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A proibição do anatocismo 

VALQUÍRIA OLIVEIRA QUIXADÁ NUNES 
Procuradora da República no Distrito Federal 

A Medida Provisória nº 1.925, de 14.10.99, demonstra a conivência do Poder Executivo com os bancos para legalizar a pratica do anatocismo, cobrança de juros sobre juros. A medida cria um novo título de crédito que dá aos banqueiros um rito célere contra a população endividada em detrimento do príncipe da ampla defesa.

  A Cédula de Crédito Bancário, criada pela supracitada medida provisória, legaliza a fixação de juros capitalizados e a periodicidade de sua capitalização, nos termos do art. 3º, § 1º, item I, da medida provisória.

  A medida provisória prejudica os correntistas das instituições financeiras. Depois de anos de luta, quando o Poder Judiciário repeliu o anatocismo e o Banco Central nunca puniu os bancos, o governo legaliza essa prática usuária e ainda amplia o poder de execução dessas instituições, com a alteração da Lei da Usura, que veda a prática do anatocismo, por constar no art. 4º da lei ser ‘‘proibido contar juros dos juros’’.

  A jurisprudência assentada no STF, no STJ e nos TRFs demonstra a validade da proibição da Lei da Usura. A proibição da capitalização dos juros nos contratos de empréstimo, a exemplo do cheque especial, financiamentos para habitação etc. ficou clara. No entanto, quando os bancos se viram derrotados, saíram desesperados em busca de socorro ao governo, que prontamente os atendeu.

  Aliás, para tutelar os interesses dos banqueiros, o governo não se importou nem com os demais poderes, interferindo diretamente na competência do Poder Legislativo, com a edição de medida provisória sobre a matéria, e ainda desrespeitando e afrontando o Poder Judiciário, que, com o repúdio categórico ao anatocismo, tentou fomentar em seus julgamentos o resgate do equilíbrio na relação cliente/banco, já tão prejudicada com as abusivas taxas de juros praticadas, e que fica agora perdida com a imposição, pelo governo, da extorsiva cobrança de juros sobre juros.

  O STJ, entre vários julgados, decidiu meses antes da edição da medida provisória em questão: ‘‘II — somente nas hipóteses em que expressamente autorizada por lei específica, a capitalização de juros se mostra admissível. Nos demais casos é vedada, mesmo quando pactuada, não tendo sido revogado pela Lei nº 4.595/64, o art. 4º do Decreto nº 22.626/33. III — o anatocismo, repudiado pelo verbete da Súmula 121 STF, não guarda relação com o enunciado 595 da mesma súmula. ‘‘(Resp 18843/RS, 4ªTurma, relator ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, D.J. 29.03.299, pg. 184).

  O Supremo Tribunal Federal, por meio da Súmula 121, foi categórico: ‘‘É vedada a capitalização de juros, ainda que expressamente convencionada.’’.

  O artigo 192 da Constituição Federal, ao tratar do Sistema Financeiro Nacional, estabelece que este deve ser ‘‘estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do país e a servir aos interesses da coletividade’’.

  Por sua vez, a Lei nº 4.595/64 atribui ao Conselho Monetário Nacional a finalidade de formular a política de crédito, objetivando o progresso econômico e social, determinando a competência de estatuir normas para as operações das instituições financeiras públicas, a fim de preservar sua solidez e adequar seu funcionamento aos objetivos desta lei (art. 2º c/c art. 4º, XXIII).

  Essa mesma Lei nº 4.595/64 determina ao Banco Central do Brasil, como órgão executor, a responsabilidade de cumprir e fazer cumprir as disposições que regulam o Sistema Financeiro Nacional, fiscalizando as instituições financeiras no atendimento dessas normas e daquelas expedidas pelo Conselho Monetário Nacional.

  A atividade bancária é um serviço público e deve pautar-se nas leis e regulamentos, sendo a prática do anatocismo vedada por lei e contrária à boa prática bancária, além de violar o princípio da moralidade, que também se aplica aos serviços públicos.

  O Banco Central do Brasil, como responsável pela fiscalização das instituições financeiras, não pode e não deve se furtar ao dever de coibir a prática do anatocismo, aplicando as penalidades previstas na legislação vigente ou até, se for o caso, representando no Ministério Público Federal.

  Os agentes do Banco Central do Brasil encarregados da fiscalização das instituições financeiras não podem ocultar em seus relatórios a ocorrência da nefasta prática sob o risco de incorrerem nas penalidades previstas na Lei de Improbidade Administrativa.

  A crescente prática do anatocismo enquadra-se, em tese, no art. 11, caput e inciso II, da Lei de Improbidade por ação daqueles que o fazem e por omissão daqueles que possuem o dever de combater tal tipo de prática, permitindo que terceiros, os bancos, se enriqueçam de forma ilícita.

  Os bancos, devido omissão do Banco Central, apostam nessa cobrança, porque sabem que apenas uma pequena parte dos devedores recorre à Justiça na busca de seus direitos.

  Quando a Justiça decidiu, os bancos resolveram mudar as regras do jogo, pedindo ao presidente uma providência, que de imediato editou a Medida Provisória nº 1.925/99, criando o título de crédito denominado Cédula de Crédito Bancário, como meio de fugir às decisões judiciais, e lesionando ainda mais os tão sofridos devedores brasileiros.

  A legalização do anatocismo, previsto no art. 3º da Medida Provisória nº 1.925 é um acinte aos tribunais e aos consumidores. Além disso, a medida provisória dá aos bancos um rito especial de cobrança. As vítimas de Sérgio Naya vão esperar vários anos, os bancos recuperarão seus créditos em 90 dias, violando totalmente o direito de defesa dos devedores.

  A gravidade da legislação do anatocismo, previsto no art. 3º da Medida Provisória nº 1.925, decorre da introdução em nosso ordenamento jurídico de matéria repudiada por nossos tribunais e pela legislação, inclusive durante os períodos ditatoriais — tanto de Vargas quanto de 1964. O atual governo valoriza mais o lucro excessivo dos bancos do que a economia popular nacional. Já se pensou mais no bolso do povo e na saúde financeira das empresas nacionais.

retirado de:http://www.correioweb.com