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Paulo Câmara

"O WARRANT AUTÓNOMO COMO NOVO TIPO DE VALOR MOBILIÁRIO"[1]

 

Sumário: § 1.º  Introdução. 1. Apresentação da figura. 2. Questões prévias sobre a admissibilidade de warrants; tipicidade. 3. Continuação; a proibição de negócios diferenciais. 4. Modalidades. § 2.º O warrant como valor mobiliário. 5. Função do warrant como valor mobiliário. 6. O warrant como tipo de valor mobiliário. 7. Warrants e instrumentos financeiros derivados. § 3.º A emissão de warrants autónomos. 8. Capacidade para emissão. 9. Competência para a decisão e controlo administrativa da oferta 10. Particularidades em função do activo subjacente § 4.º Warrants e direito aplicável. 11. Normas de conflitos e warrants. § 5.º Construção jurídica dos warrants. 12. A tensão entre autonomia e equiparação. 13. A estrutura do direito incorporado no warrant; síntese

 

§ 1.º Introdução

 

1. Apresentação da figura

 

I - O DL n.º 172/99, de 20 de Maio, fixou pela primeira vez entre nós as linhas gerais do regime dos warrants autónomos.

Contudo, a novidade da figura é apenas parcial. Antes desse diploma, já eram conhecidos os warrants dependentes de obrigações (detachable warrants), regulados sucintamente nos arts. 372.º-A e 372.º-B do Código das Sociedades Comerciais, na modificação introduzida através do DL n.º 229-B/88, de 4 de Julho. A Segunda Directiva comunitária de direito das sociedades – Directiva n.º 77/91/CEE, de 26 de Janeiro –, transposta para o direito interno português através do mesmo Código, também lhes fazia uma telegráfica alusão (art.25.º/4).

Além disso, havia diversos preceitos no Código do Mercado de Valores Mobiliários que, sem os nominar, aludiam aos warrants com direito de aquisição de valores mobiliários - por ex. os arts. 47.º/2, 365.º c), 372.º/a) e 523.º/1. c) do diploma de 1991[2].

 

II – O warrant corresponde a um vocábulo anglo-saxónico de múltiplos significados na língua de origem. Os dicionários jurídicos descobrem-lhe cerca de dezoito acepções diferentes[3], entre as quais a de autorizar, ordenar, justificar e garantir.

A polissemia do vocábulo é indiciadora da versatilidade da figura sobre que se deterão estas páginas e aconselha precauções na delimitação do objecto de análise. Importa, por isso, precisar preliminarmente o seu significado.

A partir do art. 2.º do DL n.º 172/99, de 20 de Maio, pode deduzir-se que o conceito de warrant é o valor mobiliário que em relação a um activo subjacente confere, alternativa ou exclusivamente, algum dos seguintes direitos:

1. O direito a subscrever valores mobiliários;

2. O direito a adquirir determinado activo subjacente;

3. O direito a alienar determinado activo subjacente;

4. O direito a exigir a diferença entre dois preços de referência, um determinado na emissão do valor mobiliário e o outro determinável ao longo da sua vigência.  Tal abrange, por seu turno:

(i) o direito a exigir a diferença entre o preço de referência ao activo subjacente e o preço do activo subjacente no momento do exercício, em relação aos warrants de aquisição (call warrants); e

(ii) o direito de exigir a diferença entre o preço de exercício e o preço de referência, no tocante aos warrants de alienação (put warrants).

 

Este conceito é completado com uma enumeração de activos subjacentes admitidos por lei, constante do art.3.º do diploma.

 

III - Não deve confundir-se a figura do warrant com o instituto homónimo a referenciar a cautela de penhor anexa ao conhecimento de depósito de mercadorias, referido no art. 408.º do Cód.Com. Esta utilização do mesmo vocábulo a designar realidades jurídicas diferentes tem raízes na já aludida polissemia do termo da língua de origem.

O conceito é igualmente parente próximo das stock options; mas estas enquadram-se geralmente num esquema de retribuição de um trabalhador ou membro de órgão social das sociedade emitente, não se destinando por conseguinte à distribuição pelo público. Pese embora a sua importância na reapreciação dos problemas ligados ao governo das sociedades, estas opções de aquisição assumem particularidades que não serão aqui referidas.

O warrant pode também aproximar-se dos direitos destacáveis de valores mobiliários. Há, aqui, que impor uma subdistinção:

a. De um lado temos os direitos destacados que mantêm uma autonomia com o valor de base: assim sucede com os warrants que são destacados de obrigações com direito de subscrição de acções (reguladas, como já referido, nos arts. 372.º-A e 372.º-B CSC).

b. De outro lado, temos os direitos destacados a partir de uma posição jurídica mais ampla: é o que se passa com os direitos de subscrição destacados de acções, em altura de aumento de capital.

A circunstância de o direito destacável ter origem num outro valor mobiliário, o que não sucede com o warrant autónomo, que é emitido isoladamente, é critério distintivo bastante a separar estas posições jurídicas dos warrants autónomos. A diferença é, aliás, mais profunda em relação aos referidos em b., dado o seu curto prazo de vencimento.

Esta conclusão é importante para verificar que a admissibilidade de warrants autónomos com a amplitude referida não serve de base suficiente para concluir directamente serem admissíveis idênticos warrants dependentes de obrigações[4].

Mas não se vislumbram, em tese, obstáculos incontornáveis para tornar fungíveis warrants autónomos de subscrição e direitos de subscrição destacáveis de obrigações, com vista a serem integrados numa mesma categoria de valores mobiliários – posto que verificados os requisitos do art. 45.º (identidade de conteúdo das posições jurídicas representadas e coincidência de emitente).

 

IV - Pode estranhar a recepção de um anglicismo para o glossário normativo português. Terá sido, aliás, esse facto que justificou a diversa terminologia empregue pelo Código dos Valores Mobiliários, que – em recusa de emprego do termo britânico - no art. 1.º, alínea e), prefere falar em direitos à subscrição, à aquisição ou à alienação de valores mobiliários que tenham sido emitidos de modo autónomo.

Reconheça-se porém que o vocábulo escolhido pelo DL n.º 172/99, de 20 de Maio, pese o estrangeirismo, tem a virtude da concisão. Demais, era já recebido na literatura e em textos normativos que transpunham directivas para o direito interno português[5].

 

2. Questões prévias sobre a admissibilidade de warrants; tipicidade

 

I - À luz do Código anterior, a admissibilidade dos warrants autónomos não era pacífica, estando dependente da posição a tomar quanto ao problema da tipicidade.

