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Cartão de crédito: abusividade da cláusula mandato
Alexandre David Malfatti*


 
 
  1. INTRODUÇÃO AO TEMA.
O contrato de utilização de cartão de crédito celebrado entre a sociedade administradora de cartão de crédito e o usuário, como regra, possibilita a utilização do cartão de crédito para a aquisição de mercadorias e de serviços em locais credenciados e o parcelamento do saldo devedor mensal.

No presente estudo, interessa o cartão de crédito não bancário, definido por FRAN MARTINS(1) e ARAMY DOPJSTELLES DA LUZ2 como "cartão de crédito imperfeito", que é emitido por uma sociedade não bancaria e que necessita de uma fonte distinta de recursos para eventual financiamento do saldo devedor mensal.

Como não é uma instituição financeira, para viabilizar ao usuário o parcelamento do saldo devedor mensal, a sociedade administradora faz inserir no contrato de adesão e de utilização do sistema de cartão de crédito uma cláusula mandato.

Trata-se de uma cláusula que dispõe sobre a obtenção, pela sociedade administradora, como mandatária do usuário, de recursos para financiamento do saldo devedor não liquidado pelo último. A sociedade administradora é constituída procuradora do usuário com poderes especiais, para em nome dele e por sua conta, negociar, obter crédito junto às instituições financeiras, assinar contratos de financiamento, abrir conta e movimentar os valores financiados, acertar prazos, juros e encargos da dívida, repactuar taxas de juros, emitir títulos representativos do débito perante instituições financeiras e substabelecer no todo ou em parte o mandato outorgado.

Além disso, os contratos usualmente fazem prever que, por força do mandato, a sociedade administradora fará jus a uma remuneração conforme parâmetros do mercado (sem explicitar valor ou critérios de apuração).

II - APLICAÇÃO DO CÓDIGO DE PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR Á RELAÇÃO JURÍDICA ENTRE A SOCIEDADE ADMINISTRADORA DE CARTÃO DE CRÉDITO E O USUÁRIO.

As relações entre as sociedades administradoras de cartões de crédito e os usuários (clientes) configuram relações de consumo, aplicando-se a elas, por isso, as disposições da Lei n0 8.078, de 11/9/90 (Código de Proteção do Consumidor).

Como salientado por NELSON NERY JÚNIOR~3~, as relações de consumo podem ser resultado de operações de crédito, tais como mútuo, desconto de títulos (duplicatas ou notas promissórias), financiamento, abertura de crédito em conta corrente e cartão de crédito. Frisa o eminente professor que "...se o devedor destinar o crédito para sua utilidade pessoal, como destinatário final, haverá relação jurídica de consumo, sujeita ao regime do

CDC...".

Mais especificamente no contrato de cartão de, crédito, define NELSON NERY JUNIOR que "...o banco ou empresa administradora serviços, pagando a respectiva fatura em dia determinado para o vencimento da prestação. A finalidade é de celebrar relação jurídica de consumo, portanto...

III - Á ABUSIVIDÁDE DA CLÁUSULA MANDATO.

A análise da disposição contratual relativa ao mandato instituído em favor da sociedade administradora impõe algumas ponderações.

No mandato instituído em favor da sociedade administradora não há indicação sobre quais instituições financeiras serão contratadas pela sociedade administradora. Também não há limites acerca das taxas de juros e encargos a serem contratados pela última. E, ainda, não se informa qual será o valor da "remuneração" da sociedade administradora pela garantia prestada junto às instituições financeiras.

Diante disso, é de se perguntar: qual a informação do usuário sobre a escolha das instituições financeiras contratadas e, principalmente, se a instituição escolhida praticava a menor taxa de juros do mercado? Qual a informação do usuário sobre as taxas de juros a serem cobradas, antes de optar pelo financiamento das compras? Qual a informação ao usuário acerca do valor da "remuneração" devida à sociedade administradora, na opção pelo financiamento das compras?

As ponderações e as indagações formuladas deixam transparecer o excessivo favorecimento da sociedade administradora em detrimento do usuário, prevalecendo sempre os interesses da primeira.

Primeiro, o usuário não toma conhecimento sobre qualquer informação acerca da obtenção de recursos pela sociedade administradora junto às instituições bancárias para financiamento das compras não liquidadas, nos vencimentos das faturas mensais.

O usuário, pela disposição contratual de utilização do cartão de crédito, é compelido a contrair um empréstimo bancário junto a uma instituição financeira de livre escolha sem qualquer limitação negocial da sociedade administradora.

Neste passo, há uma cristalina ofensa ao inciso VIII do artigo 51 da Lei n0 8.078/90, configurando a nulidade da cláusula mandato vez que impõe "...representante para concluir ou realizar outro negócio pelo consumidor...".

Nada impediria, sublinho, que uma sociedade administradora colocasse à disposição do usuário recursos próprios para viabilizar o parcelamento do saldo devedor mensal. Logicamente, nesta hipótese, a sociedade administradora poderia firmar um contrato de mútuo, todavia sem cobrar os encargos financeiros reservados às instituições financeiras (Súmula 596 do Supremo Tribunal Federal).

