® InfoJur.ccj.ufsc.br

O Sigilo do Cadastro de Clientes dos Provedores de Acesso à Internet
            (Artigo publicado na Revista da Associação Paulista do Ministério Público do Estado de São Paulo)

      Carlos Daniel Vaz de Lima Jr.
        Promotor de Justiça Criminal em São Paulo
       Diretor de Informática da APMP

                 O sol estava quase nascendo quando uma série de fotos eróticas de crianças começou a ser postada na USENET no grupo alt.binaries.pictures.erotica.pre-teen . Era evidente a ocorrência do crime previsto no artigo 241 do Estatuto da Criança e do Adolescente e alguma coisa precisava ser feita. Olhando bem de perto cada artigo postado foi possível encontrar no código de origem os elemento necessários a comprovação da materialidade delitiva e bons indícios de autoria. Entretanto, para que esses indícios pudessem ser melhor investigados era necessária a cooperação do provedor de acesso a Internet cujo equipamento foi usado na postagem dos artigos ilícitos. O provedor deveria fornecer os dados cadastrais de um determinado usuário. Imediatamente vieram à discussão temas como "garantia constitucional da privacidade e transmissão de dados", "necessidade de requisição judicial", "natureza jurídica do provedor de acesso a Internet", "serviços de telecomunicações" e "serviço de valor adicionado". Ao apurarmos a autoria delitiva de "crimes de computador" é necessária a análise dos dados constantes dos cadastros de clientes dos provedores de acesso à Internet. Isto porque superada a fase da comprovação da materialidade a identidade do agente deve ser esclarecida de forma inequívoca, e somente o provedor de acesso é quem pode informar com segurança qual cadastro de usuário foi utilizado para estabelecer uma conexão num determinado terminal na data e hora do fato criminoso.

                 Para decidirmos a melhor forma de requisição desta informação devemos discutir a natureza jurídica desse cadastro para podermos conhecer eventuais barreiras legais ao fornecimento de seus dados.

                 Os provedores de acesso à Internet classificam-se como sendo "serviço de valor adicionado", ou seja, é a atividade que acrescenta, a um serviço de telecomunicações que lhe dá suporte, e com o qual não se confunde, novas utilidades relacionadas ao acesso, armazenamento, apresentação, movimentação ou recuperação de informações.

                 Por serem uma atividade comercial de natureza privada, este serviço de valor adicionado não constitui serviço de telecomunicações, e, assim o provedor classifica-se como pessoa jurídica de direito privado com os direitos e deveres inerentes a essa condição.

                 É a esta conclusão que nos leva a Lei n.º 9.472, de 16 de julho de 1997, publicada no DOU de 17 de julho de 1997, que dispõe sobre a organização dos serviços de telecomunicações. A distinção legal entre "serviço de valor adicionado" e "serviço de telecomunicações" afastando daquele a incidência do sigilo constitucional previsto no artigo 5 da Constituição Federal em seu inciso XII que se refere à comunicação de dados feita por "serviço de telecomunicações". Vale dizer que o provedor de acesso não executa serviço de telecomunicação, por isso não tem trafego de dados a ser protegido.

                 Ainda nessa linha, a análise dos dados constantes dos cadastros dos clientes dos provedores de acesso, mesmo tendo estes sido criados através de um serviço de telecomunicações, não representam a "interceptação do fluxo de comunicações em sistemas de informática" prevista na Lei n.º 9.296, de 24 de julho de 1996, publicada no DOU de 25 de julho de 1996 e que regulamenta o inciso XII, parte final, do art. 5º da Constituição Federal, por isso, o rigor da requisição judicial mencionado no artigo 10 desta Lei não se aplica a esta atividade comercial de natureza meramente privada.

                 Com estes fundamentos podemos facilmente entender e relacionamento legal do usuário com o provedor de acesso e destes dois com o "serviço de telecomunicações". Em primeiro lugar temos a ação do usuário enviando dados ao seu provedor através de um "serviço de telecomunicação" explorado pela União. Em segundo lugar temos armazenamento, apresentação, movimentação ou recuperação desses dados pelo provedor e acesso, executando uma atividade privada. E em terceiro lugar temos a relação deste provedor de acesso com outros provedores de acesso através de um "serviço de telecomunicações" que lhe dá suporte e com o qual não se confunde.

                 A regulamentação da privacidade do usuário, por tratar-se de um banco de dados privado, mantido e explorado por uma pessoa jurídica de direito privado com o objetivo de prestar um serviço, é feita pela Constituição Federal em seu artigo 5, inciso X, e pelo Código do Consumidor, Lei n.º 8.078/90, notando, em especial, sua equiparação a "entidade de caráter público" dada a importância da preservação desta intimidade.

                 A relevância da preservação da intimidade do usuário, aliás bem destacada em nossa legislação, também é alvo de preocupação em outros países. Nos Estados Unidos da América foi editado o "Electronic Communications Privacy Act" (http://www.rewi.hu-berlin.de/Datenschutz/USA/ElectronicPrivacyAct.html) que disciplina, inclusive, a proibição da divulgação dos dados dos usuários a terceiros, deixando apenas a possibilidade judicial de uso deste cadastros nas situações em que a lei permitir.

                 Em nosso país igual cuidado teve o legislador ao responsabilizar o provedor ou a autoridade requisitante pela indevida divulgação dos dados pessoais, por este motivo que o acesso a tal informação só pode ocorrer por força de lei. Analisada a natureza jurídica do provedor de acesso a Internet, de sua relação com o usuário, e de seu banco de dados cadastrais, podemos concluir que tais informações podem ser requisitadas pelo Ministério Público Federal ou Estadual com base na Constituição Federal e nas respectivas Leis orgânicas, não podendo os provedores de acesso à Internet em hipótese alguma deixar de fornecê-las invocando sigilo constitucional ou necessidade de outra forma de requisição.

Extraido do site: http://users.sti.com.br/cdaniel/3pj/sigilo.htm