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Paulo Câmara
"O WARRANT AUTÓNOMO
COMO NOVO TIPO DE VALOR MOBILIÁRIO"[1]
Sumário: § 1.º
Introdução. 1. Apresentação da figura. 2. Questões prévias sobre a
admissibilidade de warrants; tipicidade. 3. Continuação; a proibição de
negócios diferenciais. 4. Modalidades. § 2.º O warrant como valor mobiliário.
5. Função do warrant como valor mobiliário. 6. O warrant como tipo de valor
mobiliário. 7. Warrants e instrumentos financeiros derivados. § 3.º A emissão
de warrants autónomos. 8. Capacidade para emissão. 9. Competência para a
decisão e controlo administrativa da oferta 10. Particularidades em função do
activo subjacente § 4.º Warrants e direito aplicável. 11. Normas de conflitos e
warrants. § 5.º Construção jurídica dos warrants. 12. A tensão entre autonomia
e equiparação. 13. A estrutura do direito incorporado no warrant; síntese
§ 1.º Introdução
1. Apresentação da figura
I - O DL n.º 172/99, de
20 de Maio, fixou pela primeira vez entre nós as linhas gerais do regime dos
warrants autónomos.
Contudo, a novidade da
figura é apenas parcial. Antes desse diploma, já eram conhecidos os warrants
dependentes de obrigações (detachable warrants), regulados sucintamente nos
arts. 372.º-A e 372.º-B do Código das Sociedades Comerciais, na modificação
introduzida através do DL n.º 229-B/88, de 4 de Julho. A Segunda Directiva comunitária
de direito das sociedades – Directiva n.º 77/91/CEE, de 26 de Janeiro –,
transposta para o direito interno português através do mesmo Código, também
lhes fazia uma telegráfica alusão (art.25.º/4).
Além disso, havia
diversos preceitos no Código do Mercado de Valores Mobiliários que, sem os
nominar, aludiam aos warrants com direito de aquisição de valores mobiliários -
por ex. os arts. 47.º/2, 365.º c), 372.º/a) e 523.º/1. c) do diploma de 1991[2].
II – O warrant
corresponde a um vocábulo anglo-saxónico de múltiplos significados na língua de
origem. Os dicionários jurídicos descobrem-lhe cerca de dezoito acepções
diferentes[3],
entre as quais a de autorizar, ordenar, justificar e garantir.
A polissemia do vocábulo
é indiciadora da versatilidade da figura sobre que se deterão estas páginas e
aconselha precauções na delimitação do objecto de análise. Importa, por isso,
precisar preliminarmente o seu significado.
A partir do art. 2.º do
DL n.º 172/99, de 20 de Maio, pode deduzir-se que o conceito de warrant é o
valor mobiliário que em relação a um activo subjacente confere, alternativa ou
exclusivamente, algum dos seguintes direitos:
1. O direito a
subscrever valores mobiliários;
2. O direito a adquirir
determinado activo subjacente;
3. O direito a alienar
determinado activo subjacente;
4. O direito a exigir a
diferença entre dois preços de referência, um determinado na emissão do valor
mobiliário e o outro determinável ao longo da sua vigência. Tal abrange,
por seu turno:
(i) o direito a exigir a
diferença entre o preço de referência ao activo subjacente e o preço do activo
subjacente no momento do exercício, em relação aos warrants de aquisição (call
warrants); e
(ii) o direito de exigir a diferença entre o
preço de exercício e o preço de referência, no tocante aos warrants de
alienação (put warrants).
Este conceito é
completado com uma enumeração de activos subjacentes admitidos por lei,
constante do art.3.º do diploma.
III - Não deve
confundir-se a figura do warrant com o instituto homónimo a referenciar a
cautela de penhor anexa ao conhecimento de depósito de mercadorias, referido no
art. 408.º do Cód.Com. Esta utilização do mesmo vocábulo a designar realidades
jurídicas diferentes tem raízes na já aludida polissemia do termo da língua de
origem.
O conceito é igualmente
parente próximo das stock options; mas estas enquadram-se geralmente num
esquema de retribuição de um trabalhador ou membro de órgão social das
sociedade emitente, não se destinando por conseguinte à distribuição pelo
público. Pese embora a sua importância na reapreciação dos problemas ligados ao
governo das sociedades, estas opções de aquisição assumem particularidades que
não serão aqui referidas.
O warrant pode também
aproximar-se dos direitos destacáveis de valores mobiliários. Há, aqui, que
impor uma subdistinção:
a. De um lado temos os
direitos destacados que mantêm uma autonomia com o valor de base: assim sucede
com os warrants que são destacados de obrigações com direito de subscrição de
acções (reguladas, como já referido, nos arts. 372.º-A e 372.º-B CSC).
b. De outro lado, temos
os direitos destacados a partir de uma posição jurídica mais ampla: é o que se
passa com os direitos de subscrição destacados de acções, em altura de aumento
de capital.
A circunstância de o
direito destacável ter origem num outro valor mobiliário, o que não sucede com
o warrant autónomo, que é emitido isoladamente, é critério distintivo bastante
a separar estas posições jurídicas dos warrants autónomos. A diferença é,
aliás, mais profunda em relação aos referidos em b., dado o seu curto prazo de
vencimento.
Esta conclusão é
importante para verificar que a admissibilidade de warrants autónomos com a
amplitude referida não serve de base suficiente para concluir directamente
serem admissíveis idênticos warrants dependentes de obrigações[4].
Mas não se vislumbram,
em tese, obstáculos incontornáveis para tornar fungíveis warrants autónomos de
subscrição e direitos de subscrição destacáveis de obrigações, com vista a
serem integrados numa mesma categoria de valores mobiliários – posto que
verificados os requisitos do art. 45.º (identidade de conteúdo das posições
jurídicas representadas e coincidência de emitente).
IV - Pode estranhar a
recepção de um anglicismo para o glossário normativo português. Terá sido,
aliás, esse facto que justificou a diversa terminologia empregue pelo Código
dos Valores Mobiliários, que – em recusa de emprego do termo britânico - no
art. 1.º, alínea e), prefere falar em direitos à subscrição, à aquisição ou à
alienação de valores mobiliários que tenham sido emitidos de modo autónomo.
Reconheça-se porém que o
vocábulo escolhido pelo DL n.º 172/99, de 20 de Maio, pese o estrangeirismo,
tem a virtude da concisão. Demais, era já recebido na literatura e em textos
normativos que transpunham directivas para o direito interno português[5].
