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O dever de resistência
IBDB - Instituto Brasileiro de Direito Bancário

É compreensível que o Executivo, distante até mesmo de suas responsabilidades constitucionais elementares, ataque o Judiciário. É indispensável que a sociedade brasileira tenha em nosso poder o apoio de que necessita para continuar resistindo
 
 

1. Uma onda de otimismo precipitado e perigoso domina, há várias semanas, o noticiário político e econômico. A tendência atual é considerar que a crise brasileira, e mesmo a primeira crise internacional do neoliberalismo, são episódios encerrados. Em nosso caso, o acordo com o Fundo Monetário teria restituído a credibilidade abalada no período em que o real despencou. E a desvalorização moderada da moeda seria, na verdade, um bem. Com o dinheiro nacional mais barato, seríamos capazes de ampliar as exportações, de colocar com mais facilidade nossos produtos num mercado global que continua a ser visto por muitos como única solução para modernizar a economia brasileira. A elevação dos preços das ações, o aparente controle da inflação e a queda dos preços do dólar seriam sinais de que estamos no rumo certo.

2. Infelizmente, não há base real por trás desta euforia. Na última quinta-feira, a pesquisa do Seade-Dieese sobre emprego na Grande São Paulo revelou que assustadores 19,9% da população economicamente ativa da maior metrópole do país estão sem ocupação. É um recorde absoluto. É o sinal mais evidente, além disso, de que a "recuperação" não expressa um processo de retomada do desenvolvimento. Ela traduz, ao contrário, a confiança dos mercados financeiros na capacidade do governo em continuar impondo ao conjunto da sociedade uma transferência brutal de riquezas em favor dos aplicadores na "ciranda". Por isso mesmo, trata-se de uma movimento precário. Paradoxalmente, o pessimismo voltará aos mercados assim que a sociedade emitir sinais de que não aceita novos sacrifícios. Uma votação desagradável ao governo, um arroubo de investigação autêntica na CPI dos bancos, um sinal de vida dos movimentos sociais – qualquer desses fatores pode ser suficiente para reverter o "entusiasmo" dos mercados.

3. Desde o início de março, a economia brasileira passou a ser regida pelo novo acordo firmado com o FMI. Pouco divulgado pela imprensa, é um documento cuja leitura provoca inevitavelmente mal-estar. Ela revela que a agenda econômica nacional passou a ser determinada, em seus mínimos detalhes, por organismos estrangeiros. O Palácio do Planalto se compromete, por exemplo, a arrecadar, com as privatizações, cerca de 70 bilhões de dólares, até 2001, mas também a anunciar "aumento nos preços domésticos de energia e outras tarifas públicas"; a apresentar ao Congresso uma nova Lei de Responsabilidade Fiscal, contrária à autonomia dos Estados e Municípios, mas também a reduzir "no equivalente a 15% do PIB, os gastos orçamentários federais com salários; a "fortalecer a independência operacional do Banco Central", mas também a "aumentar o IOF sobre empréstimos ao consumidor".

4. O objetivo básico do acordo é, no entanto, organizar um "ajuste fiscal" mais drástico que qualquer outro realizado anteriormente. O texto dos que saiu dos entendimentos não diz, mas diversos economistas chegaram a conclusões semelhantes sobre o significado deste "ajuste". Como a alta do dólar incidiu imediatamente tanto sobre a dívida externa quanto sobre parte significativa da dívida interna; e como as taxas de juros internas estão em patamares muito elevados, calcula-se que apenas a rolagem da dívida pública custará ao Estado brasileiro, em 1999, um pouco mais de 100 bilhões de dólares. Uma comparação simples basta para compreender a brutalidade do esforço necessario para fazer frente a este compromisso. O valor é o mesmo investido pela França e Inglaterra, num esforço de dez anos, para construir o que foi considerado durante algum tempo a "obra do século": o túnel sob o Canal da Mancha. Como não é possível arrecadar esta montanha de recursos apenas através de corte de verbas orçamentárias, o governo apela para expedientes como a eternização da CPMF, com alíquotas cada vez mais elevadas, a cobrança de contribuição previdenciária dos idosos, o confisco de até ¼ dos salários dos servidores públicos.

5. O efeito mais imediato do pagamento dos juros é a asfixia do Estado, que se torna incapaz de assegurar o avanço ou mesmo a manutenção dos serviços de infra-estrutura, a proteção social aos mais pobres, as atividades indispensáveis tanto à manutenção do bem-estar (Saúde e Segurança, por exemplo), quanto ao desenvolvimento futuro do país (como Educação, Ciência e Tecnolocia). Mesmo no ano passado, quando a dívida pública consumiu 40 bilhões de dólares – menos da metade dos gastos previstos para este ano – os desembolsos foram equivalentes a:

6. A dívida pública não atinge, porém, apenas o Estado e os que dependem diretamente de seus serviços. Ela é, também, um poderoso freio aos investimentos privados e uma ameaça permanente a grande maioria das empresas que não têm acesso ao crédito externo.

7. A explicação está na taxa de juros. Para alcançar uma contenção provisória da fuga de dólares, o governo elevou as taxas pagas pelo Banco Central a um patamar que hoje está em 34% -- pelo menos o triplo que em qualquer uma das mais de quarenta economias, de países ricos e "emergentes", cujo desempenho a revista britânica "The Economist" acompanha semanalmente. Como o Estado paga este índice a seus credores, sem submetê-los a nenhum tipo de risco, a tendência principal das empresas capitalizadas é adiar os investimentos produtivos, a canalizar todos os recursos disponíveis para a compra de papéis públicos, a frustrar expectativas de geração de negócios e empregos.