Quem sustentava haver um numerus clausus de valores mobiliários negava a admissibilidade de warrants autónomos[6]. Diferentemente, quem considerava a atipicidade vigente no sistema jurídico português convivia com naturalidade com a figura[7].

A introdução de um regime jurídico relativo aos warrants não permite extrair indicações unívocas quanto à questão de fundo - que não será aqui abordada – da tipicidade; apenas possibilita intuir da sua importância, em virtude da dinâmica dos mercados financeiros.

 

II - Não pode considerar-se, porém, que a dependência em relação ao problema da tipicidade seja absoluta.

De um lado, o direito português conhecia os warrants dependentes - permitindo o seu destaque (no art. 372.º-B/4 CSC).

De outro lado, como à frente melhor se demonstrará, o direito comunitário já consagrava a figura. Toma geralmente como referência apenas uma parcela dos warrants, não generalizando a figura: é comum referir-se apenas a warrants de aquisição (e não de alienação) relativos a instrumentos financeiros (e não a outros activos subjacentes)[8].

É, por fim, plausível entender que o direito nacional já conhecia a figura, introduzida – como já referido - através de textos normativos a transpor as mencionadas directivas comunitárias para o direito interno português[9].

 

III - Mas quer os defensores de uma posição ou de outra reconhecerão a utilidade desta intervenção legislativa.

A um passo, não pode esquecer-se que a globalização dos mercados facilita a deslocalização de emissões, na medida em que há maior facilidade em comparar o leque de instrumentos financeiros ao dispor em cada mercado. Tal gera concorrência legislativa no reconhecimento de novos tipos de valores mobiliários. Dir-se-á, pois que o desenvolvimento deste regime é aspecto da competitividade do mercado nacional: permite evitar que a emissão destes instrumentos seja feita no estrangeiro[10].

Esta inovação legislativa, de outro lado, põe termo à prática perniciosa de emitir obrigações com warrants com o único intuito de ulteriormente poder destacar os direitos de aquisição adjacentes - o que, repise-se, a lei permite claramente (art.372.º-B/4 CSC). Tenha-se presente, para uma ilustração, que no próprio dia de publicação do diploma regulador dos warrants, estavam admitidos à negociação em bolsa warrants representativos de direitos de aquisição de acções de sete sociedades cotadas[11].

3. Continuação; a proibição de negócios diferenciais

 

I – A consagração de um regime jurídico dos warrants que, como vimos, inclui os que apenas concedem o direito a exigir diferença entre o preço de referência e o preço de exercício, dada a álea contratual respectiva, representa de igual modo um sinal importante de superação da tradicional perspectiva com que são encarados os negócios diferenciais.

Relembre-se que, numa acepção mínima, os negócios diferenciais são aqueles em que a prestação é determinada através da diferença entre o preço acordado e o preço de mercado de determinado bem[12]. Tratando-se de contratos de compra e venda, se o preço de mercado no momento estipulado for superior ao convencionado, o comprador pagará a diferença; se for inferior, a diferença será suportada pelo vendedor.

O direito alemão trata estes negócios a propósito dos contratos relativos à entrega de mercadorias ou de valores mobiliários: definem-se pela intenção de que a diferença entre o preço convencionado e o preço de bolsa seja pago pela parte perdedora à parte vencedora (§ 764.º BGB). A sua qualificação em geral é a de contrato de jogo; mas admitem-se, precisamente, soluções diversas para os negócios celebrados em bolsa no âmbito de operações a prazo[13].

É precisamente nesta última óptica, por exemplo, que o Financial Services Act britânico encara os contratos diferenciais como aqueles celebrados com o propósito de garantir um lucro ou evitar uma perda por referência a flutuações no valor ou no preço de determinado bem no num índice ou outro facto contratualmente descrito[14], afastando-se igualmente do regime do jogo e aposta.

 

II - Em confronto com estes dados, veja-se que o warrant pode assentar num negócio diferencial – mas apenas unilateralmente, pois só do lado do emitente é que surge o dever de pagamento da diferença. O titular do warrant não se constitui devedor da diferença, ainda que lhe seja desfavorável: apenas deixará de poder exercer o direito ao saldo, pois este apresenta-se negativo.

É o que se designa de operações diferenciais encobertas ou mistas na doutrina germânica.

Este reconhecimento indirecto dos negócios diferenciais permite afastar os warrants autónomos a que se refere o art. 2.º, alínea b) do DL n.º 172/99, de 20 de Maio, do regime constante do art. 1245.º CC, aplicável ao jogo e aposta. As obrigações emergentes dos warrants são, pois, obrigações civis, e não obrigações naturais. Tal justifica-se pela função que desempenham os warrants autónomos, especialmente no tocante à cobertura de risco, a que a ordem jurídica concede sólido respaldo. A esta regressarei adiante.

4. Modalidades

 

I – Os warrants autónomos apresentam grande variedade. Várias classificações são possíveis de aplicar.

Assim, em função do activo subjacente, pode descortinar-se warrants sobre valores mobiliários, warrants sobre índices, warrants sobre taxas de juro e warrants sobre divisas.

Os warrants sobre valores mobiliários, por seu turno, desdobram-se em warrants sobre valores mobiliários próprios (naked warrants) e sobre valores mobiliários alheios (covered warrants)[15]. Os primeiros são definidos no art. 11.º/1 do diploma como aqueles que tenham como activo subjacente valores mobiliários emitidos pela própria entidade emitente do warrant ou por sociedade que, nos termos do Código das Sociedades Comerciais, consigo se encontre em relação de domínio ou de grupo.

 

II – Importa de igual modo destrinçar as modalidades de warrants em razão do modo de cumprimento do emitente. Empregando a gíria dos mercados, em função da forma de liquidação, distingue-se os warrants com liquidação física (art. 2.º/a) dos warrants com liquidação financeira (art. 2.º/b).

Nestes últimos não existe o risco de indisponibilidade dos activos em mercado: têm na base, como vimos, um negócio diferencial[16].

 

III - Finalmente, é usual aplicar o critério classificativo relacionado com o período de exercício[17]. Tal permite separar as seguintes modalidades de warrants:

- Warrants de estilo europeu, a poder ser exercidos apenas no final do prazo estipulado;

- Warrants de estilo americano, podendo ser exercidos a qualquer momento desde a data de emissão;

- Warrants de estilo asiático, que pode ser exercidos apenas no final do prazo convencionado mas por um preço que representa uma média ao longo da maturidade do valor;

- Warrants com períodos de black out, que incluem períodos durante os quais os warrants não podem ser exercidos.

 

IV - O tráfego conhece igualmente exemplos de warrants exóticos, tais como:

Os corridor warrants, que conferem o direito a uma soma pecuniária sempre que o activo subjacente se mantenha dentro de um intervalo de preços pré-fixado.