2. Questões prévias
sobre a admissibilidade de warrants; tipicidade
I - À luz do Código
anterior, a admissibilidade dos warrants autónomos não era pacífica, estando
dependente da posição a tomar quanto ao problema da tipicidade.
Quem sustentava haver um numerus clausus de
valores mobiliários negava a admissibilidade de warrants autónomos[6].
Diferentemente, quem considerava a atipicidade vigente no sistema jurídico português
convivia com naturalidade com a figura[7].
A introdução de um regime jurídico relativo aos
warrants não permite extrair indicações unívocas quanto à questão de fundo -
que não será aqui abordada – da tipicidade; apenas possibilita intuir da sua importância,
em virtude da dinâmica dos mercados financeiros.
II - Não pode considerar-se, porém, que a
dependência em relação ao problema da tipicidade seja absoluta.
De um lado, o direito português conhecia os
warrants dependentes - permitindo o seu destaque (no art. 372.º-B/4 CSC).
De outro lado, como à frente melhor se
demonstrará, o direito comunitário já consagrava a figura. Toma geralmente como
referência apenas uma parcela dos warrants, não generalizando a figura: é comum
referir-se apenas a warrants de aquisição (e não de alienação) relativos a
instrumentos financeiros (e não a outros activos subjacentes)[8].
É, por fim, plausível entender que o direito
nacional já conhecia a figura, introduzida – como já referido - através de
textos normativos a transpor as mencionadas directivas comunitárias para o
direito interno português[9].
III - Mas quer os defensores de uma posição ou
de outra reconhecerão a utilidade desta intervenção legislativa.
A um passo, não pode esquecer-se que a globalização
dos mercados facilita a deslocalização de emissões, na medida em que há maior
facilidade em comparar o leque de instrumentos financeiros ao dispor em cada
mercado. Tal gera concorrência legislativa no reconhecimento de novos tipos de
valores mobiliários. Dir-se-á, pois que o desenvolvimento deste regime é
aspecto da competitividade do mercado nacional: permite evitar que a emissão
destes instrumentos seja feita no estrangeiro[10].
Esta inovação legislativa, de outro lado, põe
termo à prática perniciosa de emitir obrigações com warrants com o único
intuito de ulteriormente poder destacar os direitos de aquisição adjacentes - o
que, repise-se, a lei permite claramente (art.372.º-B/4 CSC). Tenha-se
presente, para uma ilustração, que no próprio dia de publicação do diploma
regulador dos warrants, estavam admitidos à negociação em bolsa warrants
representativos de direitos de aquisição de acções de sete sociedades cotadas[11].
3. Continuação; a proibição de negócios
diferenciais
I – A consagração de um regime jurídico dos
warrants que, como vimos, inclui os que apenas concedem o direito a exigir
diferença entre o preço de referência e o preço de exercício, dada a álea
contratual respectiva, representa de igual modo um sinal importante de
superação da tradicional perspectiva com que são encarados os negócios
diferenciais.
Relembre-se que, numa acepção mínima, os
negócios diferenciais são aqueles em que a prestação é determinada através da
diferença entre o preço acordado e o preço de mercado de determinado bem[12].
Tratando-se de contratos de compra e venda, se o preço de mercado no momento
estipulado for superior ao convencionado, o comprador pagará a diferença; se
for inferior, a diferença será suportada pelo vendedor.
O direito alemão trata estes negócios a
propósito dos contratos relativos à entrega de mercadorias ou de valores
mobiliários: definem-se pela intenção de que a diferença entre o preço
convencionado e o preço de bolsa seja pago pela parte perdedora à parte
vencedora (§ 764.º BGB). A sua qualificação em geral é a de contrato de jogo;
mas admitem-se, precisamente, soluções diversas para os negócios celebrados em
bolsa no âmbito de operações a prazo[13].
É precisamente nesta última óptica, por exemplo,
que o Financial Services Act britânico encara os contratos diferenciais como
aqueles celebrados com o propósito de garantir um lucro ou evitar uma perda por
referência a flutuações no valor ou no preço de determinado bem no num índice
ou outro facto contratualmente descrito[14], afastando-se igualmente do
regime do jogo e aposta.
II - Em confronto com estes dados, veja-se que o
warrant pode assentar num negócio diferencial – mas apenas unilateralmente,
pois só do lado do emitente é que surge o dever de pagamento da diferença. O
titular do warrant não se constitui devedor da diferença, ainda que lhe seja
desfavorável: apenas deixará de poder exercer o direito ao saldo, pois este
apresenta-se negativo.
É o que se designa de operações diferenciais
encobertas ou mistas na doutrina germânica.
Este reconhecimento
indirecto dos negócios diferenciais permite afastar os warrants autónomos a que
se refere o art. 2.º, alínea b) do DL n.º 172/99, de 20 de Maio, do regime
constante do art. 1245.º CC, aplicável ao jogo e aposta. As obrigações emergentes
dos warrants são, pois, obrigações civis, e não obrigações naturais. Tal
justifica-se pela função que desempenham os warrants autónomos, especialmente
no tocante à cobertura de risco, a que a ordem jurídica concede sólido
respaldo. A esta regressarei adiante.
4. Modalidades
I – Os warrants autónomos apresentam grande
variedade. Várias classificações são possíveis de aplicar.
Assim, em função do activo subjacente, pode
descortinar-se warrants sobre valores mobiliários, warrants sobre índices,
warrants sobre taxas de juro e warrants sobre divisas.
Os warrants sobre valores mobiliários, por seu
turno, desdobram-se em warrants sobre valores mobiliários próprios (naked
warrants) e sobre valores mobiliários alheios (covered warrants)[15]. Os
primeiros são definidos no art. 11.º/1 do diploma como aqueles que tenham
como activo subjacente valores mobiliários emitidos pela própria entidade
emitente do warrant ou por sociedade que, nos termos do Código das Sociedades
Comerciais, consigo se encontre em relação de domínio ou de grupo.
II – Importa de igual modo destrinçar as
modalidades de warrants em razão do modo de cumprimento do emitente. Empregando
a gíria dos mercados, em função da forma de liquidação, distingue-se os
warrants com liquidação física (art. 2.º/a) dos warrants com liquidação
financeira (art. 2.º/b).
Nestes últimos não existe o risco de
indisponibilidade dos activos em mercado: têm na base, como vimos, um negócio
diferencial[16].
