisão que foi publicada no D.O.U. de 19.04.2007, Seção 3, p. 41.

   8. O Decreto-Lei nº 7.661/45 foi revogado pela Lei nº 11.101/05. Embora o artigo 2º, inciso II, da Lei de Recuperação e Falências (LRF) disponha que essa lei não se aplica às instituições financeiras, o artigo 197 do mesmo diploma legal determina sua aplicação subsidiária ao regime previsto na Lei nº 6.024/74, enquanto não sobrevier lei específica. Dessa forma, há a possibilidade de decretação da falência de instituições financeiras, que somente poderá ser requerida pelo interventor ou pelo liquidante (artigos 12, alínea d, 19, alínea d, e 21, alínea b, da Lei nº 6.024/74). Uma vez decretada a falência, esta seguirá o procedimento previsto na LRF. Nesse sentido: CAMPINHO, Sérgio. Falência e recuperação de empresa: O novo regime da insolvência empresarial. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 26.

   9. O leading case para a aplicação da LRF às instituições financeiras é o Banco Santos S.A., cuja falência foi requerida pelo liquidante nomeado pelo Banco Central e decretada pelo Poder Judiciário do Estado de São Paulo em 20.09.2005. Nesse sentido: SÃO PAULO. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. 2ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais. Processo nº 2005.065208. Autofalência. Falido: Banco Santos S.A. – Em Liquidação Extrajudicial – Massa Falida. Juiz: Caio Marcelo Mendes de Oliveira. São Paulo, 20.09.2005. Disponível em: <http://www.tj.sp.gov.br>. Acesso em: 26 set. 2008.

  10. BANCO CENTRAL DO BRASIL. Resolução CMN nº 3.040/02. Dispõe sobre os requisitos e procedimentos para a constituição, a autorização para funcionamento, a transferência de controle societário e a reorganização societária, bem como para o cancelamento da autorização para funcionamento das instituições que especifica. Resolução CMN nº 3.041/02. Estabelece condições para o exercício de cargos em órgãos estatutários de instituições financeiras e demais instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil. Resolução CMN nº 3.442/07. Dispõe sobre a constituição e o funcionamento de cooperativas de crédito. Disponível em: <http://www.bcb.gov.br/?LEGISLACAO>. Acesso em: 26 set. 2008.

  11. O Comitê de Supervisão Bancária da Basiléia (Basle Committee on Banking Supervision) congrega autoridades de supervisão bancária e foi estabelecido pelos Presidentes dos Bancos Centrais dos países do Grupo dos Dez (G-10), em 1975. Normalmente se reúne no Banco de Compensações Internacionais (Bank of International Settlements - BIS), na Basiléia, Suíça, onde se localiza sua Secretaria permanente. O BIS, que pode ser considerado um "Banco Central dos Bancos Centrais", tem atualmente como membros Bancos Centrais de 55 países, inclusive o Brasil. Disponível em: <http://www.bis.org>. Acesso em: 26 set. 2008.

  12. Tradução não oficial do documento Core Principles for Effective Banking Supervision. Disponível em: <http://www.bcb.gov.br/ftp/defis/basileia.pdf>. Acesso em: 29 out. 2007.

  13. Somente quanto às corretoras a ela associadas (art. 52, § 1º, da Lei nº 6.024/74).

  14. REQUIÃO, Rubens. Op. Cit. p. 222.

  15. Ibid. p. 224.

  16. "A intervenção distingue-se da liquidação extrajudicial pelo seu caráter de medida provisória, tendente a preservar a existência da empresa, com o seu saneamento administrativo e financeiro, evitando-se sua extinção pela falência ou liquidação extrajudicial. Trata-se, por conseguinte, de um minus em relação a esta, de uma operação cirúrgica in extremis, para se evitar um mal maior. É um sucedâneo da concordata preventiva, vedada por lei às instituições financeiras [...]" COMPARATO, Fábio Konder. Ensaio e Pareceres de Direito Empresarial. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 437.

  17. A possibilidade de o interventor ser pessoa jurídica foi incluída pelo artigo 8º da Lei nº 9.447/97.

  18. MOODY´S reavalia rating de bancos. Folha on line, São Paulo, 8 dez. 2004. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u91488.shtml>. Acesso em: 26 set. 2008.

  19. SIQUEIRA, Francisco José. Op. Cit. p. 100.

  20. Há quem entenda, minoritariamente, que o Decreto-Lei nº 2.321/87 revogou a intervenção prevista na Lei nº 6.024/74. Nesse sentido: ABRÃO, Nelson. Direito Bancário. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 244.

  21. A possibilidade de aplicação do artigo 15 da Lei 6.024/74 foi incluída pelo artigo 4º da Lei nº 9.447/97.

  22. TZIRULNIK, Luiz. Intervenção e liquidação extrajudicial das instituições financeiras. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 48.

  23. São as chamadas "soluções de mercado".

  24. Hipótese incluída pelo Decreto-Lei nº 2.327/87.

  25. REQUIÃO, Rubens. Op. Cit. p. 232.

  26. A possibilidade de o liquidante ser pessoa jurídica foi incluída pelo art. 8º da Lei nº 9.447/97.

  27. Artigo 180 da Lei nº 11.101/05.

  28. ALCOFORADO, Haroldo Mavignier Guedes. Instrumentos de defesa do sistema financeiro nacional – intervenção nas instituições financeiras. 2006. Dissertação (Mestrado em Direito) - Universidade Gama Filho, Rio de Janeiro, 2006, p. 45-46. Disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/PesquisaObraForm.do?select_action=&co_autor=5833. Acesso em 26 set. 2008.

  29. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Terceira Turma. Recurso especial nº 177535/BA (1998/0041790-7). Recorrente: Banco Econômico S.A.. Recorrido: AN Consultoria e Projetos S/C Ltda. Relator: Ministro Nilson Naves. Brasília, 23 de março de 1999. Disponível em: <http://www.stj.gov.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livre=177535&&b=ACOR&p=true&t=&l=10&i=1>. Acesso em: 26 set. 2008.

  30. SÃO PAULO. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Sexta Câmara Cível. Apelação Cível nº 195317-1. Apelantes: Massa falida do Banco da Lavoura de São Paulo – Sociedade Cooperativa de Responsabilidade Ltda. e Ministério Público. Apelados: Affonso Ligouri e espólio de Astrolindo Romeu Cerqueira e João Marino e Manoel Nemes e outros e Zulmiro Gonçalo de Sá Teixeira Durão e Alfredo Gereissati e outros, por Curador Especial. Relator: Desembargador Melo Colombi. São Paulo, 19 de agosto de 1993. RJTJSP vol. 150, p. 87. In: EIZIRIK, Nelson. Instituições financeiras e mercado de capitais: jurisprudência. Rio de Janeiro: Renovar, 1996, v. 2, p. 1304-1306.

 

* Advogado. Bacharel em Direito (UFRJ). Especialista em Finanças e Comércio Internacional (UFF). Pós-graduando em Direito Privado (UGF). Analista do Banco Central do Brasil.

 

Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11889> Acesso em: 26 out. 2008.