Segundo, o usuário não é adequada e previamente informado sobre os encargos a serem cobrados no parcelamento do saldo devedor mensal.

Indubitavelmente, como salientado pelo eminente jurista WALDIRIO BULGARELLI~4~, quando a emissão do cartão de crédito parte de uma sociedade não bancária os custos de operação são aumentados (contrariando uma tendência internacional de oposta direção) e, pior ainda, os juros e encargos situam-se em elevados patamares.

Em qualquer fase da economia brasileira, seja com uma inflação controlada ou não, sempre constituiu fato notório a acentuada diferença entre os juros e encargos cobrados nas operações bancárias e aqueles, cobrados nas operações de parcelamento do saldo devedor mensal do cartão de crédito.

A diferença entre os juros e encargos praticados pelos bancos e pelas sociedades administradoras de cartão de crédito quase sempre ultrapassa o patamar de 100% (cem por cento); ou seja, por exemplo, enquanto no empréstimo bancário o mutuário pagará juros e encargos mensais de 5% (cinco por cento), no parcelamento do saldo devedor mensal do cartão de crédito o usuário arcará com juros e encargos mensais da ordem de 10% (dez por cento). Talvez aqui esteja a lógica do sistema!

O artigo 52 da Lei n0 8.078/90 impôs ao fornecedor o dever de informar o consumidor, prévia e adequadamente, sobre o montante dos juros (inclusive a taxa anual), os acréscimos previstos, o número e da periodicidade das prestações e a

soma total a pagar com ou sem financiamento. As sociedades administradoras não respeitam aludida disposição legal. Quando muito, se limitam a informar a "taxa de juros" a ser praticada no mês posterior ao do vencimento da fatura.

Na Argentina, o artigo 36 da Lei n0 24.240 (sancionada em 22/9/ 93 e regulamentada pelo Decreto n01.798 de 13/10/94) também cuidou expressamente das operações de crédito para aquisição de mercadorias e de serviços, impondo o detalhamento contratual do preço, do saldo devedor, dos juros cobrados, dos juros anuais, a forma de pagamento (ou de amortização) e os gastos extras (ou adicionais), sob pena de nulidade. A lei argentina delegou ao Banco Central da República Argentina a adoção de medidas que possibilitassem o cumprimento do indigitado dispositivo. Ao comentar o dispositivo da lei argentina, JUAN M. FARINA~5~ destacou a submissão das "tarjetas de crédito" àquela disposição legal e à importância das novas exigências como forma de coibir os abusos contratuais.

Do mesmo modo, no Brasil não existe, como vimos, fundamento jurídico para que as sociedades administradoras deixem de informar o usuário (consumidor) acerca dos juros (inclusive anuais), dos encargos, da forma de parcelamento, das

diferenças entre os valores dos pagamentos nas diferentes opções (à vista ou parcelado), etc.

E terceiro, não há nas faturas de cobrança a informação sobre o que faz parte dos juros contratados e o que representa a "remuneração" da sociedade administradora.

Assim, dentro dos encargos totais cobrados ao mês do usuário pelo parcelamento do saldo devedor, não se sabe qual parte se refere aos juros do financiamento bancário (contratado por força do mandato) e qual parte se refere à "remuneração" da sociedade administradora. No mesmo exemplo anteriormente aludido, cobrados ao mês 10% (dez por cento) de juros e encargos do usuário, não se identificam qual o valor dos juros bancários (oriundos do empréstimo tomado no sistema financeiro) e qual o valor da remuneração da sociedade administradora.

O preço da prestação de serviços — realização e garantia do empréstimo bancário em nome do usuário — é unilateralmente estipulado pela sociedade administradora, incidindo aqui outra causa de nulidade da cláusula mandato a teor do artigo 51, inciso X da Lei n0 8.078/90.

No panorama atual da sociedade brasileira, em que se busca ampliar as formas de exercício da cidadania, a preocupação do Estado com a proteção ao consumidor foi elevada à garantia constitucional (artigo 5º, inciso XXXII da C.F.). O Código de Proteção do Consumidor em várias passagens consagrou a defesa do consumidor contra práticas abusivas dos comerciantes, fabricantes e prestadores de serviços:

artigos 60, incisos II, III e V, 39, incisos III, V e X, 42,47, 51, incisos IV, VIII e X da Lei n0 8.078/90.

Importante sublinhar que o Egrégio Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento sobre a abusividade da cláusula mandato para emissão de cambiais, consoante enunciado da Súmula 60: "É nula a obrigação cambial assumida por procurador do mutuário vinculado ao mutuante, no exclusivo interesse deste."

Esta posição do Superior Tribunal de Justiça fundamentou-se no evidente conflito de interesses existentes entre o consumidor (mandante) e o fornecedor ou pessoa a ele ligada (mandatário).

