A IMPOSSIBILIDADE DE PRISÃO DO DEPOSITÁRIO
INFIEL,
O PACTO DE SÃO JOSÉ
E A DECISÃO DO SUPREMO
TRIBUNAL FEDERAL
LUIZ ALBERTO DAVID ARAÚJO
PROFESSOR DA PUC-SP, Faculdade de Direito de Bauru e do
Curso
Preparatório para Direito
Muito se tem discutido sobre o posicionamento do "Tratado
Internacional", especialmente o que traz regra de direitos individuais,
na
ordem jurídica. Não vamos, neste trabalho, cuidar
da forma de
incorporação da ordem jurídica quanto ao
seu aspecto formal. As teorias
monistas e dualistas não serão objeto de análise
neste trabalho.1 O tema
deste estudo não se refere à forma de ingresso
(entendida como processo
de integração), mas apenas em relação
à hierarquia normativa dos tratados
veiculadores de direitos individuais. Determinada a hierarquia
normativa,
veremos os reflexos de tal posição em relação
ao "Pacto de São José da
Costa Rica" que proíbe a prisão do depositário
infiel.
Há autores que entendem que o "Tratado Internacional",
por força do art.
5º, § 2º, da Constituição de 1988,
ingressaria (depois de formalmente em
ratificado) como norma constitucional, mantendo, portanto, a
situação de
uma regra pétrea, já que faria incidir a imutabilidade
do § 4º, do art. 60, IV,
da Lei Maior. Assim disciplina a regra que permitiria o ingresso
e a
integração ao plano constitucional: "Art. 5º:
… § 2º: Os direitos e
garantias expressos nesta Constituição não
excluem outros decorrentes do
regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados
internacionais em
que a República Federativa do Brasil seja parte."
Dentre os autores que garantem posicionamento constitucional aos
tratados que versem direitos fundamentais, podemos citar Flávia
Piovesan,
que afirma: "A Constituição assume expressamente
o conteúdo
constitucional dos direitos constantes dos tratados internacionais
dos quais
o Brasil é parte. Ainda que estes direitos não
sejam enunciados sob a
forma de normas constitucionais, mas sob a forma de tratados
internacionais, a Constituição lhes confere o valor
jurídico de norma
constitucional, já que preenchem e complementam o catálogo
de direitos
fundamentais previsto pelo texto constitucional". 2
No mesmo sentido, Antonio Carlos Malheiros, brilhante juiz do
1º Tribunal
de Alçada de São Paulo, assim concluiu: "Diante
de tais ensinamentos,
pode-se concluir, com razoável tranqüilidade, que
os princípios emanados
nos tratados internacionais, que o Brasil tenha ratificado, equivalem-se
às
próprias normas constitucionais." 3
Não concordamos com tal posição, data venia.
Entendemos que os direitos
fundamentais trazidos pelos tratados internacionais ou já
estão
incorporados ao texto constitucional, sendo apenas um desdobramento
dos
direitos elencados no art. 5º, muitas vezes de forma genérica,
como o
direito à vida, por exemplo, ou, se não tem previsão
(mesmo que genérica),
ingressam no sistema com estado de Lei ordinária.
A primeira hipótese (desdobramento de direito já
garantido) se resolve por
interpretação principiológica. Basta que
o intérprete atente aos princípios
elencados no Título I, da CF, para que possa retirar do
"Tratado
Internacional", formalmente em ordem, todo o seu conteúdo
constitucional.
Nesse caso, o "Tratado Internacional" não inova a ordem
jurídica como
desdobramento do comando constitucional já existente.
Portanto, não se
caracteriza como norma constitucional, mas como Lei ordinária
que
garante um direito já constitucionalmente assegurado.
Podemos afirmar
que, na realidade, a norma jurídica apenas veio explicitar
o direito já
garantido.
No segundo caso, (inexistência de previsão genérica
no sistema
constitucional brasileiro), o "Tratado Internacional" também
ingressa na
via ordinária, modificando o regramento ordinário
preexistente, caso com
ele conflite. De qualquer forma, não entendemos que haja
ingresso no
Tratado no plano da norma constitucional. Pensar assim seria
permitir que
a Constituição Federal, que é rígida,
pudesse ser modificada pela
aprovação de decretos legislativos, já que
tais espécies normativas é que
seriam as necessárias para a aprovação e
ingresso do Tratado.
