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Paulo Câmara**

"A OPERAÇÃO DE TITULARIZAÇÃO"*

 

Sumário: § 1.º Introdução; § 2.º A titularização como operação; § 3.º A fase preliminar de avaliação de créditos para titularização; § 4.º A cessão de créditos para titularização;         § 5.º A emissão de valores mobiliários na sequência de operações de titularização.

§ 1.º Introdução


I – O desenvolvimento tecnológico deste final de século e a introdução da moeda única europeia, com a consequente eliminação do risco cambial no âmbito da zona do euro, provocaram mudanças sensíveis nos mercados de valores mobiliários mundiais. Acentuou-se a tónica da internacionalização e da integração dos mercados, o que se revela nomeadamente numa maior tendência para a deslocalização das decisões de investimento por parte de investidores ou emitentes. E eleva-se igualmente o caudal de transmissões internacionais relativas a valores mobiliários, seja por via da realização de ofertas públicas transfronteiriças, seja por via da admissão à negociação em bolsas estrangeiras.

Este contexto traz fundas consequências na moderna evolução do direito dos valores mobiliários. É estimulada a concorrência legislativa entre Estados, cada qual procurando apresentar-se apetrechado com um arsenal de normas jurídicas a regular, em termos adequados, os clássicos e os modernos instrumentos mobiliários[1]. A análise económica do direito adquire redobrada importância em trabalhos de reforma legislativa, na senda das soluções mais eficientes. O sistema jurídico passa, pois, a constituir um elemento da competitividade dos mercados, assumindo-se como um instrumento de atracção de investidores e de emitentes.

Por estes motivos, o momento é propício para proceder a uma revisão crítica das modalidades mobiliárias de captação de aforro e do respectivo recorte normativo.

A partir desse exercício, uma das principais deficiências reveladas no sistema jurídico português prende-se com a sujeição dos valores mobiliários representativos de dívida a um sistema de duplo registo. Sucede, com efeito, que a emissão de obrigações realizada através de oferta pública está sujeita a inscrição no Registo Comercial e a registo prévio na Comissão do Mercado de Valores Mobiliários[2]. Esta circunstância, com explicação histórica na precedência da codificação societária sobre a codificação mobiliária, representa actualmente uma infundada duplicação de instâncias de controlo de legalidade, com severo prejuízo para os custos de emissão e com o agravamento da morosidade associada ao processo de emissão. Não pode esquecer-se, a este propósito, que as estatísticas actuais entre nós dão conta de um cada vez mais reduzido número de emissões públicas de empréstimos obrigacionistas clássicos, particularmente por parte de emitentes não bancários[3].

Apesar desta ineficiência normativa, a verdade é que os tempos mais recentes conheceram intervenções legislativas que traduzem avanços do sistema mobiliário nacional, explícita e intencionalmente movidos pela globalização dos mercados e pela concorrência entre ordenamentos jurídicos. Aqui se incluem, nomeadamente, o novo Código dos Valores Mobiliários, aprovado pelo DL n.º 486/99, de 13 de Novembro, o regime dos warrants autónomos constante do DL n.º 172/99, de 20 de Maio, e o tratamento legislativo conferido às operações de titularização, inaugurado com o DL n.º 453/99, de 5 de Novembro. Concentrar-se-ão estas páginas neste último.

II – A titularização parte da feliz resposta a duas ordens de utilidades. De um lado, esta operação assenta na vantagem encontrada na cessão de créditos por parte de entidades que, por virtude da sua actividade profissional, lidam regularmente com um conjunto significativo e temporalmente estável de devedores, vendo o seu desempenho financeiro melhorado ao libertarem-se de parte do universo dos créditos detidos.

De outro lado, constata-se que, atendendo à função de legitimação do valor mobiliário, o seu preço em mercado será tanto maior quanto mais elevado for o valor do direito subjacente – constituindo designadamente factor de apreciação a circunstância de a situação jurídica de base ser rodeada de uma garantia a favor do titular do valor mobiliário[4].

É da reunião destas utilidades que desponta a titularização[5]: em primeira aproximação, dir-se-á que esta envolve uma transmissão em massa de créditos aptos a gerar fluxos financeiros duradouros, com o objectivo de estes virem a servir de garantia a situações jurídicas representadas por valores mobiliários.


III – A titularização é a tradução possível, conquanto que não perfeita, de uma designação anglo-saxónica  - securitization. O termo nacional foi adoptado pelo DL n.º 453/99, de 5 de Novembro, diploma que regula as operações de titularização, aí compreendendo a cessão de créditos para efeitos de titularização, a constituição e funcionamento dos veículos de titularização admitidos e a emissão de valores mobiliários com base neste esquema.