Os lookback warrants, em que o preço de exercício é determinado a partir do preço mais baixo em período anterior (o designado lookback period).

O universo de modalidades apresentadas não pretende ser exaustivo: outras classificações poderiam ser apontadas.

 

§ 2.º O warrant como valor mobiliário

 

5. Função do warrant como valor mobiliário

 

I - O aparecimento de um novo valor mobiliário serve também para testar a adequação das indicações do direito positivo português quanto à reconstituição de um conceito material de valor mobiliário

No código anterior, a técnica utilizada era a de combinar uma cláusula geral com exemplos de valores mobiliários (art.3.º/1.a). Não havia directamente um conceito.

No novo Código dos Valores Mobiliários, continua a não haver um conceito directo: combina-se agora uma enumeração de valores mobiliários com a possibilidade de reconhecimento legal ou regulamentar de outros tipos de valores mobiliários (art. 1.º).

Para haver reconhecimento regulamentar, nos termos do art. 1.º/2, os valores mobiliários devem cumprir quatro requisitos:

- Ser documentos representativos de situações jurídicas homogéneas;

- Visar, directa ou indirectamente, o financiamento de entidades públicas ou privadas;

- Ser emitidos para distribuição junto do público;

- Desde que o reconhecimento seja de modo a assegurar os interesses dos potenciais adquirentes.

Estes elementos funcionam como importantes indícios do direito positivo quanto ao conceito de valor mobiliário.

 

II – A qualificação do warrant como valor mobiliário assume interesse, em primeiro lugar, para verificar se os requisitos materiais constantes do art. 1.º/2 do Código estão presentes. Ora, o problema que essa caracterização dos elementos materiais do valor mobiliário em confronto com os warrants prende-se com o terceiro requisito, ligado à função de financiamento do valor mobiliário.

Impõe-se, a este propósito, distinguir.

Na emissão de warrants dependentes e na emissão de warrants autónomos sobre valores mobiliários próprios, pode afirmar-se que a finalidade é de tornar mais atractivos ou de servir de sucedâneo em relação aos valores mobiliários que são activos subjacentes: haverá aí uma finalidade indirecta de financiamento[18] (que se reconhece ainda que a emissão do warrant seja a título gratuito).

Todavia, a finalidade de financiamento não subjaz, por regra, à emissão dos demais warrants autónomos.

Se se assinala finalidade de financiamento está a reconhecer-se essencialidade ao facto de o emitente auferir o prémio de subscrição, assimilando esta instrumento a um valor mobiliário representativo de dívida. É ponto de vista claramente redutor; o preço de subscrição, aliás, pode na prática revelar-se muito reduzido.

Assim, a finalidade típica da emissão destes instrumentos é de cobertura de risco de investimento ou de assunção de posição especulativa em termos simétricos do que é feito pelo investidor.

Por exemplo: Se é realizada uma emissão de warrant sobre divisas, é para especular em relação a determinada oscilação cambial.

Tal também é nítido quando há uma emissão de warrants sobre valores mobiliários alheios nos casos de concertação entre o emitente do warrant e o emitente do activo subjacente, tendo aquele uma classificação de notação de risco bem mais elevada que este[19]. Esta situação, em que o emitente do warrant aufere frequentemente uma retribuição do emitente do activo subjacente, ilustra bem que o móbil do emitente do warrant não se reduz ao financiamento – demonstrando as limitações do requisito do financiamento para extrair um conceito material de valor mobiliário.

 

III – Também à luz do novo Código dos Valores Mobiliários, a qualificação dos warrants mostra interesse ante a nova categoria dos instrumentos financeiros que o novo diploma acolhe, por inspiração da Directiva relativa aos Serviços de Investimento.

Mais concretamente, face à contraposição, introduzida por esta directiva, entre instrumentos financeiros e valores mobiliários, mostra-se prioritário saber se o warrant é um valor mobiliário ou se é um instrumento financeiro derivado. Trata-se de um ponto a analisar de seguida.

 

 6. O warrant como tipo de valor mobiliário

 

I - A qualificação dos warrants como valor mobiliário não é um dado adquirido, mas um problema.

Em França, a Loi de Modernisation des Activités Financiers ao tratar os warrants, omite uma tomada de posição sobre a qualificação como valor mobiliário, o que a literatura considera uma postura pragmática, ante a divisão doutrinal que a questão suscita[20].

No Reino Unido, o Financial Services Act também evitou habilidosamente a qualificação, tendo tomado os warrants como investments, categoria muito ampla de instrumentos financeiros em que se inclui o que a literatura continental designa como valores mobiliários e também os futuros e as opções. Pode, contudo, considerar-se que os warrants aí figuram como tertium genus, sendo definidos separadamente das acções e das obrigações, em local também distinto daquele em que surgem as definições normativas dos futuros e das opções[21].

 

II – É útil proceder a este propósito por um excurso pelas directivas comunitárias, para entender que a linha dominante do direito comunitário aponta no sentido da qualificação dos warrants como valores mobiliários.

Na Directiva do prospecto de oferta pública – Directiva n.º 89/298/CEE, de 17 de Abril, de 1989, utiliza-se, no art. 3.º f), um conceito amplo de valor mobiliário que inclui expressamente qualquer valor mobiliário que confere o direito de subscrever outros valores mobiliários por subscrição ou por troca.

A Directiva 89/592/CEE, de 13 de Novembro de 1989, relativa ao insider trading refere-se aos contratos ou direitos para adquirir ou dispor de valores mobiliários como exemplos de valores mobiliários (art. 1.º/2, alínea b)). Trata-se de uma indicação menos significativa, porquanto aí se incluem também os futuros e opções e os contratos sobre índices (art. 1.º/2, alíneas c) e d)).

Na Directiva relativa à Adequação dos Capitais – Directiva 93/6/CEE, de 15 de Março de 1993 - é utilizado o conceito de warrant, tomando-o por equivalente aos warrants sobre acções ou obrigações (art. 2.º/15). Este diploma contém igualmente menção aos warrants financeiros, tomados como o instrumento emitido por uma entidade diversa do emitente do activo subjacente que confere o direito a adquirir acções ou obrigações a um preço estipulado ou o direito a garantir um ganho ou a evitar uma perda por referência a flutuações num índice relacionado com um dos instrumentos financeiros referidos na Directiva dos Serviços de Investimento (art. 2.º/16). Não há uma qualificação directa como valor mobiliário, antes se referindo como instrumento.