Se o constituinte teve tanto cuidado no descrever do processo
de emenda
constitucional, exigindo quorum qualificado e dois turnos de
votação (§ 2º,
do art. 60), iniciativa especial (incisos I, II e III do art.
60), não se pode
permitir que a Constituição seja alterada por um
decreto legislativo,
espécie normativa prevista no art. 59, VI, que exige um
quorum singelo de
aprovação (art. 47).
Portanto, entender que o decreto legislativo pode servir de veículo
para o
ingresso de "Tratado Internacional" e que tal Tratado ingressa
na posição
de norma constitucional, seria admitir que há possibilidade
de alteração da
Constituição Federal pelo processo legislativo
do decreto legislativo, ou
seja, com a aprovação da maioria simples (art.
47). Tal concepção fere o
sistema constitucional que exige, para sua alteração,
o processo especial e
difícil previsto no art. 60. Não há espaço
na interpretação para que se
chegue à conclusão de que a Constituição
Federal possa ser alterada por
maioria simples (quorum previsto no art. 47 para a aprovação
do decreto
legislativo – art. 49, I).
Desta maneira, por entendermos que a Constituição
Federal é rígida,
tomamos a liberdade de refutar a posição daqueles
que entendem que o
Tratado que veiculasse Direito fundamental tornar-se-ia norma
constitucional.
Partindo dessa premissa, que ou o Tratado já está
contemplado na
Constituição (sendo dela um desdobramento) ou que
é norma nova (sem
tutela constitucional) e entendendo que ingressa no plano ordinário,
passemos a decisão do E. STF.
Assim segue ementado o v. aresto: "HC 75.925. Relator Min. Maurício
Corrêa. Ementa: Habeas Corpus. Prisão civil de depositário
infiel.
Alienação fiduciária.
1. A Constituição proíbe a prisão
civil por dívida, mas não a do depositário
que se furta à entrega de bem sobre o qual tem a posse
imediata, seja o
depósito voluntário ou legal (art. 5º, LXVII).
2. Os arts. 66 da Lei 4.728-65 e 4º do Dec.-Lei 911-69, definem
o devedor
alienante fiduciário como depositário, porque o
domínio e a posse direta do
bem continuam em poder do proprietário fiduciário
do credor, em face da
natureza do contrato.
3. A prisão de quem foi declarado, por decisão judicial,
como depositário
infiel é inconstitucional, seja quanto ao depósito
regulamentado no Código
Civil como no caso de alienação protegida pela
cláusula fiduciária. 4. Os
compromissos assumidos pelo Brasil em "Tratado Internacional"
de que
seja parte (§ 2º, do art. 5º da Constituição)
não minimizam o conceito de
soberania do Estado-povo na elaboração de sua constituição;
por esta
razão, o art. 7º, n. 7, do "Pacto de São José
da Costa Rica" ("ninguém
deve ser detido por dívida", "este princípio não
limita os mandados de
autoridade judiciária competente expedidos em virtude
de inadimplemento
de obrigação alimentar") deve ser interpretado
com limitações impostas
pelo art. 5º, LXVV, da Constituição. Precedentes.
5. Habeas Corpus indefiro. 4
A decisão do Pretório Excelso, portanto, não
aplicou o "Tratado
Internacional" que ingressou regularmente no sistema. Afirma,
no item
quarto da ementa, que o tratado não poderia alterar a
soberania do
Estado-povo brasileiro. Vejamos algumas considerações
sobre o tema.
O direito está claro. O art. 5º da CF, em seu inciso
LXVII assim menciona:
"Art. 5º. LXVII - não haverá prisão
civil por dívida, salvo o do responsável
pelo inadimplemento voluntário e inescusável de
obrigação alimentícia e a
do depositário infiel."
O texto constitucional não apresenta qualquer dúvida.
Vejamos, no
entanto, a localização do dispositivo. Trata-se
de norma de Direito
individual, protetora da liberdade do cidadão. O art.
5º, como sabemos,
está alocado no Título II, que se denomina "Dos
direitos e Garantias
Fundamentais" e faz parte do Capítulo I (Dos direitos
e deveres
individuais e coletivos).
Portanto, a regra está a garantir a liberdade individual,
o direito de ir e vir,
a liberdade de locomoção do indivíduo. Deixa
claro que a prisão civil por
dívida só pode ocorrer em duas hipóteses:
inadimplemento inescusável de
obrigação alimentar e depositário infiel.