Por prudência, cabe preliminarmente advertir que à sucessão de neologismos nacionais que se perfilhavam como candidatos para a tradução do vocábulo anglo-saxónico securitization[6] - securitização, titularização, mobilização[7] - corresponde uma variedade ainda mais intensa de significados que a esta são atribuídos.

A pluralidade de sentidos atribuídos à titularização e a falta de rigor com que a expressão é muitas vezes empregue são de tal modo notórios que se chega a questionar a efectiva existência de um significado técnico subjacente àquele conceito: um autor britânico apelidou-o severamente como “a buzz word lacking any technical meaning”[8]. Similarmente, já houve quem afirmasse tratar-se de um dos termos mais ambíguos do vocabulário jurídico[9].

    Não se reputam, porém, como justas estas observações. A titularização tem um espaço demarcado no tráfego e na literatura, apesar da sua púbere existência. Em vez de lhe apontar traços de ambiguidade, há que anotar o acentuado poliformismo do fenómeno e a diversidade das configurações que, na prática, recebe. Sucede, aliás, que a diversidade de esquemas de titularização se explica, não apenas pela sua versatilidade, mas também por razões históricas, ligadas à génese do fenómeno.


IV – A origem histórica da titularização confirma dois traços profundos a marcar o percurso evolutivo do direito dos valores mobiliários. De um lado, revela a influência mobiliária, sentida ao nível mundial, de soluções que viram a luz pela primeira vez no espaço jurídico norte-americano; de outro lado, atesta que, em direito dos valores mobiliários todos os avanços significativos se produziram em contextos de crise[10].

O expediente da titularização ainda ostenta a aura de novidade. A sua génese situa-se nos anos trinta nos Estados Unidos no ambiente da Grande Depressão, a causar profunda crise no sector do crédito imobiliário[11]. O National Housing Act de 1934 viria a estar ligado de perto à figura, na medida em que este diploma pretendeu criar um mercado secundário de créditos hipotecários como meio de auxiliar instituições de crédito imobiliário face ao risco de incumprimento. Houve, no entanto, que aguardar quase quatro décadas para se verificar, nos anos setenta, o aparecimento em termos estruturados de valores mobiliários representativos de dívida cujo reembolso era garantido por agências públicas federais – tais como a Government National Mortgage Association (GNMA ou, na gíria, Ginnie Mae), a Federal National Mortgage Association (FNMA ou Fannie Mae) e a Federal Home Loan Mortgage Company (FHLMC, também designada, no jargão do mercado,   Freddie Mac)[12]. Daqui surge uma constatação relevante: a titularização não nasceu em puro ambiente de mercado.

 

V – A evolução histórica do processo de titularização desenvolveu-se em direcção a uma célere diversificação dos quatro pólos essenciais do fenómeno. De um lado, deve ter-se em conta a diversificação de direitos de crédito utilizados; a que acresce a pluralidade de formas jurídicas em que assentam os cedentes e os cessionário nestes processos, condição importante para a internacionalização do fenómeno.

 

VI - Interessa, em primeiro lugar, tomar nota da extrema diversificação de direitos utilizados nos processos de titularização neste percurso histórico. A titularização teve, como vimos, um despontar no tráfego em torno do mercado hipotecário (mortgage-backed securities), tendo inicialmente por base a emissão de valores mobiliários garantidos por direitos de crédito com garantia hipotecária. A partir dos anos oitenta, alargou-se esta técnica a outros bens, o que justifica, do ponto de vista terminológico, que nos Estados Unidos se tenha vulgarizado o termo mais amplo de asset-backed securities para designar os valores mobiliários emitidos com base em operações de titularização.

    Assim, passaram a funcionar como activos mobilizáveis créditos a empresas, créditos emergentes de locação financeira, créditos emergentes de cartões[13] e outros tipos de crédito ao consumo. O alastramento a outro tipo de bens – inclusivamente de natureza não financeira - tem sido contínuo, não sendo possível indicar, neste momento, um universo cristalizado de bens mobilizáveis através desta técnica[14]. Apenas por razões pragmáticas, ligadas à facilidade de transmissão em massa, se verifica ainda uma certa padronização dos direitos de crédito a mobilizar.