A Directiva relativa aos Serviços de Investimento por seu turno, acaba também por qualificar os warrants como valores mobiliários. O conceito de valor mobiliário aí recebido inclui qualquer valor mobiliário que confere o direito de adquirir outro valor mobiliário por subscrição ou troca ou dando direito a liquidação financeira. Além disso, o Anexo B desta directiva, onde se elencam os instrumentos financeiros, os warrants não figuram isoladamente: pode, também por este motivo, concluir-se que este texto comunitário fornece uma indicação segura da qualificação dos warrants como valores mobiliários.

 

III - O DL n.º 172/99, de 20 de Maio, não abandona o intérprete na questão da qualificação do warrant como valor mobiliário: opta, no seu art. 2.º, expressa e claramente por uma resposta afirmativa.

Esta tomada de posição é importante.

Repare-se que o Código dos Valores Mobiliários não qualifica todos os warrants como valores mobiliários; apenas o faz em relação aos warrants incorporando direitos à subscrição, à aquisição ou à alienação de acções, obrigações, títulos de participação e unidades de participação em instituições de investimento colectivo (art. 1.º/1.e). Não se refere aos warrants relativos a outros activos subjacentes que não sejam valores mobiliários – deixando igualmente de fora os warrants apenas como direito a liquidação financeira.

O próprio Código dos Valores Mobiliários, no proémio do seu art. 1.º/1, admite, porém, que a lei possa fazer tal qualificação. É o que faz, precisamente, o art. 2.º do DL n.º 172/99, de 20 de Maio. Estamos perante um valor mobiliário típico à luz do ordenamento jurídico nacional.

Tal qualificação tem implicações gerais quanto à vocação aplicativa de todas as normas relacionadas com os valores mobiliários em geral (forma de representação, transmissão, legitimação, etc.).

Assume, ainda, repercussões especiais ao nível:

1. Do mercado em que os warrants podem ser admitidos à negociação, devendo ser negociados em bolsa a contado;

2. Do tratamento fiscal respectivo: merecem tratamento como mais-valia ou rendimento de capital de valores mobiliários, e não como instrumento financeiro derivado

 

IV – Os warrants representam, além do mais, um tipo autónomo de valor mobiliário.

É sobretudo necessário entender esta asserção através da distinção entre o warrant e as obrigações.

É verdade que os warrants com liquidação financeira envolvam a assunção de um dever de pagamento de determinada quantia pelo emitente: daí que o art. 6.º do DL n.º 172/99, de 20 de Maio, estabeleça o limite referido no art. 349.º do Código das Sociedades Comerciais.

Frise-se que a aplicação do condicionamento quantitativo prevista no art. 349.º CSC sofre de algumas limitações, já visíveis no seu campo aplicativo directo. Quando é feita uma emissão de obrigações indexadas, é impossível prever com exactidão quais os encargos financeiros daí decorrentes[22] - referindo-se o limite do art. 349.º a um elemento formal, que é o valor nominal das obrigações. O mesmo se dirá em relação à emissão de warrants autónomos, dada a álea envolvida quanto à evolução do preço do activo subjacente. Não pode utilizar-se, para este efeito, no cálculo do limite máximo da emissão dos warrants o valor nominal dos warrants (visto este não existir); devendo, ao invés, em homenagem ao espírito do preceito societário, utilizar-se o valor nominal do valor mobiliário que serve de activo subjacente.

Todavia o facto é que não há por detrás qualquer mútuo[23] – além da possibilidade de o montante apurado do saldo ser nulo. Dito de outro modo, a emissão destes valores mobiliários não implica a recepção de fundos reembolsáveis. A exposição atrás feita sobre a função assinalada à emissão dos warrants[24] permite reforçar esta conclusão. A autonomia da figura é, pois, clara.

 

7. Warrants e instrumentos financeiros derivados

 

I – A análise de direito positivo não pode fazer esquecer que, do ponto de vista económico, há muitos pontos de contactos entre os warrants e um dos tipos de instrumentos financeiros derivados: as opções.

Esta asserção toma como ponto de partida uma noção económica de derivado, como sendo aquele instrumento financeiro cujo valor deriva do valor de um activo subjacente que o primeiro toma como referência[25].

Analisando o perfil funcional do warrant do ponto de vista do investidor, os modelos de decisão estratégica prendem-se com a expectativa de subida ou descida de preços de um activo subjacente[26].

Tem-se também em conta o facto de que o preço do warrant reflectirá as oscilações do preço do activo subjacente[27]. Tal sucede em razão directamente proporcional, em caso de warrant de aquisição (call warrant); em razão inversamente proporcional para os warrant de alienação (put warrant)[28].

Estas constatações empíricas jogam influência determinante na conformação dos modelos de decisão dos investidores neste tipo de valor mobiliários. O investidor tenderá a adquirir um warrant de aquisição (call warrant) se espera que o preço desse activo se valorize (bull market).

Simetricamente, haverá tendência em adquirir um warrant de alienação (put warrant) se a expectativa for de descida do preço do activo subjacente (bear market).

Tal decisão de investimento pode justificar-se seja para evitar perdas relacionadas com outro negócio em que  o investidor esteja envolvido, seja apenas para beneficiar da expectativa de evolução dos preços do activo subjacente. O warrant pode servir, nessa medida, propósitos de cobertura de risco ou de especulação.

 

II – Estes dados são muito relevantes para atestar o risco particular envolvido no investimento em warrants.

Assim, repise-se que os warrants apresentam possibilidades de perdas, na medida em que o valor do direito de aquisição ou de alienação ou do saldo, em comparação com o preço do activo subjacente, pode ser igual a zero. As perdas são limitadas por parte do investidor - limitam-se ao valor do preço de subscrição ou de aquisição do warrant. Mas as perdas são potencialmente ilimitadas no tocante à entidade emitente.

Uma confirmação do que acaba de se expor diz respeito ao tratamento prudencial dispensado pelo direito bancário comunitário aos warrants. Com efeito, a Directiva relativa à Adequação dos Capitais equipara, para efeitos prudenciais, a utilização de warrants à utilização de opções como instrumentos financeiros derivados (Anexo 1, n.º 6)[29].

 

III – À aludida aproximação económica não corresponde uma assimilação jurídica dos warrants aos instrumentos financeiros derivados. Aduzem-se seguidamente quatro principais razões para fundar uma distinção.

Adiante-se, em primeiro lugar, que os instrumentos financeiros derivados são contratos padronizados[30], o mesmo não sucedendo com os warrants, em que assiste liberdade de conformação do conteúdo das condições de emissão.

Demais, o warrant é dotado de negociabilidade, sendo negociado em bolsa a contado (art. 10.º). A transmissão do warrant é feita através da técnica do valor mobiliário e não do derivado: por efeito translativo e não por compensação ou reversão de posições[31].