Tirante essas duas hipóteses, não
se pode falar em prisão civil por dívida. O texto
constitucional, portanto,
garantindo a liberdade individual (pois o dispositivo está
localizado dentre
os direitos individuais e como tal deve ser interpretado), tratou
de permitir
ao legislador infraconstitucional criar apenas duas hipóteses
de prisão civil
por dívida. Mas o texto constitucional determina a prisão,
imediata e
direta, daquele que não cumpriu a obrigação
alimentar ou daquele que não
honrou o contrato de depósito?
A resposta só pode ser negativa.
A Lei Maior autoriza o legislador infraconstitucional criar hipóteses
que já
estão autorizadas pelo constituinte. A Constitui-ção
não determinou a
prisão de todos os depositários infiéis
que poderiam ser presos a partir de
sua singela promulgação em 5.10.1988.
A Constituição Federal trouxe a hipótese
de autorização. Deixou que o
legislador ordinário criasse hipóteses de prisão
civil por dívida, dentro das
hipóteses determinadas na Carta Magna. Portanto, na Constituição
Federal há hipótese de autorização.
Na lei ordinária, hipótese de criação.
Imaginemos uma hipótese de inexistência de Lei ordinária
(ou diploma
legal equivalente) que autorizasse a prisão do depositário
infiel e surgisse
a Constituição Federal de 1988, no dia 05.10.1988.
Seria, sem legislação
integrativa, possível prender alguém com fundamento
no depósito
descumprido? A resposta deve ser negativa, supostamente. Havia
hipótese
constitucional de autorização, mas não da
Lei ordinária de autorização.
A Constituição Federal não autoriza a prisão.
Autoriza que legislador
infraconstitucional crie hipóteses de prisão para
os dois casos
mencionados. Não se pode perder de vista que a norma é
de garantia da
liberdade individual, produto de evolução secular
dos direitos individuais.
Portanto, sem a norma infraconstitucional (Lei ordinária
ou decreto-lei, no
caso), não se pode falar em prisão de depositário
infiel. A Constituição
autoriza o legislador infraconstitucional a criar a hipótese,
excepcional ao
Direito de liberdade de ir e vir.
A legislação preexistente a 1988, constante do art.
66 da Lei 4.728/65 e 4º
do Dec.-Lei 911/69 foram recebidas pelo sistema de 1988? Certamente
que
foram recebidas. Havia possibilidade, diante do permissivo constitucional,
de se prender por dívida (desde que fosse inadimplemento
inescusável de
obrigação alimentar e depositário infiel).
Seria possível a Lei criar outras
hipóteses? A resposta é negativa, já que
apenas duas hipóteses foram
autorizadas pela regra garantidora da liberdade individual do
inciso LXVII
do art. 5º, da CF.
Desta maneira, estamos a visualizar que a prisão vem da
Lei e não da
Constituição. Esta apenas autoriza o legislador
ordinário a criar a hipótese.
Mas que efeito produziu o "Tratado Internacional", na norma citada
que
repetiremos (art. 7º, item 7): "7. Ninguém deve ser
detido por dívidas. Este
princípio não limita os mandados de autoridade
judiciária competente
expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação
alimentar."
O "Tratado Internacional" foi objeto de decreto legislativo, integrando,
portanto, a ordem jurídica brasileira.
Por esse diploma legal, ficou revogada a legislação
ordinária (não houve,
como visto, qualquer alteração constitucional)
que autoriza a prisão do
depositário infiel e continua autorizando.
O "Tratado Internacional" permitiu apenas uma hipótese
de prisão civil,
ou seja, a prisão do inadimplente de obrigação
alimentar.
A regra internacional, incorporada ao sistema legal nacional,
operou
alteração da Lei criadora da prisão civil
do depositário infiel, não no inciso
LXVII, do art. 5º, que, com é cediço, permaneceu
intacto e nem poderia ser
ameaçado pelo "Tratado Internacional".
A partir do entendimento de que a Constituição Federal
autorizou a
criação, pelo legislador infraconstitucional da
hipótese de prisão,
entende-se que o Tratado só poderia ter agido sobre a
Lei ordinária
(hipótese de autorização) e nunca sobre
a Constituição Federal (hipótese
de autorização).