VII – O êxito da titularização reflectiu-se ainda numa diversificação de cedentes de direitos de crédito transmissíveis (originators) – o que, aliás, foi uma directa decorrência da diversificação das situações jurídicas activas que estão na base de processos de titularização.

A racionalização da utilização dos fundos próprios, em benefício dos rácios de solvabilidade foi, numa primeira fase, aproveitada apenas por sociedades bancárias, sob influência das exigências prudenciais que apelam a uma racionalização dos fundos próprios, empreendidas nomeadamente pelo Comité de Basileia e pelo direito comunitário. No entanto, as preocupações prudenciais e de eficiência de gestão foram igualmente partilhadas por outras sociedades cuja actividade não se desenvolve na área financeira, vislumbrando-se na titularização uma técnica de gestão de créditos potencialmente apicável a qualquer empresa.

Refira-se designadamente que, no aproveitamento das sinergias dos grupos de sociedades, a possibilidade de potenciar uma racionalização do desempenho financeiro das sociedades coligadas é aumentada através da cessão de créditos das várias sociedades do grupo a um mesmo cessionário, para obter maior liquidez do valor mobiliário emitido[15].

 

VIII – Importa ainda tomar nota da vincada diversificação de estrutura, em atenção à natureza da pessoa jurídica emitente dos valores mobiliários emitidos na base de operações de titularização.

No contexto norte-americano, a forma embrionária de titularização implicava uma aquisição de créditos por bancos. Ulteriormente, o processo passou a ter como característica o facto de envolver transmissões de créditos do seu detentor originário (na gíria designado por originator ou sponsor) para uma outra entidade, que funcionaria como “veículo” da operação de financiamento (special purpose vehicle ou special purpose entity) através da emissão de valores mobiliários.

Este aspecto consolidou-se de modo a que o processo de titularização passou a singularizar-se pela contraposição generalizada, como sujeitos jurídicos distintos, entre o cedente e o cessionário dos créditos a mobilizar[16].

A estrutura jurídica do cessionário passa, no tráfego internacional, a denotar também reflexos do polimorfismo que caracteriza a titularização. Assim, nos ordenamentos anglo-americanos, o cessionário pode estruturar-se como trust, como fundo de investimento ou como sociedade[17].

    Em certa medida, o nosso ordenamento jurídico aparta-se deste avanço ao consagrar um princípio de tipicidade de entidades cessionárias[18]. Além disso, mercê do alheamento continental em relação aos trusts[19], acabou por reconhecer como veículos de operações de titularização apenas as sociedades de titularização e os fundos de titularização.

Esta diversidade estrutural - ainda que em menor grau no direito português - acarreta consequências marcantes quanto à construção jurídica do fenómeno, pois impede a recondução, a um tipo unitário, dos valores mobiliários emitidos na base de processos de titularização.

 
IX – Há, por último, que registar a diversificação geográfica deste expediente financeiro, uma vez que, por influência da globalização dos mercados financeiros, a utilização de técnicas de titularização espalhou-se ao nível mundial.

Apesar de o mercado norte-americano apresentar ainda os números de utilização mais intensa destas operações[20], o facto é que cedo o fenómeno se alargou à Europa. Aqui, destaca-se a difusão que a técnica de titularização encontra no Reino Unido, na Bélgica[21] e em França, tendo sido, neste último caso, os fonds commun de créances primeiro regulados pela Lei n.º 88-1201, de 23 de Dezembro, revista em 1993[22]. A Espanha seguiu o mesmo caminho em 1992, através da aprovação de uma lei sobre regime e fundos de investimento e de titularização, primeiro hipotecária (Lei 19/1992, de 7 de Julho) e mais recentemente estendida a outros activos financeiros (Real Decreto n.º 926/1998).

    Até à entrada em vigor do  DL n.º 453/99, de 5 de Novembro, o ordenamento jurídico nacional apenas conhecia a emissão de obrigações hipotecárias como forma próxima da titularização de créditos (DL n.º 125/90, de 16 de Abril)[23]. Trata-se de valores mobiliários representativos de dívida cuja situação jurídica subjacente é reforçada através de um privilégio creditório especial sobre os créditos hipotecários afectos à emissão[24]. Aí coexistirá, por regra, na mesma pessoa jurídica, o detentor originário dos créditos e o emitente dos valores mobiliários[25], o que constituirá porventura motivo do seu menor sucesso em Portugal quanto à sua utilização pelo tráfego[26]. Contudo, são instrumentos jurídicos assentes em modos de captação de aforro cujos rudimentos são mais antigos, que encontram antecedentes remotos em experiências de emissão de títulos de dívida de crédito hipotecário na Alemanha, desde o século XVIII[27].