Na obtenção de recursos mediante empréstimos bancários efetivados pela sociedade administradora em nome do usuário por força de cláusula mandato, a situação é idêntica, pois explícito o conflito de interesses entre as partes. A mandatária (sociedade administradora de cartão de crédito) executará um mandato cujas conseqüências influenciarão na relação jurídica e na relação econômica (remuneração) mantida com o mandante (usuário).

A propósito, colhem-se as manifestações dos nobres advogados PRISCILA M. P. CORREA DA FONSECA~6~ e ALBERTO DOAMARAL JÚ NI0R~7~ que, na análise da cláusula mandato inserida no contrato de utilização de cartão de crédito, também a qualificam como abusiva.

A professora PRISCILA M. P.CORRÊA DA FONSECA destacou com felicidade ímpar que "...o que se denota pior e mais grave, sem dúvida, é o que se acha subjacente a tal indiferença ao Código: um rematado desrespeito ao ordenamento jurídico e, acima de tudo, um desprezo absoluto pelo consumidor....

Não existe lei a regulamentar especificamente os cartões de crédito e "...as relações jurídicas relativas ao funcionamento do sistema e do próprio instituto disciplinam-se pelo princípio da autonomia da vontade, através de contratos de adesão...", como anotado por FAUSTO PEREIRA DE LACERDA FILHO~8~.

Se o procedimento de utilização — simples e dinâmico — dos cartões de crédito foi concebido e regulamentado pelas próprias sociedades administradoras, não existe razão lógica ou moral para que elas não assumam os riscos do sistema. A inadimplência é um deles. Aliás, toda atividade empresarial envolve riscos (o que é elementar em economia e negócios) e as sociedades administradoras de cartões de crédito não constituem casta privilegiada da sociedade.

Não se desconhece que a sociedade atual se notabilizou pela massificação dos produtos e dos serviços e que o contrato de adesão se tornou a forma — quase única — de instrumentação dos negócios. O contrato de adesão ensejou a agilização e a padronização dos negócios empresariais, minimizando custos e aumentando a segurança jurídica. Entretanto, a nova forma de contratação traduz uma quase total impossibilidade do consumidor negociar as cláusulas contratuais; ou se aceita o contrato de adesão ou não se adquire o produto ou o serviço.

Nesse panorama em que a utilização do contrato de adesão surge como forma obrigatória — ágil e dinâmica — de viabilizar os negócios em massa, a busca do equilíbrio contratual pauta-se em dois princípios: a boa-fé e a justiça contratual.

Tratando especificamente dos princípios da boa-fé e da justiça contratual, a ilustre advogada RENATA MANDELBAUM~9~ destacou que "...como princípio contratual, a boa-fé objetiva é o dever de agir de acordo com os padrões socialmente determinados e reconhecidos; visando garantir segurança...", enquanto a justiça contratual resulta do ". ..restabelecimento do equilíbrio contratual, um efetivo equilíbrio entre os direitos e obrigações, no que diz respeito ao presente trabalho, entre fornecedores e consumidores...".

O equilíbrio contratual entre a sociedade administradora de cartão de crédito e o consumidor (usuário) está a exigir a eliminação das cláusulas abusivas, dentre elas a cláusula mandato.

IV - CONCLUSÃO.

Em resumo, por haver exagerado favorecimento da sociedade administradora em prejuízo do usuário, obrigando o consumidor a contratar empréstimos bancários sem qualquer informação ou limitação sobre as taxas praticadas e possibilitando a unilateral estipulação da remuneração da sociedade administradora, entendo que a cláusula mandato inserida no contrato de utilização de cartão de crédito é ilegal.

BIBLIOGRAFIA

(1) FRAN MARTINS; "Contratos de Obrigações Comerciais", Forense, 7ª ed., 1984, págs. 602/611.

(2) ARAMY DORNELLES DA LUZ; "Negócios Jurídicos Bancários", RT, 1996, pág. 222.

(3) NELSON NERY JÚNIOR; "Código Brasileiro de Defesa do Consumidor", Forense Universitária, 1991, pág. 306.

(4) WALDIRIO BULGARELLI; "Contratos Mercantis", Atlas, 1987, 4ª edição, pág. 622.

(5) JUAN M. FARINA; "Defensa dei consumidor y dei usuário", Astrea, 1995, págs. 265/280)

(6) PRISCILA M. P. CORREA DA FONSECA; "Cartão de Crédito - Cláusulas Abusivas".

(7) ALBERTO DOAMARAL JÚNIOR;

"A abusividade da cláusula mandato nos contratos financeiros, bancários e de cartões de crédito", in RT

7 19/07.

(8) FAUSTO PEREIRA DE LACERDA FILHO; "Cartões de Crédito", Juruá, 1990, págs. 124/125.

(9) RENATA MANDELBAUM; "Contratos de Adesão e Contratos de Consumo", RT, 1996, pág. 244.

Retirado de: www.apamagis.com