III - Finalmente, é usual aplicar o critério
classificativo relacionado com o período de exercício[17]. Tal permite separar as
seguintes modalidades de warrants:
- Warrants de estilo
europeu, a poder ser exercidos apenas no final do prazo estipulado;
- Warrants de estilo
americano, podendo ser exercidos a qualquer momento desde a data de emissão;
- Warrants de estilo asiático, que pode ser
exercidos apenas no final do prazo convencionado mas por um preço que
representa uma média ao longo da maturidade do valor;
- Warrants com períodos
de black out, que incluem períodos durante os quais os warrants não podem ser
exercidos.
IV - O tráfego conhece igualmente exemplos de
warrants exóticos, tais como:
Os corridor warrants, que conferem o direito a
uma soma pecuniária sempre que o activo subjacente se mantenha dentro de um
intervalo de preços pré-fixado.
Os lookback warrants, em que o preço de
exercício é determinado a partir do preço mais baixo em período anterior (o
designado lookback period).
O universo de modalidades apresentadas não
pretende ser exaustivo: outras classificações poderiam ser apontadas.
5. Função do warrant como valor mobiliário
I - O aparecimento de um novo valor mobiliário
serve também para testar a adequação das indicações do direito positivo
português quanto à reconstituição de um conceito material de valor mobiliário
No código anterior, a técnica utilizada era a de
combinar uma cláusula geral com exemplos de valores mobiliários (art.3.º/1.a).
Não havia directamente um conceito.
No novo Código dos Valores Mobiliários, continua
a não haver um conceito directo: combina-se agora uma enumeração de valores
mobiliários com a possibilidade de reconhecimento legal ou regulamentar de
outros tipos de valores mobiliários (art. 1.º).
Para haver reconhecimento
regulamentar, nos termos do art. 1.º/2, os valores mobiliários devem cumprir
quatro requisitos:
- Ser documentos
representativos de situações jurídicas homogéneas;
- Visar, directa ou
indirectamente, o financiamento de entidades públicas ou privadas;
- Ser emitidos para
distribuição junto do público;
- Desde que o
reconhecimento seja de modo a assegurar os interesses dos potenciais
adquirentes.
Estes elementos funcionam como importantes
indícios do direito positivo quanto ao conceito de valor mobiliário.
II – A qualificação do warrant como valor
mobiliário assume interesse, em primeiro lugar, para verificar se os requisitos
materiais constantes do art. 1.º/2 do Código estão presentes. Ora, o problema
que essa caracterização dos elementos materiais do valor mobiliário em
confronto com os warrants prende-se com o terceiro requisito, ligado à função
de financiamento do valor mobiliário.
Impõe-se, a este propósito, distinguir.
Na emissão de warrants dependentes e na emissão
de warrants autónomos sobre valores mobiliários próprios, pode afirmar-se que a
finalidade é de tornar mais atractivos ou de servir de sucedâneo em relação aos
valores mobiliários que são activos subjacentes: haverá aí uma finalidade indirecta
de financiamento[18] (que se reconhece ainda que a emissão do warrant seja a título
gratuito).
Todavia, a finalidade de financiamento não
subjaz, por regra, à emissão dos demais warrants autónomos.
Se se assinala finalidade de financiamento está
a reconhecer-se essencialidade ao facto de o emitente auferir o prémio de
subscrição, assimilando esta instrumento a um valor mobiliário representativo
de dívida. É ponto de vista claramente redutor; o preço de subscrição, aliás,
pode na prática revelar-se muito reduzido.
Assim, a finalidade típica da emissão destes
instrumentos é de cobertura de risco de investimento ou de assunção de posição
especulativa em termos simétricos do que é feito pelo investidor.
Por exemplo: Se é realizada uma emissão de
warrant sobre divisas, é para especular em relação a determinada oscilação
cambial.
Tal também é nítido quando há uma emissão de
warrants sobre valores mobiliários alheios nos casos de concertação entre o
emitente do warrant e o emitente do activo subjacente, tendo aquele uma
classificação de notação de risco bem mais elevada que este[19]. Esta situação, em que o
emitente do warrant aufere frequentemente uma retribuição do emitente do activo
subjacente, ilustra bem que o móbil do emitente do warrant não se reduz ao financiamento
– demonstrando as limitações do requisito do financiamento para extrair um
conceito material de valor mobiliário.
III – Também à luz do novo Código dos Valores
Mobiliários, a qualificação dos warrants mostra interesse ante a nova categoria
dos instrumentos financeiros que o novo diploma acolhe, por inspiração da
Directiva relativa aos Serviços de Investimento.
Mais concretamente, face à contraposição,
introduzida por esta directiva, entre instrumentos financeiros e valores
mobiliários, mostra-se prioritário saber se o warrant é um valor mobiliário ou
se é um instrumento financeiro derivado. Trata-se de um ponto a analisar de
seguida.
6. O warrant como tipo de valor mobiliário
I - A qualificação dos warrants como valor mobiliário
não é um dado adquirido, mas um problema.
Em França, a Loi de Modernisation des Activités
Financiers ao tratar os warrants, omite uma tomada de posição sobre a
qualificação como valor mobiliário, o que a literatura considera uma postura
pragmática, ante a divisão doutrinal que a questão suscita[20].
No Reino Unido, o Financial Services Act também
evitou habilidosamente a qualificação, tendo tomado os warrants como
investments, categoria muito ampla de instrumentos financeiros em que se inclui
o que a literatura continental designa como valores mobiliários e também os
futuros e as opções. Pode, contudo, considerar-se que os warrants aí figuram
como tertium genus, sendo definidos separadamente das acções e das obrigações,
em local também distinto daquele em que surgem as definições normativas dos
futuros e das opções[21].
II – É útil proceder a este propósito por um
excurso pelas directivas comunitárias, para entender que a linha dominante do direito
comunitário aponta no sentido da qualificação dos warrants como valores
mobiliários.
Na Directiva do prospecto de oferta pública –
Directiva n.º 89/298/CEE, de 17 de Abril, de 1989, utiliza-se, no art. 3.º f),
um conceito amplo de valor mobiliário que inclui expressamente qualquer valor
mobiliário que confere o direito de subscrever outros valores mobiliários por
subscrição ou por troca.