    Tem-se, todavia, presente que esse não é o esquema central de titularização. Este, nas mais das vezes, repousa em estruturas mais complexas, em que a par do cedente de créditos (originator) figura um cessionário (special purpose vehicle (SPV) ou special purpose entity (SPE)) que toma a iniciativa da emissão dos valores mobiliários com base nos créditos cedidos.

 
§ 2.º A titularização como operação

I – Apesar de se frisar que a titularização não envolve necessariamente instituições financeiras do lado dos cedentes, interessa enquadrar a titularização como peça do sistema financeiro, por forma a entender por que razão esta corresponde a uma fase mais elaborada de desintermediação financeira.

    Embora seja trivial, é útil lembrar que configuração típica do sistema financeiro baseada no financiamento bancário supõe a interposição das instituições de crédito entre os aforradores e os sujeitos carecidos de financiamento. É graças à dupla função das instituições de crédito  - recepção de fundos reembolsáveis e concessão de crédito –, somada ao efeito jurídico-real de transmissão da propriedade dos bens (fungíveis) depositados para a esfera do depositário, que este circuito económico flui. Assim se apresenta o sistema financeiro assente na intermediação, na sua acepção mais central.

    O mercado de valores mobiliários representa, como também é sabido, uma configuração diferente no sistema financeiro. De facto, a emissão de valores mobiliários logra colocar em contacto directo o tecido empresarial e os aforradores – aqueles procurando no mercado os meios alternativos ao financiamento da sua actividade, estes buscando no investimento mobiliário mecanismos de aforro diferentes das tradicionais aplicações bancárias[28]. Neste desenho, passa a haver menor dependência do financiamento bancário e, relegadas para a margem, as instituições financeiras vêem neste quadro um estímulo para a sua diversificação de actividades e, em particular, para a prestação de serviços associados ao mercado de valores mobiliários (colocação, consultoria, gestão de carteiras, transmissão de ordens, entre outros). Trata-se do que, na sua formulação mais simples, se pode designar de desintermediação financeira de 1.º grau.

    Neste percurso, a titularização tem a singularidade de corresponder a uma satisfação simultânea de necessidades dos aforradores, do sector empresarial e das entidades financeiras[29]. A jusante, envolve um contacto entre as entidades de financiamento (os special purpose vehicles) e os investidores, através da emissão de valores mobiliários. A montante, supõe, ou o funcionamento tradicional do sistema financeiro, envolvendo a optimização prudencial da actividade de concessão de crédito; ou implica alternativamente o desenrolar de actividades negociais - sem intervenção de instituições financeiras – que pressupõe a assunção de posições creditícias e o afinamento da sua gestão. A titularização corresponde, nessa medida, a uma fase mais elaborada do circuito económico-financeiro, que podemos designar de desintermediação financeira de 2.º grau.

 

II – A partir daqui entende-se ainda ser mais ajustado analisar a titularização do ponto de vista dinâmico, por forma a abarcar as fases que, a montante e a jusante, aí estão compreendidas.

De facto, a titularização envolve uma sequência de actos e negócios jurídicos tendentes à comercialização em mercado secundário de valores mobiliários emitidos na base de direitos de crédito. A complexidade e a natureza processual da titularização conduz à sua qualificação como uma operação[30].

    Este ponto justifica um apontamento. Sucede que em alguma literatura depara-se o conceito de titularização como reportando-se ao conjunto de técnicas envolvendo a transformação de créditos (ou de outros bens a que não esteja associado um mercado secundário) em valores mobiliários líquidos, através da emissão de valores mobiliários[31]. Este formulação não revela, porém, alguns traços essenciais da figura, designadamente por se centrar no resultado do processo, e não nas etapas que compreende até à sua conclusão[32]. Por outro lado, não parece adequado focar principalmente a vicissitude modificativa em relação ao débito, uma vez que, na titularização de créditos, a modificação da relação obrigacional de base se reflecte apenas em relação à pessoa do titular – vicissitude que, aliás, no contexto global de transmissões de créditos em massa, não pode deixar de ser considerada de diminuta importância[33].

    Julgam-se, assim, que é mais correcto reunir três traços tipológicos que marcam este processo: a existência de uma transmissão de um conjunto de direitos de crédito de longa duração, idóneos a proporcionar frutos periódicos; a emissão de valores mobiliários; e o facto de os créditos funcionarem como garantia da situação jurídica subjacente representada através da emissão de valores mobiliários.