Decisiva é, ainda, a circunstância de na génese do warrant haver um emitente e um mercado primário. Nos instrumentos financeiros derivados, pelo contrário, há uma decisão da entidade gestora no sentido de determinado contrato passar a ser negociável. Tal permite distinguir os warrants das opções, em que há a disponibilização de cláusulas padronizadas, mas que não correspondem a uma emissão em sentido técnico.

Há, por fim, um indício muito ligado de perto ao núcleo dos valores mobiliários: é a possibilidade de reunião em assembleia dos titulares dos warrants, por aplicação dos arts.355.º a 356.º CSC ex vi art. 15.º do DL n.º 172/99, de 20 de Maio. Tal característica é totalmente alheia aos instrumentos financeiros derivados.

 

§ 3.º A emissão de warrants autónomos

 

8. Capacidade para emissão

 

I – O DL n.º 172/99, de 20 de Maio estabelece no art. 4.º o regime da capacidade de emissão destes valores mobiliários.

Assim:

1. É reconhecida capacidade genérica directa aos bancos, à Caixa Económica Montepio Geral, à Caixa Central de Crédito Agrícola Mútuo, às sociedades de investimento e ao Estado.

2. Reconhece-se capacidade genérica, mas dependente de autorização do Banco de Portugal, outras instituições de crédito e sociedades financeiras de corretagem.

3. Finalmente, têm capacidade restrita as sociedades anónimas que não caibam no universo antes mencionado, apenas podendo emitir valores mobiliários próprios.

 

Merece atenção o sistema instituído para as outras instituições de crédito e as sociedades financeiras de corretagem. A lei prevê que haja a fixação geral e abstracta dos requisitos de autorização através de Aviso do Banco de Portugal (art. 4.º/2); o que não dispensa, caso a caso, que cada uma destas entidades careça de autorização para emitir.

 

II – O fundamento deste quadro - essencialmente dualista - assenta na maior confiança depositada pelo legislador nas entidades sujeitas a controlo prudencial em relação às comuns entidades societárias.

É traço com paralelo nos sistemas jurídicos próximos, nomeadamente em França e em Itália[32].

Tenha-se todavia em mente que o problema não é apenas de endividamento, mas também de expertise na área da emissão de instrumentos financeiros mais sofisticados. Veja-se neste contexto que em Itália as regras de admissão indicam como requisitos a existência de sistemas de gestão de risco e como critério a experiência do emitente em anteriores emissões de warrants autónomos ou instrumentos financeiros semelhantes, reservando-se o direito de inquirir sobre as estratégias adoptadas para cobertura do risco de emitente associado[33].

 

9. Competência para a decisão e controlo administrativa da oferta

 

I – As regras em matéria da competência para a deliberação de emissão encontram-se estabelecidas no art. 5.º do DL n.º 172/99, segundo o qual:

- Em geral, a emissão de warrants autónomos pode ser deliberada pelo órgão de administração do emitente;

- Se são warrants próprios deve haver autorização estatutária para a emissão (art. 5.º/2)[34].

Importa notar que não há quaisquer exigências de forma para a deliberação de emissão dos warrants.

 

II - O regime dos warrants autónomos consagra um sistema mais avançado de controlo administrativo da oferta. Em particular, procura-se evitar a duplicação de controlo administrativo hoje patente na emissão de obrigações através de oferta pública, que injustificadamente se sujeitam quer ao registo prévio da CMVM quer ao registo comercial.

Vejamos o que ocorre no caso da emissão de warrants autónomos. A emissão por oferta particular de warrants sobre valores mobiliários próprios, o DL n.º 172/99, de 20 de Maio consagra o dever de submeter a registo comercial a emissão de, através da alteração que impôs ao art. 3.º do Código de Registo Comercial, sendo-lhe aditada uma nova alínea (alínea v).

Tratando-se de emissão por oferta pública em mercado nacional, independentemente do activo subjacente em causa, há sujeição ao dever de registo prévio da oferta na CMVM. Há também uma preocupação de controlo das emissões efectuadas por emitentes sujeitos a lei pessoal portuguesa mas que dirijam ao estrangeiro ofertas públicas de warrants: por isso prevê a nova redacção do art.3.º, alínea v) do Código de Registo Comercial que a inscrição no registo comercial também nessas ocasiões deva ser efectuada[35].

Um dos aspectos interessantes diz respeito à introdução de um novo critério de qualificação da oferta como pública – o qual, aliás, subsistirá com o novo Código.

Os critérios fundamentais de qualificação da oferta como pública são basicamente três: a indeterminação dos destinatários, a utilização de meios promocionais que indiciem formas de comercialização pública e a natureza do emitente do valor mobiliário[36].

No o DL n.º 172/99, de 20 de Maio, acrescenta-se um novo critério: o da natureza do emitente do activo subjacente, embora se circunscreva às ofertas de warrants com liquidação física relativamente a acções emitidas por sociedades abertas. Assim, reza o art.12.º:

Considerar-se-á pública a oferta de subscrição de warrants autónomos sobre acções ou sobre valores mobiliários que confiram direito à subscrição, aquisição ou alienação de acções sempre que a entidade emitente das acções seja sociedade de subscrição pública[37], ainda que a subscrição seja reservada aos respectivos accionistas.

 

10. Particularidades em função do activo subjacente

 

I - Do ponto de vista da política legislativa o recurso a activos subjacentes tende a ser controlado.

Dois fundamentos convergem a justificar este aspecto do regime:

- Depõem, neste sentido, exigências de informação sobre o activo subjacente, que se justificam dada a correlação de preços entre o warrant e o activo subjacente[38], para contrariar o risco da opacidade; e

- Valem igualmente exigências de um mercado líquido que torne fácil encontrar o activo subjacente, por forma a prevenir o risco de indisponibilidade do activo subjacente.

 

II - Entre nós, há uma enumeração de activos subjacentes no art. 3.º: são permitidos warrants sobre valores mobiliários, warrants sobre índices, warrants sobre taxas de juro e warrants sobre divisas.

Devem assinalar-se duas notas quanto a este elenco. Veja-se que os warrants sobre mercadorias não são aqui incluídos. Além disso, não há oposição directa a warrants sobre warrants, embora se duvide da função económica que este possível instrumento possa desempenhar.

Há todavia uma tipicidade dos activos subjacentes, na medida em que a enumeração de activos subjacentes é fechada.

Mas a alínea e) do art. 3.º estabelece que o Ministro das Finanças pode, através de portaria, alargar o rol dos activos subjacentes.

Procura-se deste modo criar ajustamento em relação à capacidade de inovação dos mercados, dando assim origem a um sistema misto: existe uma tipicidade legal e também uma tipicidade administrativa.

