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Uma ameaça que é possível evitar

Por trás da emenda constitucional que altera o artigo sobre Sistema Financeiro,

há um esforço dos banqueiros para bloquear a ação Justiça


Joaquim Ernesto Palhares

Presidente do IBDB-Instituto Brasileiro de Política e Direito Bancário e Financeiro

1. No início de junho, o Senado votará, agora em segundo turno, a Proposta de Emenda Constitucional que altera o artigo 192 da Constituição. A imprensa tratou do tema com razoável destaque durante a primeira votação, há duas semanas. A cobertura, no entanto, escondeu o essencial. O mais importante não é saber se o texto constitucional vai continuar abrigando ou não o limite de 12% ao ano para os juros. Por trás desta questão, sempre tratada com superficialidade pelos neoliberais, há dois pontos muito mais graves. A verdadeira intenção é 1) extirpar da Carta os princípios que vinculam o sistema financeiro ao desenvolvimento nacional; e 2) permitir que a regulamentação do setor seja feita não por lei complementar mas pela legislação ordinária – vale dizer, até mesmo por Medida Provisória. 

2. O texto atual da Constituição é bastante abrangente. O artigo 192 diz que

O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do país e a servir aos interesses da coletividade, será regulado em lei complementar, que disporá, inclusive, sobre...:

Seguem-se oito incisos, que fazem referência a "autorização para funcionamento das instituições financeiras", "autorização e funcionamento dos estabelecimentos de seguro, previdência e capitalização", "as condições para a participação do capital estrangeiro", "a organização, o funcionamento e as atribuições do banco central", "os requisitos para a designação de membros da diretoria do banco central (...) bem como seus impedimentos após o exercício do cargo", "a criação de fundo ou seguro, com objetivo de proteger a economia popular", "os critérios restritivos da transferência de poupança de regiões de renda inferior à média nacional para outras de maior desenvolvimento", "o funcionamento das cooperativas de crédito". 

Poucos sabem, mas a limitação dos juros está inscrita como um sub-item do oitavo inciso. Se, portanto, o objetivo fosse apenas eliminar este limite, a mudança no texto constitucional seria, percebe-se, muito simples. 

3. As propostas de reforma, porém, são muito mais abrangentes – e é preciso reconhecer que há um problema real por trás delas. A regulamentação do sistema financeiro abrange, como se viu acima, um leque amplíssimo de temas. Como é necessário quorum de 3/5 para aprovar leis complementares, e como a Constituição prevê uma única lei, vai ser quase impossível, mantida a atual redação, aprovar qualquer coisa. Ao tratar de muitos assuntos, qualquer projeto de lei contrariará diversos interesses – e a tendência é que eles se unifiquem para evitar a aprovação. 

4. Com base nessa dificuldade verdadeira (que seria, no entanto, facilmente sanável), o então senador José Serra, apresentou, há cerca de dois anos, um projeto estranho. Ao invés de falar em lei, o novo texto referia-se a leis, o que é correto. Além disso – e aí está o pulo do gato – Serra suprimiu a expressão complementar. O risco é evidente: o Executivo passaria a legislar, também sobre esse tema decisivo, por Medida Provisória...

5. Quando Serra trocou o Senado pelo Ministério, o posto de relator foi assumido por Roberto Jefferson, ex-tucano, hoje pedetista do Amazonas. No ano passado, Jefferson apresentou um novo projeto muito semelhante ao original – e igualmente permissivo às Medidas provisórias. Naquele momento, o senador esbarrou num obstáculo poderoso: o senador José Eduardo Dutra (PT-SE), que apontou de forma muito bem fundamentada o caráter antidemocrático da proposta e forçou o redator a anunciar que reveria sua posição.

6. A nova proposta de Jefferson, apresentada no início desse ano, recebeu o apoio do PT, aparentemente sob a alegação de que se trata de um avanço em relação ao texto anterior. Evidentemente, não é tão ruim quanto a proposta inicial do próprio relator. No entanto, tem inúmeras brechas, que serão certamente aproveitadas pelos bancos se o projeto vier a ser aprovado. Se confirmado o texto aprovado em primeiro turno, o artigo 192 ficará reduzido à seguinte formulação:

O Sistema Financeiro Nacional, em todas as partes que o compõem, abrangendo as cooperativas de crédito, será regulado por leis complementares, que disporão sobre a participação do capital estrangeiro nas instituições que o integram"
7. Há, aí, dois problemas muito graves, em torno dos quais não podemos calados. O primeiro é a eliminação dos princípios que regem o Sistema Financeiro Nacional. Assim como Serra, Jefferson eliminou a frase que estabelecia o dever constitucional dos bancos "promover(em) o desenvolvimento equilibrado do país e servir(em) aos interesses da coletividade".