A Directiva 89/592/CEE, de 13 de Novembro de
1989, relativa ao insider trading refere-se aos contratos ou direitos para
adquirir ou dispor de valores mobiliários como exemplos de valores mobiliários
(art. 1.º/2, alínea b)). Trata-se de uma indicação menos significativa,
porquanto aí se incluem também os futuros e opções e os contratos sobre índices
(art. 1.º/2, alíneas c) e d)).
Na Directiva relativa à Adequação dos Capitais –
Directiva 93/6/CEE, de 15 de Março de 1993 - é utilizado o conceito de warrant,
tomando-o por equivalente aos warrants sobre acções ou obrigações (art.
2.º/15). Este diploma contém igualmente menção aos warrants financeiros,
tomados como o instrumento emitido por uma entidade diversa do emitente do
activo subjacente que confere o direito a adquirir acções ou obrigações a um
preço estipulado ou o direito a garantir um ganho ou a evitar uma perda por
referência a flutuações num índice relacionado com um dos instrumentos
financeiros referidos na Directiva dos Serviços de Investimento (art. 2.º/16).
Não há uma qualificação directa como valor mobiliário, antes se referindo como
instrumento.
A Directiva relativa aos Serviços de
Investimento por seu turno, acaba também por qualificar os warrants como
valores mobiliários. O conceito de valor mobiliário aí recebido inclui qualquer
valor mobiliário que confere o direito de adquirir outro valor mobiliário por
subscrição ou troca ou dando direito a liquidação financeira. Além disso, o
Anexo B desta directiva, onde se elencam os instrumentos financeiros, os
warrants não figuram isoladamente: pode, também por este motivo, concluir-se
que este texto comunitário fornece uma indicação segura da qualificação dos
warrants como valores mobiliários.
III - O DL n.º 172/99,
de 20 de Maio, não abandona o intérprete na questão da qualificação do warrant
como valor mobiliário: opta, no seu art. 2.º, expressa e claramente por uma
resposta afirmativa.
Esta tomada de posição é importante.
Repare-se que o Código dos Valores Mobiliários
não qualifica todos os warrants como valores mobiliários; apenas o faz em
relação aos warrants incorporando direitos à subscrição, à aquisição ou à
alienação de acções, obrigações, títulos de participação e unidades de
participação em instituições de investimento colectivo (art. 1.º/1.e). Não se
refere aos warrants relativos a outros activos subjacentes que não sejam
valores mobiliários – deixando igualmente de fora os warrants apenas como
direito a liquidação financeira.
O próprio Código dos
Valores Mobiliários, no proémio do seu art. 1.º/1, admite, porém, que a lei
possa fazer tal qualificação. É o que faz, precisamente, o art. 2.º do DL n.º
172/99, de 20 de Maio. Estamos perante um valor mobiliário típico à luz do
ordenamento jurídico nacional.
Tal qualificação tem
implicações gerais quanto à vocação aplicativa de todas as normas relacionadas
com os valores mobiliários em geral (forma de representação, transmissão,
legitimação, etc.).
Assume, ainda, repercussões especiais ao nível:
1. Do mercado em que os warrants podem ser
admitidos à negociação, devendo ser negociados em bolsa a contado;
2. Do tratamento fiscal respectivo: merecem
tratamento como mais-valia ou rendimento de capital de valores mobiliários, e
não como instrumento financeiro derivado
IV – Os warrants representam, além do mais, um
tipo autónomo de valor mobiliário.
É sobretudo necessário entender esta asserção
através da distinção entre o warrant e as obrigações.
É verdade que os warrants com liquidação
financeira envolvam a assunção de um dever de pagamento de determinada quantia
pelo emitente: daí que o art. 6.º do DL n.º 172/99, de 20 de Maio, estabeleça o
limite referido no art. 349.º do Código das Sociedades Comerciais.
Frise-se que a aplicação do condicionamento
quantitativo prevista no art. 349.º CSC sofre de algumas limitações, já
visíveis no seu campo aplicativo directo. Quando é feita uma emissão de
obrigações indexadas, é impossível prever com exactidão quais os encargos
financeiros daí decorrentes[22] - referindo-se o limite do art. 349.º a um
elemento formal, que é o valor nominal das obrigações. O mesmo se dirá em
relação à emissão de warrants autónomos, dada a álea envolvida quanto à
evolução do preço do activo subjacente. Não pode utilizar-se, para este efeito,
no cálculo do limite máximo da emissão dos warrants o valor nominal dos
warrants (visto este não existir); devendo, ao invés, em homenagem ao espírito
do preceito societário, utilizar-se o valor nominal do valor mobiliário que
serve de activo subjacente.
Todavia o facto é que não há por detrás qualquer
mútuo[23]
– além da possibilidade de o montante apurado do saldo ser nulo. Dito de outro
modo, a emissão destes valores mobiliários não implica a recepção de fundos
reembolsáveis. A exposição atrás feita sobre a função assinalada à emissão dos
warrants[24] permite reforçar esta conclusão. A autonomia da figura é, pois,
clara.
7. Warrants e instrumentos financeiros derivados
I – A análise de direito positivo não pode fazer
esquecer que, do ponto de vista económico, há muitos pontos de contactos entre
os warrants e um dos tipos de instrumentos financeiros derivados: as opções.
Esta asserção toma como ponto de partida uma
noção económica de derivado, como sendo aquele instrumento financeiro cujo
valor deriva do valor de um activo subjacente que o primeiro toma como
referência[25].
Analisando o perfil
funcional do warrant do ponto de vista do investidor, os modelos de decisão
estratégica prendem-se com a expectativa de subida ou descida de preços de um
activo subjacente[26].
Tem-se também em conta o facto de que o preço do
warrant reflectirá as oscilações do preço do activo subjacente[27].
Tal sucede em razão directamente proporcional, em caso de warrant de aquisição
(call warrant); em razão inversamente proporcional para os warrant de alienação
(put warrant)[28].
Estas constatações empíricas jogam influência
determinante na conformação dos modelos de decisão dos investidores neste tipo
de valor mobiliários. O investidor tenderá a adquirir um warrant de aquisição
(call warrant) se espera que o preço desse activo se valorize (bull market).
Simetricamente, haverá tendência em adquirir um
warrant de alienação (put warrant) se a expectativa for de descida do preço do
activo subjacente (bear market).