8. O juro acaba funcionando, finalmente, como um fortíssimo acelerador da concentração empresarial. Os 34% ao ano pagos pelo Estado transformam-se no piso para todas as demais taxas de juros. Mas como o sistema financeiro acostumou-se a praticar inúmeras ilegalidades contra seus clientes, as taxas cobradas das empresas que não têm acesso a crédito externo ultrapassam facilmente os 60%, no desconto de duplicatas, e mesmo os 200% ao ano, num empréstimo vinculado a cheque especial, por exemplo. Enquanto isso, as maiores corporações, especialmente as multinacionais, tomam dinheiro no exterior às taxas internacionais de 8% ao ano. É evidente que, em condições de competição tão desiguais, as empresas sem acesso ao crédito externo tornam-se rapidamente inviáveis. Em alguns setores, como a Agricultura, há casos concretos de multinacionais que assumiram o papel dos bancos. Oferecem crédito, sob a forma de fornecimento antecipado de sementes ou defensivos, por exemplo. Mas condicionam a "oferta" a contratos que obrigam o agricultor a lhes vender compulsoriamente a produção, a preços muito abaixo dos praticados nos mercados internacionais.

9. Numa conjuntura assim, marcada por desemprego, desmonte dos sistemas de proteção social, queda dos investimentos e concentração empresarial extrema, a "estabilidade" financeira que o acordo com o FMI persegue só poderá ser alcançada às custas de enormes sacrifícios no presente, e do desmonte das instituições que permitiriam ao país planejar seu futuro.

10. Mas se esse conjunto de fenômenos, social e economicamente muito perversos, tem sido apresentado como sinal do suposto "avanço" do país, é porque estamos diante de algo mais grave. Por considerar-se impotente diante da crise, parte da elite brasileira acomodou-se a ela. É o caso, por exemplo, dos industriais que vendem suas empresas a concorrentes estrangeiros, aplicam o dinheiro em títulos públicos e passam a viver dos juros generosos que toda a sociedade é forçada a pagar.

11. Numa verdadeira democracia, seria impossível manter uma ordem tão injusta por muito tempo. Por isso, uma das tendências mais dramáticas dos últimos anos é o progressivo turvamento do ambiente político. Apresentado a princípio como intelectual brilhante e ético, que seria capaz de modernizar a vida nacional, o atual presidente logo adaptou-se às práticas fisiológicas que marcam há tanto tempo nossas instituições. Já durante a votação, no Congresso, da emenda constitucional que permitiu a reeleição, foi impossível esconder o recurso sistemático à compra de votos. Mais ou menos ao mesmo tempo, vieram o uso abusivo das Medidas Provisórias, a progressiva transformação do Congresso Nacional em poder decorativo, a obstrução sistemática das CPIs que procuravam investigar sinais de atos ilícitos no governo.

12. O passo mais recente desta escalada é o ataque ao Poder Judiciário – o único que ainda resiste, de alguma maneira, ao rolo compressor do neoliberalismo contra as conquistas alcançadas pela cidadania na Constituição de 1988. Já há alguns anos, e a pretexto do combate a supostos "privilégios", têm sido adotada uma série de medidas que visa desprestigiar os juízes perante a sociedade e reduzir sua própria auto-estima. Congelamento prolongado de vencimentos, ameaça de redução das aposentadorias, insinuações cada vez mais fortes sobre a adoção geral da súmula vinculante – tudo isso é coroado agora com a perseguição movida por um personagem a quem falta autoridade para falar em democracia, mas que certamente entende muito de privilégios...

13. Há muitos anos, as entidades que representam os juízes denunciam e combatem o nepotismo e as outras práticas viciadas que prejudicam o Judiciário. Também defendem uma reforma democrática do poder. Mas as mudanças que queremos visam aproximar a Justiça da sociedade, não encabrestá-la ao Executivo. Não devemos nos acovardar. Estamos dispostos a discutir em profundidade, por exemplo a mudança na composição do Supremo Tribunal Federal, hoje tão dependente dos critérios políticos do presidente da República; a instituição de mecanismos legítimos e competentes de controle externo; a identificação e punição de eventuais práticas ilícitas.

14. Mas o Judiciário não pode curvar-se, nem ficar calado, diante daqueles que estão promovendo o desmanche do país. Nossa resposta aos que querem liquidar tanto os direitos sociais quanto o poder encarregado de protegê-los deve ser a dos que não cedem. Se assim fizermos, estaremos amparados nos próprios princípios constitucionais. Que tal lembrar, por exemplo, o artigo 3º da Carta? Ele elenca, entre os "objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil", os de "construir uma sociedade livre, justa e solidária", "garantir o desenvolvimento nacional", "erradicar a pobreza e a marginalização" e "reduzir as desigualdades sociais e regionais". Num instante em que o Executivo aplica uma política que o afasta até mesmo de tais obrigações elementares, é compreensível que ataque a Justiça; e indispensável que a sociedade brasileira tenha nela, tenha em nós, o apoio de que necessita para continuar resistindo.
 
 

Retirado de: http://www.ibdb.org.br/online/atual230499.htm