Portanto, não há que se falar em ferimento à
soberania do Estado
brasileiro, que pode, a qualquer momento, restabelecer, por Lei
ordinária,
a possibilidade legislativa ordinária.
Há, no caso, revogação de lei ordinária
(e do decreto-lei mencionado), e
não incidência sobre a Constituição.
Houve revogação da hipótese de
criação e não da hipótese de autorização.
A primeira, por lei ordinária, esta
por decisão constitucional.
O Tratado alterou a regra de criação, mas não
incidiu sobre a hipótese de
autorização, que poderá ser reeditada pela
legislação ordinária. Apenas
para ilustrar, vamos ver como o Tratado, no ponto em que fala
da prisão do
inadimplente de obrigação alimentar é inconstitucional.
Partindo do mesmo pressuposto, a Constituição só
permite a prisão do
inadimplente de obrigação inescusável. Portanto,
não é qualquer obrigação
alimentar inadimplida que gera a prisão. Apenas a inescusável.
O Tratado, por seu lado, autoriza que qualquer inadimplemento
de
obrigação alimentar gere a prisão civil
por dívida.
Ora, o texto constitucional é mais liberal (protege mais
a liberdade
individual) que o próprio Tratado que, se incidisse sobre
a Lei ordinária,
geraria uma inconstitucionalidade, trazendo hipótese mais
gravosa para o
indivíduo do que a constitucional. Portanto, no caso do
inadimplemento
alimentar, o Tratado não foi recebido, por inconstitucional,
devendo ser
interpretado como sendo a obrigação inescusável.
Em resumo:
a) os tratados ingressam pela via ordinária no sistema;
b) os tratados de direitos humanos, veiculadores de direitos fundamentais,
previstos no § 2º, do art. 5º, não ingressam
no plano constitucional, mas no
plano infraconstitucional;
c) o "Pacto de São José" foi ratificado regularmente
pelo Brasil,
ingressando na ordem jurídica como Lei ordinária;
d) a Constituição Federal autoriza que o legislador
infraconstitucional crie
hipóteses legais de prisão de depositário
infiel e inadimplemento
inescusável de obrigação alimentar;
e) há, portanto, hipótese de autorização
(na CF, art. 5º, LXVII) e hipótese
de criação (art. 66 da Lei 4.728/65 e 4º do
Dec.-Lei 911/69). Só a
ocorrência da hipótese de autorização
não dá ensejo à prisão. O Direito de
prender nasce com a hipótese de criação
(e não apenas de autorização);
f) o "Pacto de São José", que proibiu a prisão
do depositário infiel incidiu
sobre a hipótese de criação (Lei ordinária),
revogando-a, não sobre a
hipótese de autorização (norma constitucional),
já que demandaria o
procedimento de emenda constitucional, mesmo assim sujeito ao
crivo da
cláusula pétrea (art. 60, § 4º, IV).
g) sendo assim, a prisão do depositário infiel passou
a ser ilegal (e não
inconstitucional), por inexistência de norma de criação,
revogada pelo
"Pacto de São José", decreto-legislativo que fez
ingressar a modificação
da hipótese de criação.
NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
PIOVESAN, Flavia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional
Internacional, Max Limonad, São Paulo, 1996.
Instrumentos Internacionais de Proteção dos Direitos
Humanos,
Procuradoria Geral do Estado, Centro de Estudos, Série
Documentos nº
14, São Paulo. 1996.
Revista Especial do Tribunal Regional Federal da 3ª Região
– Seminário;
Incorporação dos "Tratados Internacionais de Proteção
dos Direitos
Humanos no Direito Brasileiro", Imprensa Oficial do Estado, São
Paulo,
1997.
1. Sobre a matéria, a clara lição de Pedro
Bohomoletz de Abreu Dallari, in
"Normas internacionais de direitos humanos e a jurisdição
nacional",
Revista Especial do Tribunal Regional Federal da 3ª Região,
São Paulo,
1997, pp. 25 a 38.
2. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional,
Max
Limonad, São Paulo, 1996, p. 85.
3. "A prisão civil e os tratados internacionais", in Revista
Especial do
Tribunal Regional Federal da 3ª Região, Seminário:
Incorporação dos
"Tratados Internacionais de Proteção dos Direitos
Humanos no Direito
Brasileiro. São Paulo, 1997, p. 51.
4. In Boletim Informativo STF n. 96, pp. 9-10, 17.12.97
Extraído de : www.direitobancario.com.br