Tal decisão de investimento pode justificar-se
seja para evitar perdas relacionadas com outro negócio em que o
investidor esteja envolvido, seja apenas para beneficiar da expectativa de
evolução dos preços do activo subjacente. O warrant pode servir, nessa medida,
propósitos de cobertura de risco ou de especulação.
II – Estes dados são muito relevantes para
atestar o risco particular envolvido no investimento em warrants.
Assim, repise-se que os warrants apresentam
possibilidades de perdas, na medida em que o valor do direito de aquisição ou
de alienação ou do saldo, em comparação com o preço do activo subjacente, pode
ser igual a zero. As perdas são limitadas por parte do investidor - limitam-se
ao valor do preço de subscrição ou de aquisição do warrant. Mas as perdas são
potencialmente ilimitadas no tocante à entidade emitente.
Uma confirmação do que acaba de se expor diz
respeito ao tratamento prudencial dispensado pelo direito bancário comunitário
aos warrants. Com efeito, a Directiva relativa à Adequação dos Capitais
equipara, para efeitos prudenciais, a utilização de warrants à utilização de
opções como instrumentos financeiros derivados (Anexo 1, n.º 6)[29].
III – À aludida aproximação económica não
corresponde uma assimilação jurídica dos warrants aos instrumentos financeiros
derivados. Aduzem-se seguidamente quatro principais razões para fundar uma
distinção.
Adiante-se, em primeiro lugar, que os
instrumentos financeiros derivados são contratos padronizados[30], o
mesmo não sucedendo com os warrants, em que assiste liberdade de conformação do
conteúdo das condições de emissão.
Demais, o warrant é dotado de negociabilidade,
sendo negociado em bolsa a contado (art. 10.º). A transmissão do warrant é
feita através da técnica do valor mobiliário e não do derivado: por efeito
translativo e não por compensação ou reversão de posições[31].
Decisiva é, ainda, a
circunstância de na génese do warrant haver um emitente e um mercado primário.
Nos instrumentos financeiros derivados, pelo contrário, há uma decisão da
entidade gestora no sentido de determinado contrato passar a ser negociável.
Tal permite distinguir os warrants das opções, em que há a disponibilização de
cláusulas padronizadas, mas que não correspondem a uma emissão em sentido
técnico.
Há, por fim, um indício
muito ligado de perto ao núcleo dos valores mobiliários: é a possibilidade de
reunião em assembleia dos titulares dos warrants, por aplicação dos arts.355.º
a 356.º CSC ex vi art. 15.º do DL n.º 172/99, de 20 de Maio. Tal característica
é totalmente alheia aos instrumentos financeiros derivados.
§ 3.º A emissão de warrants autónomos
8. Capacidade para emissão
I – O DL n.º 172/99, de 20 de Maio estabelece no
art. 4.º o regime da capacidade de emissão destes valores mobiliários.
Assim:
1. É reconhecida capacidade genérica directa aos
bancos, à Caixa Económica Montepio Geral, à Caixa Central de Crédito Agrícola Mútuo,
às sociedades de investimento e ao Estado.
2. Reconhece-se capacidade genérica, mas
dependente de autorização do Banco de Portugal, outras instituições de crédito
e sociedades financeiras de corretagem.
3. Finalmente, têm capacidade restrita as sociedades
anónimas que não caibam no universo antes mencionado, apenas podendo emitir
valores mobiliários próprios.
Merece atenção o sistema
instituído para as outras instituições de crédito e as sociedades financeiras
de corretagem. A lei prevê que haja a fixação geral e abstracta dos requisitos
de autorização através de Aviso do Banco de Portugal (art. 4.º/2); o que não
dispensa, caso a caso, que cada uma destas entidades careça de autorização para
emitir.
II – O fundamento deste quadro - essencialmente dualista
- assenta na maior confiança depositada pelo legislador nas entidades sujeitas
a controlo prudencial em relação às comuns entidades societárias.
É traço com paralelo nos sistemas jurídicos
próximos, nomeadamente em França e em Itália[32].
Tenha-se todavia em mente que o problema não é
apenas de endividamento, mas também de expertise na área da emissão de
instrumentos financeiros mais sofisticados. Veja-se neste contexto que em
Itália as regras de admissão indicam como requisitos a existência de sistemas
de gestão de risco e como critério a experiência do emitente em anteriores
emissões de warrants autónomos ou instrumentos financeiros semelhantes,
reservando-se o direito de inquirir sobre as estratégias adoptadas para
cobertura do risco de emitente associado[33].
9. Competência para a decisão e controlo
administrativa da oferta
I – As regras em matéria da competência para a
deliberação de emissão encontram-se estabelecidas no art. 5.º do DL n.º 172/99,
segundo o qual:
- Em geral, a emissão de
warrants autónomos pode ser deliberada pelo órgão de administração do emitente;
- Se são warrants próprios deve haver
autorização estatutária para a emissão (art. 5.º/2)[34].
Importa notar que não há quaisquer exigências de
forma para a deliberação de emissão dos warrants.
II - O regime dos warrants autónomos consagra um
sistema mais avançado de controlo administrativo da oferta. Em particular,
procura-se evitar a duplicação de controlo administrativo hoje patente na
emissão de obrigações através de oferta pública, que injustificadamente se
sujeitam quer ao registo prévio da CMVM quer ao registo comercial.
Vejamos o que ocorre no caso da emissão de
warrants autónomos. A emissão por oferta particular de warrants sobre valores
mobiliários próprios, o DL n.º 172/99, de 20 de Maio consagra o dever de
submeter a registo comercial a emissão de, através da alteração que impôs ao
art. 3.º do Código de Registo Comercial, sendo-lhe aditada uma nova alínea
(alínea v).
Tratando-se de emissão por oferta pública em
mercado nacional, independentemente do activo subjacente em causa, há sujeição
ao dever de registo prévio da oferta na CMVM. Há também uma preocupação de
controlo das emissões efectuadas por emitentes sujeitos a lei pessoal
portuguesa mas que dirijam ao estrangeiro ofertas públicas de warrants: por
isso prevê a nova redacção do art.3.º, alínea v) do Código de Registo Comercial
que a inscrição no registo comercial também nessas ocasiões deva ser efectuada[35].
Um dos aspectos
interessantes diz respeito à introdução de um novo critério de qualificação da
oferta como pública – o qual, aliás, subsistirá com o novo Código.
Os critérios fundamentais de qualificação da
oferta como pública são basicamente três: a indeterminação dos destinatários, a
utilização de meios promocionais que indiciem formas de comercialização pública
e a natureza do emitente do valor mobiliário[36].