Há uma dúvida interpretativa em relação à possibilidade de alargamento, por portaria do Ministro das Finanças, aos activos de natureza análoga. Em causa está saber se é necessário que o “novo” activo subjacente admitido através de regulamento seja análogo a um dos tipos de activo subjacente já previstos no DL n.º 172/99, de 20 de Maio; ou se, ao invés, a fixação de um activo de natureza análoga supõe a reconstituição das características comuns a todos os activos subjacentes, por forma a que, a partir desse exercício, de extraia um princípio geral a aplicar ao activo subjacente a reconhecer através de portaria ministerial.

Sinteticamente, pretende equacionar-se se o art. 3.º nos reenvia para a analogia legis ou para a analogia iuris. Ora, é a primeira hipótese que nos parece desprender-se do espírito da norma. Por razões de segurança é preferível considerar que se admite apenas analogia legis. É, por outro lado, duvidoso que se logre reconstituir uma unificação de característica comuns a todos os activos subjacentes.

Tal permite-nos caracterizar a tipologia presente no art. 3.º como taxativa.

Em decorrência desta conclusão, dir-se-á que os warrants sobre mercadorias não podem ser consagrados através de simples portaria.

 

III – Os warrants sobre valores mobiliários alheios sugerem preocupações particulares em função dos riscos de incumprimento pelo emitente.

Entende-se, com efeito, que os warrants sobre valores mobiliários envolvem deveres acessórios implícitos.

O ponto é facilmente comprovável perante a disciplina dos warrants dependentes. Nos warrants sobre valores mobiliários a emitir há deveres de emitir: a deliberação obrigações com warrant implica, por este motivo, a deliberação de aumento de capital (art. 366.º/3, aplicável ex vi do art.372.º-B/5, ambos do CSC).

Como estruturar juridicamente um mecanismo sucedâneo para os warrants autónomos?

Uma solução legislativa seria a de impor que os activos subjacentes no caso dos warrants de aquisição estivessem na titularidade do emitente e fossem sujeitos a um mecanismo de bloqueio, para garantia dos deveres de intransmissibilidade. O direito italiano envereda por este caminho, ao impor, nos warrants com direito de aquisição de acções, que o emitente coloque à custódia de um intermediário financeiro em depósito fiduciário (escrow account) os valores a que os warrants se referem[39].

Outra possibilidade seria, como é previsto do direito belga, no artigo 46 das Lois Coordonées sur les Sociétés Commerciales, o de reger-se pelo regime geral de venda de coisa futura. O emitente ficaria obrigado, nos termos do art. 880.º CC, a diligenciar para que o titular do warrant ficasse na titularidade do activo subjacente, caso o warrant fosse exercido.

O nosso sistema optou por expediente diverso: neste caso é obrigatória a possibilidade de exoneração através de liquidação financeira (art.13.º/2). O risco é assim muito menor.

 

III – Em alguns casos, exige-se autorização do emitente do activo subjacente: assim sucede em França, por exemplo, em que o emitente do activo subjacente tem o direito de se opor à emissão[40].

Em Portugal, é exigida a mera comunicação à entidade emitente do activo subjacente. Apenas se imporá uma autorização da entidade que apura o índice, quando este constitua o activo subjacente

 

§ 4.º Warrants e direito aplicável[41]

 

11. Normas de conflitos e warrants

 

I – A globalização dos mercados torna de relevo crucial o domínio do regime aplicável aos warrants quando envolvam ligações relevantes a mais do que uma ordem jurídica.

Neste contexto, devem ponderar-se três distintos factores de plurilocalização:

1. A lei pessoal do emitente;

2. A lei pessoal do emitente dos valores mobiliários que servem de activo subjacente; e

3. A lei aplicável aos valores mobiliários que servem de activo subjacente, quando puder ser escolhida pelas condições de emissão (art.40.º/1, in fine).

 

II – O diploma regulador dos warrants é circunscrito aos warrants emitidos, negociados ou comercializados em território nacional (art.1.º): insiste-se em formulação ao Código de 1991, que é permeável a vários reparos: é difícil precisar o que é emissão em Portugal e é árdua a distinção entre negociação e comercialização. Não será, por isso, de estranhar que a fórmula do art. 2.º/1 do Código de 1991[42] tenha sido abandonada com o novo código.

 

III - Há indicações mais importantes provenientes do conjunto de regras de conflitos consagrado no Código dos Valores Mobiliários, que representam um sistema mais moderno e aperfeiçoado.

Em regra geral, o conteúdo dos valores mobiliários é determinado pela lei pessoal do emitente, de acordo com art. 40.º/1.

Significa isto que os warrants estão subtraídos à possibilidade de designação contratual da lei aplicável, pois a electio juris apenas é permitida nos valores mobiliários representativos de dívida (art. 40.º/1, in fine) e, como vimos, os warrants demarcam-se dos valores representativos de dívida[43].

 

IV – À disciplina descrita exceptua-se o regime dos warrants relativos a valores mobiliários com liquidação física: aí aplicar-se-á também a lei pessoal do emitente dos valores mobiliários que são activo subjacente (art. 40.º/2).

Este preceito torna mais exigente a emissão de warrants sobre valores mobiliários em situações privadas internacionais.

Por exemplo:

O direito do Luxemburgo admite sociedades emitentes de warrants que não sejam instituições de crédito; a França e Portugal não. Se em Portugal ocorrer uma emissão de warrants de uma sociedade sujeita à lei pessoal do Luxemburgo sobre acções da France Telecom, com liquidação exclusivamente física, deverá cumprir os requisitos de capacidade quer do Luxemburgo, quer da lei francesa.

Não parece que deva aplicar-se aos warrants sobre índices ou sobre cabazes de acções - pois tal envolveria a necessidade de obter confirmação da conformidade com o Estado do emitente de todos os valores incluídos no índice ou no cabaz e da lei contratualmente designada como aplicável, o que se revelaria excessivo ante o espírito da norma.

 

§ 5.º Construção jurídica dos warrants

 

12. A tensão entre autonomia e equiparação

 

I - O warrant tem autonomia económica em relação ao activo subjacente.

Como vimos, mesmo quando o activo subjacente é valor mobiliário, não tem de ser emitido pelo emitente do warrant. Nestes casos – de warrants sobre valores mobiliários alheios - não há ligação jurídica entre o titular do warrant e o emitente do activo subjacente.

Mas o facto de ser um título causal faz com que o seu regime jurídico oscile entre a autonomia e a equiparação ao regime do activo subjacente.