8. Ao contrário do que pode parecer, à primeira vista ou aos pouco enfronhados no Direito, não são palavras ocas, nem é hipocrisia. Em março de 98, durante o I Simpósio Internacional de Direito Bancário, o professor Antonio Herman Benjamin, um dos autores do Código de Defesa do Consumidor, fez uma palestra brilhante sobre o assunto.

9. Benjamim, um dos Procuradores do Estado mais brilhantes de S.Paulo, citado como referência em inúmeras obras jurídicas sobre Direito do Consumidor e Direito Bancário, falou precisamente sobre os princípios constitucionais que regulam o sistema financeiro. E mostrou que estes princípios são a base tanto de inúmeros dispositivos avançados do Código de Defesa do Consumidor quanto de decisões judiciais que tendem a favorecer, cada vez em maior número, o consumidor de crédito.

10. O segundo problema diz respeito, novamente, ao risco de regulamentar o setor através de Medidas Provisórias -- mas desta vez é menos aparente. Repare que, segundo a proposta, o sistema financeiro "será regulado por leis complementares" mas elas... "disporão sobre a participação do capital estrangeiro nas instituições que o integram".

11. Num país em que o um ponto e é às vezes suficiente para que se procure eliminar direitos sociais, não é difícil perceber a gravidade da brecha que se abre. O Executivo vai sentir-se à vontade para alegar que a Constituição prevê lei complementar sobre a participação do capital estrangeiro, e que é omissa em relação a todos os demais pontos. Dessa forma, tentará legislar, nesses pontos, por lei ordinária ou Medida Provisória... 

12. Fica claro, portanto, o risco que corremos. Nos últimos dez dias, iniciei um esforço pessoal para tentar, ainda no Senado, ao menos mitigar o problema. Parte de minha estratégia consistiu em redigir, e fazer aprovar por diversas entidades, uma moção dirigida ao Senado contra a emenda que está sendo votada. 

13. Houve necessidade, porém, de recorrer ao artifício de uma emenda de redação – único instrumento capaz de modificar um texto do primeiro para o segundo turnos de votação. Articulei-a com o senador Pedro Simon, que está em melhor condição para obter o apoio do centro no Senado. Toda a articulação, no entanto, foi discutida em detalhes com a assessoria da Liderança do PT, em especial o Toffoli, na Câmara, e o Tales, no Senado.

14. A emenda de redação procura, com muita habilidade, mostrar aos senadores que é preciso aperfeiçoar a emenda que altera o Artigo 192. Veja como ficará o texto, se a idéia passar (estão grifadas as alterações em relação ao que foi votado no primeiro turno):

O Sistema Financeiro Nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, em todas as partes que o compõem, abrangendo as cooperativas de crédito, será regulado por leis complementares, que disporão, inclusive, sobre a participação do capital estrangeiro nas instituições que o integram"
15. Para que a iniciativa prospere são necessários três passos: a apresentação da emenda (já obtida, graças ao Simon), a concordância do relator e a não-objeção do plenário. Estive a ponto de alcançar a segunda vitória na semana passada. A situação modificou-se em cima da hora, e julgo, por isso, necessária uma intervenção mais incisiva, junto aos parlamentares a quem a Fiesp tem acesso, para reverter o quadro. Você verá que não se trata de uma missão impossível – mas é preciso agir.

16. Em contato inicial com o Pedro Simon, o senador Jefferson Peres concordou em acatar a emenda de redação. Relutou um pouco. Defendeu a tese do "enxugamento" do texto constitucional. Mas pareceu convencido. Seu parecer favorável poderia ter sido (e ainda pode ser) decisivo. Nesse caso, seriam (serão?) necessários 3/5 dos votos para reinstituir o texto original.

17. Na última quarta-feira, porém, o senador Jefferson Peres deixou de apresentar tal parecer. Foi a terceira e última sessão de discussão do tema. Estaria dentro das atribuições do relator pronunciar-se sobre a proposta. Ele preferiu, no entanto, deixar para fazê-lo apenas perante a Comissão de Constituição e Justiça, onde, como se sabe, têm assento parlamentares muito preparados e muito atentos. 

18. Nossa batalha certamente será longa. Uma eventual derrota no Senado não nos impediria de retomar a causa quando a matéria chegar à Câmara. Mas numa conjuntura como a atual, em que os conservadores sentem-se à vontade para avançar sobre tantas conquistas, não podemos nos dar ao luxo de um descuido. Algumas providências muito simples são importantes para reverter o quadro, até agora desfavorável.

19. Primeiro, é preciso comversar novamente com o senador Jefferson Peres A segunda providência é ganhar o maior número possível de aliados no Senado. Temos argumentos muito poderosos. Podemos explorar, ainda, a nítida tendência da própria bancada governista para exigir mais concessões do governo (veja, por exemplo, a tendência clara para aprovar alguma limitação real no poder do Executivo para editar Medidas Provisórias). O texto votado em primeiro turno está, na verdade, na contramão desta tendência. 

 Retirado de: http://www.ibdb.org.br/online/atual310599.htm