No o DL n.º 172/99, de 20 de Maio, acrescenta-se
um novo critério: o da natureza do emitente do activo subjacente, embora se
circunscreva às ofertas de warrants com liquidação física relativamente a
acções emitidas por sociedades abertas. Assim, reza o art.12.º:
Considerar-se-á pública
a oferta de subscrição de warrants autónomos sobre acções ou sobre valores
mobiliários que confiram direito à subscrição, aquisição ou alienação de acções
sempre que a entidade emitente das acções seja sociedade de subscrição pública[37],
ainda que a subscrição seja reservada aos respectivos accionistas.
10. Particularidades em função do activo
subjacente
I - Do ponto de vista da política legislativa o
recurso a activos subjacentes tende a ser controlado.
Dois fundamentos convergem a justificar este
aspecto do regime:
- Depõem, neste sentido, exigências de
informação sobre o activo subjacente, que se justificam dada a correlação de
preços entre o warrant e o activo subjacente[38], para contrariar o risco da
opacidade; e
- Valem igualmente exigências de um mercado
líquido que torne fácil encontrar o activo subjacente, por forma a prevenir o
risco de indisponibilidade do activo subjacente.
II - Entre nós, há uma enumeração de activos
subjacentes no art. 3.º: são permitidos warrants sobre valores mobiliários,
warrants sobre índices, warrants sobre taxas de juro e warrants sobre divisas.
Devem assinalar-se duas notas quanto a este
elenco. Veja-se que os warrants sobre mercadorias não são aqui incluídos. Além
disso, não há oposição directa a warrants sobre warrants, embora se duvide da
função económica que este possível instrumento possa desempenhar.
Há todavia uma tipicidade dos activos
subjacentes, na medida em que a enumeração de activos subjacentes é fechada.
Mas a alínea e) do art. 3.º estabelece que o
Ministro das Finanças pode, através de portaria, alargar o rol dos activos
subjacentes.
Procura-se deste modo criar ajustamento em
relação à capacidade de inovação dos mercados, dando assim origem a um sistema
misto: existe uma tipicidade legal e também uma tipicidade administrativa.
Há uma dúvida interpretativa em relação à
possibilidade de alargamento, por portaria do Ministro das Finanças, aos
activos de natureza análoga. Em causa está saber se é necessário que o “novo”
activo subjacente admitido através de regulamento seja análogo a um dos tipos
de activo subjacente já previstos no DL n.º 172/99, de 20 de Maio; ou se, ao
invés, a fixação de um activo de natureza análoga supõe a reconstituição das
características comuns a todos os activos subjacentes, por forma a que, a
partir desse exercício, de extraia um princípio geral a aplicar ao activo
subjacente a reconhecer através de portaria ministerial.
Sinteticamente, pretende equacionar-se se o art.
3.º nos reenvia para a analogia legis ou para a analogia iuris. Ora, é a
primeira hipótese que nos parece desprender-se do espírito da norma. Por razões
de segurança é preferível considerar que se admite apenas analogia legis. É,
por outro lado, duvidoso que se logre reconstituir uma unificação de
característica comuns a todos os activos subjacentes.
Tal permite-nos caracterizar a tipologia
presente no art. 3.º como taxativa.
Em decorrência desta
conclusão, dir-se-á que os warrants sobre mercadorias não podem ser consagrados
através de simples portaria.
III – Os warrants sobre valores mobiliários alheios
sugerem preocupações particulares em função dos riscos de incumprimento pelo
emitente.
Entende-se, com efeito, que os warrants sobre
valores mobiliários envolvem deveres acessórios implícitos.
O ponto é facilmente comprovável perante a
disciplina dos warrants dependentes. Nos warrants sobre valores mobiliários a
emitir há deveres de emitir: a deliberação obrigações com warrant implica, por
este motivo, a deliberação de aumento de capital (art. 366.º/3, aplicável ex vi
do art.372.º-B/5, ambos do CSC).
Como estruturar juridicamente um mecanismo
sucedâneo para os warrants autónomos?
Uma solução legislativa seria a de impor que os
activos subjacentes no caso dos warrants de aquisição estivessem na
titularidade do emitente e fossem sujeitos a um mecanismo de bloqueio, para
garantia dos deveres de intransmissibilidade. O direito italiano envereda por
este caminho, ao impor, nos warrants com direito de aquisição de acções, que o
emitente coloque à custódia de um intermediário financeiro em depósito fiduciário
(escrow account) os valores a que os warrants se referem[39].
Outra possibilidade seria, como é previsto do
direito belga, no artigo 46 das Lois Coordonées sur les Sociétés Commerciales,
o de reger-se pelo regime geral de venda de coisa futura. O emitente ficaria
obrigado, nos termos do art. 880.º CC, a diligenciar para que o titular do
warrant ficasse na titularidade do activo subjacente, caso o warrant fosse
exercido.
O nosso sistema optou por expediente diverso: neste
caso é obrigatória a possibilidade de exoneração através de liquidação
financeira (art.13.º/2). O risco é assim muito menor.
III – Em alguns casos, exige-se autorização do
emitente do activo subjacente: assim sucede em França, por exemplo, em que o
emitente do activo subjacente tem o direito de se opor à emissão[40].
Em Portugal, é exigida a mera comunicação à
entidade emitente do activo subjacente. Apenas se imporá uma autorização da
entidade que apura o índice, quando este constitua o activo subjacente
11. Normas de conflitos e warrants
I – A globalização dos mercados torna de relevo
crucial o domínio do regime aplicável aos warrants quando envolvam ligações
relevantes a mais do que uma ordem jurídica.
Neste contexto, devem ponderar-se três distintos
factores de plurilocalização:
1. A lei pessoal do emitente;
2. A lei pessoal do emitente dos valores
mobiliários que servem de activo subjacente; e
3. A lei aplicável aos valores mobiliários que
servem de activo subjacente, quando puder ser escolhida pelas condições de
emissão (art.40.º/1, in fine).
II – O diploma regulador
dos warrants é circunscrito aos warrants emitidos, negociados ou
comercializados em território nacional (art.1.º): insiste-se em formulação ao
Código de 1991, que é permeável a vários reparos: é difícil precisar o que é
emissão em Portugal e é árdua a distinção entre negociação e comercialização.