Lembram-se  alguns aspectos do regime em que predomina a equiparação:

- Os accionistas têm direito de preferência na subscrição dos warrants próprios sobre acções (art. 367 CSC ex vi  11.º/2);

- Deve ser assegurada posição paritária em caso de alterações patrimoniais significativas em relação a dos warrants próprios sobre acções (art. 368/3 CSC ex vi  11.º/2);

- No novo regime os warrants de aquisição de acções apenas relevam para efeitos de participações qualificadas se o warrant é de facto exercido: deixam de contar os designados direitos de voto potenciais (art. 20.º). Mas nem todos os warrants são objecto de OPA obrigatória: apenas o são quando emitidos pela própria sociedade visada (art.187.º/1).

Outros pontos do direito positivo denotam paralelas tendências de equiparação ao regime do activo subjacente: é designadamente o que se dirá no tocante ao regime de qualificação da oferta e de direito de conflitos, como atrás referido.

 

II – Note-se haver tendência de maior ligação à situação jurídica subjacente no caso de warrants sobre valores mobiliários, dada a vis attractiva que este particular activo subjacente supõe.

Um problema colocado a este propósito reside nas alterações ao activo subjacente. O art. 7.º prevê a regulamentação de previsões contratuais para a ocorrência de alterações relevantes em relação ao activo subjacente, que poderão resultar na faculdade de liquidação financeira antecipada ou na modificação das condições de emissão.

Frise-se que tais alterações devem ser imprevisíveis para redundar no efeito que a lei prevê como possível. A título de exemplo, veja-se que o master agreement (contrato-tipo) do ISDA não reputa de relevante, nos warrants de aquisição de acções, a comum distribuição de dividendos[44].

O Regulamento da CMVM prevê, neste contexto, a possibilidade de designação de um agente de cálculo para a correcção das condições de emissão em caso de alteração das circunstâncias.

 

13. A estrutura do direito incorporado no warrant; síntese

 

I – Resta examinar de perto a estrutura do warrant no tocante à situação jurídica neles representada.

Trata-se de um direito potestativo que é incorporado no warrant[45]. Correlativamente, o emitente encontra-se em situação técnica de sujeição.

O direito incorporado no warrant não pode reconduzir-se a uma categoria unitária, tal a dissemelhança de direitos que pode incorporar.

Aproveitando as classificações civilistas em torno dos direitos potestativos, dir-se-á que este é um direito potestativo com destinatário, de exercício extra-judicial e constitutivo[46].

O warrant representa um poder, que pode não chegar sequer a ser exercido. Este extingue-se, assim, por duas vias: ou pelo decurso do prazo de exercício (extinção por caducidade); ou pelo exercício (extinção por cumprimento).

 

II - Anota-se, porém, que o warrant é apresentado pelo novo Código dos Valores Mobiliários como incindível, pois este diploma não reconhece direitos destacados dos warrants: a alínea f) do art. 1.º, ao referir-se aos direitos destacados, não remete para qualquer valor mobiliário, mas remete apenas para os valores mencionados nas alíneas a) a e), o que equivale a uma exclusão directa dos warrants.

O ponto não deve impressionar. Se um warrant conferir direito à aquisição de uma pluralidade de valores mobiliários ou do mesmo activo subjacente em diversos momentos distintos, não será permitido o seu destaque para o exercício separado? Em tese dir-se-á que sim, o que destrói a base do raciocínio codicístico.

 

II – O reconhecimento do direito inerente ao warrant como direito potestativo não pode fazer esquecer o sistema de registo e controlo em que os valores mobiliários se negoceiam.

O ponto é especialmente relevante no tocante aos warrants de aquisição de valores mobiliários. Aqui, o exercício do warrant implica, ipso facto, o requerimento para proceder ao registo de titularidade em seu nome[47]. Não torna automaticamente o titular do warrant em titular do valor mobiliário que é activo subjacente. Para tal regem as normas gerais em matéria do valor do registo, que não cabe explicitar nesta sede[48].

A análise de direito privado que há de efectuar-se relativamente aos warrants autónomos relativamente a valores mobiliários não pode igualmente descurar a questão se saber se há aqui direitos sobre direitos. A resposta para que propendemos é negativa. Depende do conceito de valores mobiliários que se perfilha: mas julgo que não, porque o valores mobiliários constitui uma estrutura incindível entre forma e direito.

 

IV – Mais importante é situar o warrant na técnica do valor mobiliário. É tradicional referir-se que, atenta a essencialidade da forma de representação no esquema de representação de direitos, a génese do valor mobiliário seria sempre posterior à génese do direito incorporado.

O exemplo mais claro diz respeito à acção, que se constitui para efeitos internos com a escritura pública, mas apenas ganha existência como valor mobiliário no momento da emissão do título ou da primeira inscrição em registo. Aqui o documento é sempre declarativo de direitos, sendo essencial para o seu exercício mas não para a sua existência -  nunca é constitutivo[49].

Nos warrants, a estruturação é diversa. Na falta de exigências de forma para a deliberação de emissão, o documento – escrito ou electrónico - é constitutivo do direito representado. Antes da forma de representação, o direito representado no warrant não tem existência jurídica.

 

Novembro de 1999, Paulo Câmara

 

 

Retirado de: http://www.fd.ul.pt/licenciatura/dvm/estudos/warrants.htm



[1] Artigo em preparação, destinado exclusivamente aos alunos da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa do ano lectivo 1999/2000.

[2]  AMADEU FERREIRA, Direito dos Valores Mobiliários, (1998), 198-202.

[3]  Search warrant, arrest warrant, land warrant, warrant issuance, entre outros. A acepção que para aqui releva será a de stock warrant, definido como “certificates entitling the owner to buy specified amount of stock at a specified time for a specified price” (Black’s Law Dictionary6, St. Paul, Minn. (1990), 1585-1586).

[4]  A resposta a esta questão depende da posição a tomar, evidentemente, em relação à tipicidade dos valores mobiliários e aos limites desta tipicidade. Sem embargo, sempre se dirá que apesar de não ser essa a intenção do diploma (reflectida no terceiro parágrafo do preâmbulo) há aspectos do novo regime que podem mostrar-se aplicáveis por analogia aos warrants dependentes. Tal apenas não sucederá em relação aos traços do regime jurídico ligados à emissão dos warrants, que aliás o DL n.º 172/99, de 20 de Maio, trata desenvolvidamente.

[5] Aviso do Banco de Portugal n.º7/96, 2.º n.ºs 16 e 17.

[6] OSÓRIO DE CASTRO, Valores Mobiliários. Conceito e Espécies, cit., 183-186.

[7]  PAULO CÂMARA, Emissão e subscrição de valores mobiliários, 220-234 (223-224).