Não será, por isso, de estranhar que a fórmula do art. 2.º/1 do Código de 1991[42]
tenha sido abandonada com o novo código.
III - Há indicações mais importantes
provenientes do conjunto de regras de conflitos consagrado no Código dos
Valores Mobiliários, que representam um sistema mais moderno e aperfeiçoado.
Em regra geral, o conteúdo dos valores
mobiliários é determinado pela lei pessoal do emitente, de acordo com art.
40.º/1.
Significa isto que os warrants estão subtraídos
à possibilidade de designação contratual da lei aplicável, pois a electio juris
apenas é permitida nos valores mobiliários representativos de dívida (art.
40.º/1, in fine) e, como vimos, os warrants demarcam-se dos valores
representativos de dívida[43].
IV – À disciplina descrita exceptua-se o regime
dos warrants relativos a valores mobiliários com liquidação física: aí aplicar-se-á
também a lei pessoal do emitente dos valores mobiliários que são activo
subjacente (art. 40.º/2).
Este preceito torna mais exigente a emissão de
warrants sobre valores mobiliários em situações privadas internacionais.
Por exemplo:
O direito do Luxemburgo admite sociedades
emitentes de warrants que não sejam instituições de crédito; a França e
Portugal não. Se em Portugal ocorrer uma emissão de warrants de uma sociedade
sujeita à lei pessoal do Luxemburgo sobre acções da France Telecom, com
liquidação exclusivamente física, deverá cumprir os requisitos de capacidade
quer do Luxemburgo, quer da lei francesa.
Não parece que deva aplicar-se aos warrants
sobre índices ou sobre cabazes de acções - pois tal envolveria a necessidade de
obter confirmação da conformidade com o Estado do emitente de todos os valores
incluídos no índice ou no cabaz e da lei contratualmente designada como
aplicável, o que se revelaria excessivo ante o espírito da norma.
§ 5.º Construção jurídica dos warrants
12. A tensão entre autonomia e equiparação
I - O warrant tem autonomia económica em relação
ao activo subjacente.
Como vimos, mesmo quando o activo subjacente é
valor mobiliário, não tem de ser emitido pelo emitente do warrant. Nestes casos
– de warrants sobre valores mobiliários alheios - não há ligação jurídica entre
o titular do warrant e o emitente do activo subjacente.
Mas o facto de ser um título causal faz com que
o seu regime jurídico oscile entre a autonomia e a equiparação ao regime do
activo subjacente.
Lembram-se alguns aspectos do regime em
que predomina a equiparação:
- Os accionistas têm
direito de preferência na subscrição dos warrants próprios sobre acções (art.
367 CSC ex vi 11.º/2);
- Deve ser assegurada
posição paritária em caso de alterações patrimoniais significativas em relação
a dos warrants próprios sobre acções (art. 368/3 CSC ex vi 11.º/2);
- No novo regime os
warrants de aquisição de acções apenas relevam para efeitos de participações
qualificadas se o warrant é de facto exercido: deixam de contar os designados
direitos de voto potenciais (art. 20.º). Mas nem todos os warrants são objecto
de OPA obrigatória: apenas o são quando emitidos pela própria sociedade visada
(art.187.º/1).
Outros pontos do direito
positivo denotam paralelas tendências de equiparação ao regime do activo
subjacente: é designadamente o que se dirá no tocante ao regime de qualificação
da oferta e de direito de conflitos, como atrás referido.
II – Note-se haver tendência de maior ligação à
situação jurídica subjacente no caso de warrants sobre valores mobiliários,
dada a vis attractiva que este particular activo subjacente supõe.
Um problema colocado a
este propósito reside nas alterações ao activo subjacente. O art. 7.º prevê a
regulamentação de previsões contratuais para a ocorrência de alterações
relevantes em relação ao activo subjacente, que poderão resultar na faculdade
de liquidação financeira antecipada ou na modificação das condições de emissão.
Frise-se que tais alterações devem ser
imprevisíveis para redundar no efeito que a lei prevê como possível. A título
de exemplo, veja-se que o master agreement (contrato-tipo) do ISDA não reputa
de relevante, nos warrants de aquisição de acções, a comum distribuição de dividendos[44].
O Regulamento da CMVM prevê, neste contexto, a
possibilidade de designação de um agente de cálculo para a correcção das
condições de emissão em caso de alteração das circunstâncias.
13. A estrutura do direito incorporado no
warrant; síntese
I – Resta examinar de perto a estrutura do
warrant no tocante à situação jurídica neles representada.
Trata-se de um direito potestativo que é
incorporado no warrant[45]. Correlativamente, o emitente encontra-se em
situação técnica de sujeição.
O direito incorporado no
warrant não pode reconduzir-se a uma categoria unitária, tal a dissemelhança de
direitos que pode incorporar.
Aproveitando as
classificações civilistas em torno dos direitos potestativos, dir-se-á que este
é um direito potestativo com destinatário, de exercício extra-judicial e
constitutivo[46].
O warrant representa um
poder, que pode não chegar sequer a ser exercido. Este extingue-se, assim, por
duas vias: ou pelo decurso do prazo de exercício (extinção por caducidade); ou
pelo exercício (extinção por cumprimento).
II - Anota-se, porém,
que o warrant é apresentado pelo novo Código dos Valores Mobiliários como
incindível, pois este diploma não reconhece direitos destacados dos warrants: a
alínea f) do art. 1.º, ao referir-se aos direitos destacados, não remete para
qualquer valor mobiliário, mas remete apenas para os valores mencionados nas
alíneas a) a e), o que equivale a uma exclusão directa dos warrants.
O ponto não deve
impressionar. Se um warrant conferir direito à aquisição de uma pluralidade de
valores mobiliários ou do mesmo activo subjacente em diversos momentos
distintos, não será permitido o seu destaque para o exercício separado? Em tese
dir-se-á que sim, o que destrói a base do raciocínio codicístico.
II – O reconhecimento do direito inerente ao
warrant como direito potestativo não pode fazer esquecer o sistema de registo e
controlo em que os valores mobiliários se negoceiam.
O ponto é especialmente relevante no tocante aos
warrants de aquisição de valores mobiliários. Aqui, o exercício do warrant
implica, ipso facto, o requerimento para proceder ao registo de titularidade em
seu nome[47]. Não torna automaticamente o titular do warrant em titular do
valor mobiliário que é activo subjacente. Para tal regem as normas gerais em
matéria do valor do registo, que não cabe explicitar nesta sede[48].