[8]  Cf. infra, 5, II.

[9]  Aviso BP n.º 7/96, 2.º, n.ºs 16 e 17. Tenha-se presente que à luz deste diploma e ante o pregresso Código, é de questionar a possibilidade de o reconhecimento de um novo tipo de valor mobiliário ocorrer através de via regulamentar; aliás, problema paralelo verifica-se em relação à admissibilidade de obrigações perpétuas, também sancionada indirectamente através de Aviso do Banco de Portugal (igualmente em transposição de uma directiva). O art.1.º/2 do novo Código torna, agora, clara esta possibilidade: cf. infra, 4.

[10]  O preâmbulo do diploma parece sensível a esta preocupação de política legislativa, no seu segundo parágrafo.

[11] Cofina, Efacec, Engil-SGPS, Jerónimo Martins, Somague e Sonae Indústria.

[12]  FRANCESCO MESSINEO, Operaciones de Banca y de Bolsa, Barcelona, (1957), 76-93.

[13]  DIETER MEDICUS, Tratado de las Relaciones Obligacionales, Vol. I, 609.

[14] Financial Services Act, Schedule 1, Part 1, paragraph 9; ALASTAIR HUDSON, The Law on Financial Derivatives2, cit., 331-332.

[15]  O Aviso do Banco de Portugal n.º 7/96 fala, a este propósito, de warrant coberto (2.º/17): mas a tradução não parece ser a melhor.

[16]  Cf. supra, 2.

[17]  ALASTAIR HUDSON, The Law on Financial Derivatives2, cit., 142.

[18] ALASTAIR HUDSON, The Law on Financial Derivatives2, cit., 30; LUIS FERNANDEZ DEL POZO, El Fortalecimento de Recursos Proprios, Madrid, (1992), 178-179.

[19] São exemplos colhidos em ALASTAIR HUDSON, The Law on Financial Derivatives2, cit., 30.

[20] HUBERT DE VAUPLANE / JEAN-PIERRE BORNET, Droit des Marchés Financiers, Paris, (1998), 58.

[21] Financial Services Act, Schedule 1, Part 1, paragraph 4. Interessa todavia anotar que os contratos diferenciais igualmente mereceram tratamento autónomo no diploma britânico (Financial Services Act, Schedule 1, Part 1, paragraph 9.

[22] PAULO CÂMARA, Obrigações indexadas e moeda única, in Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, n.º 4, (1999).

[23] ALASTAIR HUDSON, The Law on Financial Derivatives2, London, (1998), 142-143.

[24]  Cf. supra, 4.

[25]  GUIDO FERRARINI, I Derivati Finanziari tra Vendita a Termine e Contratto Differenziale, in FRANCO RIOLO (ed.), I Derivati Finanziari. Profili Economici, Giuridici e Finanziari, Milano (1993), 27-61 (27). Entre nós, recomenda-se o estudo de AMADEU FERREIRA, Operações de Futuros e Opções, in Direito dos Valores Mobiliários, Lisboa, (1997), 121-188.

[26] Fala-se aqui de preço em sentido amplo: frise-se, porém, que nos warrants sobre índices e nos warrants sobre diferenças não pode falar-se em preço.

[27]  As oscilações de preços são por regra mais agudas no warrant que no activo subjacente, o que no jargão financeiro se designa de efeito de alavancagem.

[28] Seria deslocado ensaiar aqui uma análise sobre a avaliação económica dos warrants. Tenha-se, todavia, presente que além do preço ou valor do activo subjacente, a avaliação do warrant tem em conta igualmente o  prazo de vencimento e a volatilidade do activo subjacente.

[29]  Vd. também, mas em termos que resultam menos claros, o Aviso do Banco de Portugal n.º7/96, Anexo VI, n.ºs 10 e 11.

[30] GUIDO FERRARINI, I Derivati Finanziari tra Vendita a Termine e Contratto Differenziale, cit., (27-30).

[31] Cf., quanto à técnica peculiar de negociabilidade dos derivados AMADEU FERREIRA, Operações de Futuros e Opções, cit., 180-182; e referindo-se aos warrants, Id., Direito dos Valores Mobiliários, cit., 202. Adiante se compreenderá melhor também que a técnica de garantia de disponibilidade do subjacente é diversa nos instrumentos financeiros derivados, havendo aqui o funcionamento de cauções (as margens) ajustadas diariamente (marked to market )(cf. infra, 9, III).

[32] Art.2.2.14 da Resolução da Consob n.º 11091, de 12 de Dezembro de 1997.

[33] Art.2.2.14, n.º5 da Resolução da Consob n.º 11091, de 12 de Dezembro de 1997.

[34] O art. 16.º facilita a modificação estatutária para adaptação a esta exigência, através da isenção de taxas e emolumentos.

[35]  Previna-se para o facto de não haver uma dicotomia perfeita entre o âmbito do registo na CMVM e o âmbito do registo comercial, podendo figurar-se hipóteses em que uma oferta particular não está sujeita a registo prévio na CMVM, não estando também sujeita a inscrição no registo comercial. Não se deve estranhar este resultado, que aliás se harmoniza com o sistema de controlo do novo Código, concentrado nas ofertas públicas, relegando a comunicação à CMVM das ofertas particulares para efeitos estatísticos.

[36]  Art. 109.º.

[37] A terminologia do novo Código designa estas sociedades como sociedades abertas ao investimento do público (art.13.º).

[38]  Cf. supra,  6. 1.

[39]  Art.2.2.7 da Resolução da Consob n.º 11091, de 12 de Dezembro de 1997.

[40]  Principes généraux établis par la COB et le CMF relatifs aux warrants et aux titres de créance complexes, III., 1.

[41]  Este ponto é de leitura facultativa.

[42]  Para uma crítica: PAULO CÂMARA, A oferta de valores mobiliários realizada através da Internet, in Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, n.º 1, (1997), págs. 11-53 (44-46).

[43]  Cf. supra, 5. IV.

[44]  Apêndice 2, 2.5.

[45] ELISABETTA RIGHINI, I Valori Mobiliari, Giuffrè, (1993), 68-69.

[46] Por todos: MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português, I. Parte Geral, t. I, Coimbra, (1999), 128-129.

[47]  O registo deve considerar-se oficioso para efeitos do art. 66.º, uma vez que por regra o intermediário financeiro que recolhe as declarações de exercício de direitos inerentes aos warrants estará em condições para lavrar os registos.

[48]  Arts. 73.º/1 e 74.º.

[49] HUECK/ CANARIS, Recht der Wertpapiere, trad.espanhola Derecho de los Títulos-Valor, Barcelona (1988), 6-7.