A análise de direito
privado que há de efectuar-se relativamente aos warrants autónomos
relativamente a valores mobiliários não pode igualmente descurar a questão se
saber se há aqui direitos sobre direitos. A resposta para que propendemos é
negativa. Depende do conceito de valores mobiliários que se perfilha: mas julgo
que não, porque o valores mobiliários constitui uma estrutura incindível entre
forma e direito.
IV – Mais importante é situar o warrant na
técnica do valor mobiliário. É tradicional referir-se que, atenta a
essencialidade da forma de representação no esquema de representação de
direitos, a génese do valor mobiliário seria sempre posterior à génese do
direito incorporado.
O exemplo mais claro diz respeito à acção, que
se constitui para efeitos internos com a escritura pública, mas apenas ganha
existência como valor mobiliário no momento da emissão do título ou da primeira
inscrição em registo. Aqui o documento é sempre declarativo de direitos, sendo
essencial para o seu exercício mas não para a sua existência - nunca é
constitutivo[49].
Nos warrants, a estruturação é diversa. Na falta
de exigências de forma para a deliberação de emissão, o documento – escrito ou
electrónico - é constitutivo do direito representado. Antes da forma de
representação, o direito representado no warrant não tem existência jurídica.
Novembro de 1999, Paulo Câmara
Retirado de: http://www.fd.ul.pt/licenciatura/dvm/estudos/warrants.htm
[1] Artigo em preparação, destinado
exclusivamente aos alunos da Faculdade de Direito da Universidade de
Lisboa do ano lectivo 1999/2000. |
[3] Search warrant, arrest warrant, land warrant, warrant issuance, entre outros. A acepção que para aqui releva será a de stock
warrant, definido como “certificates entitling the owner to buy specified
amount of stock at a specified time for a specified price” (Black’s Law
Dictionary6, St. Paul, Minn. (1990), 1585-1586). |
[4] A resposta a
esta questão depende da posição a tomar, evidentemente, em relação à
tipicidade dos valores mobiliários e aos limites desta tipicidade. Sem
embargo, sempre se dirá que apesar de não ser essa a intenção do diploma
(reflectida no terceiro parágrafo do preâmbulo) há aspectos do novo regime que
podem mostrar-se aplicáveis por analogia aos warrants dependentes. Tal apenas
não sucederá em relação aos traços do regime jurídico ligados à emissão dos
warrants, que aliás o DL n.º 172/99, de 20 de Maio, trata desenvolvidamente. |
[9] Aviso BP n.º
7/96, 2.º, n.ºs 16 e 17. Tenha-se presente que à luz deste diploma e ante o
pregresso Código, é de questionar a possibilidade de o reconhecimento de um
novo tipo de valor mobiliário ocorrer através de via regulamentar; aliás, problema
paralelo verifica-se em relação à admissibilidade de obrigações perpétuas,
também sancionada indirectamente através de Aviso do Banco de Portugal
(igualmente em transposição de uma directiva). O art.1.º/2 do novo Código
torna, agora, clara esta possibilidade: cf. infra, 4. |
[12] FRANCESCO MESSINEO, Operaciones de Banca y de Bolsa, Barcelona,
(1957), 76-93. |
[18] ALASTAIR HUDSON, The Law on
Financial Derivatives2, cit., 30; LUIS FERNANDEZ DEL POZO, El Fortalecimento
de Recursos Proprios, Madrid, (1992), 178-179. |
[20] HUBERT DE VAUPLANE / JEAN-PIERRE
BORNET, Droit des Marchés Financiers, Paris, (1998), 58. |
[21] Financial Services Act, Schedule 1, Part 1, paragraph 4. Interessa todavia
anotar que os contratos diferenciais igualmente mereceram tratamento autónomo
no diploma britânico (Financial Services Act, Schedule 1, Part 1, paragraph 9. |
[24] Cf. supra, 4. |
[25] GUIDO FERRARINI, I Derivati Finanziari tra Vendita a
Termine e Contratto Differenziale, in FRANCO RIOLO (ed.), I Derivati
Finanziari. Profili Economici, Giuridici e Finanziari, Milano (1993), 27-61
(27). Entre nós, recomenda-se o estudo de AMADEU FERREIRA, Operações de
Futuros e Opções, in Direito dos Valores Mobiliários, Lisboa, (1997), 121-188. |
[28] Seria deslocado
ensaiar aqui uma análise sobre a avaliação económica dos warrants.
Tenha-se, todavia, presente que além do preço ou valor do activo subjacente,
a avaliação do warrant tem em conta igualmente o prazo de vencimento e
a volatilidade do activo subjacente. |
[29] Vd. também, mas em termos que
resultam menos claros, o Aviso do Banco de Portugal n.º7/96, Anexo VI, n.ºs 10 e
11. |
[31] Cf., quanto à
técnica peculiar de negociabilidade dos derivados AMADEU FERREIRA, Operações de
Futuros e Opções, cit., 180-182; e referindo-se aos warrants, Id., Direito
dos Valores Mobiliários, cit., 202. Adiante se compreenderá melhor também que
a técnica de garantia de disponibilidade do subjacente é diversa nos
instrumentos financeiros derivados, havendo aqui o funcionamento de cauções
(as margens) ajustadas diariamente (marked to market )(cf. infra, 9, III). |
[33] Art.2.2.14, n.º5
da Resolução da Consob n.º 11091, de 12 de Dezembro de 1997. |
[35] Previna-se
para o facto de não haver uma dicotomia perfeita entre o âmbito do registo na CMVM e o âmbito
do registo comercial, podendo figurar-se hipóteses em que uma oferta
particular não está sujeita a registo prévio na CMVM, não estando também
sujeita a inscrição no registo comercial. Não se deve estranhar este
resultado, que aliás se harmoniza com o sistema de controlo do novo Código,
concentrado nas ofertas públicas, relegando a comunicação à CMVM das ofertas
particulares para efeitos estatísticos. |
[37] A terminologia do
novo Código designa estas sociedades como sociedades abertas ao
investimento do público (art.13.º). |
[43] Cf. supra, 5. IV. |
[47] O registo deve
considerar-se oficioso para efeitos do art. 66.º, uma vez que por regra o
intermediário financeiro que recolhe as declarações de exercício de direitos
inerentes aos warrants estará em condições para lavrar os registos. |
[48] Arts. 73.º/1 e 74.º. |