 
III – A análise precedente já permite apresentar, em termos mais acabados, a operação de titularização. Trata-se da operação de desintermediação de segundo grau, envolvendo uma transmissão em massa de direitos de crédito aptos a gerar fluxos financeiros duradouros, os quais servirão de garantia de valores mobiliários emitidos por entidades constituídas especialmente para o efeito.

Resta agora identificar as fases fundamentais da operação de titularização, de seguida analisadas: a fase preliminar de individualização e avaliação do crédito; a fase da transmissão dos créditos; e a fase da emissão.

 
§ 3.º A fase preliminar de avaliação dos créditos para titularização


I – A primeira fase do processo de titularização diz respeito à selecção e avaliação dos crédito na esfera jurídica da pessoa jurídica que vai proceder à sua transmissão.

    É importante apontar o papel dos intermediários financeiros neste momento, o qual comporta uma dupla vertente: um controlo do mérito económico-financeiro da operação quanto à oportunidade e à adequação do crédito no contexto da operação de titularização; e um controlo de legalidade, no que toca ao cumprimento das regras legais inerentes à recolha e preparação de informação sobre o crédito a transmitir, a qual irá fazer parte do prospecto (due dilligence)[34].

    O conjunto de deveres jurídicos assinalados aos intermediários nesta fase preparatória da oferta, fundamental para uma formação correcta da decisão de investimento, é objecto de regulação geral no art. 337.º do novo Código dos Valores Mobiliários, sob a designação de contrato de assistência. Aí se refere directamente que o intermediário financeiro incumbido da assistência em oferta pública deve aconselhar o oferente sobre os termos da oferta e deve assegurar o respeito pelos preceitos legais e regulamentares aplicáveis, mormente no domínio informativo. Embora dirigido apenas a ofertas públicas, no âmbito das quais o contrato de assistência é de celebração obrigatória (art.113.º CVM), o mencionado art. 337.º representa um dispositivo com plenas potencialidades aplicativas às emissões de valores mobiliários que se realizem através de oferta particular, sobretudo no âmbito de operações de titularização.

II – A etapa preparatória da operação de titularização inclui ainda a fase de avaliação dos créditos.

    Uma vez que a titularização lida com transmissões de créditos efectuadas em massa, na tarefa de avaliação torna-se pouco importante considerar a identidade do devedor, interessando – de acordo com a lei dos grandes números - sobretudo as características gerais dos conjuntos de créditos a ceder. A avaliação dos créditos é facilitada se estes forem homogéneos[35], frisando-se, porém, que o regime nacional não exige a homogeneidade como requisito dos créditos susceptíveis de titularização. Por outro lado, dado que, como se verá adiante, a cessão é necessariamente incondicional para o emitente[36], afigura-se deste ponto de vista quase irrelevante a identidade do cedente.

Nos primórdios da titularização, nos Estados Unidos, a tarefa de avaliação era originariamente realizada através da intervenção de uma agência federal, através da concessão de garantias. Com a evolução do expediente, passou a ser a notação de risco (rating) a funcionar como meio indispensável de avaliação do risco inerente aos direitos de crédito e à sua mobilização, prática que foi iniciada já na segunda metade da década de oitenta[37]. A avaliação do risco passou, pois, a substituir no tráfego a prestação de garantias pelo cumprimento dos créditos cedidos: em vez de se anular o risco de não cumprimento dos créditos, procura-se, de acordo com os princípios mobiliários, torná-lo visível para uma fundada decisão de investimento[38].

 
III - Em diversos sistemas jurídicos, este ponto mereceu resposta na imposição de obrigatoriedade da notação de risco, o que foi consagrado nomeadamente em França[39], na Bélgica e em Espanha. O mesmo sucedeu em Portugal, através dos arts. 27.º, n.º 3, c) e 46.º, n.º 5 do DL n.º 453/99, de 5 de Novembro.

    A obrigatoriedade de apresentação de relatório de notação de risco apenas vale para a emissão de unidades de titularização e de obrigações titularizadas realizada através de oferta pública. Assenta-se aqui na contraposição entre ofertas particulares e ofertas públicas relativas a valores mobiliários, cujo critério distintivo figura nos arts. 109.º e 110.º do Código dos Valores Mobiliários, reservando-se para estas últimas o sistema mais exigente do ponto de vista dos deveres de informação. Este enunciado é válido no direito mobiliário em geral, mas recebe uma confirmação particularmente intensa nas ofertas públicas de valores mobiliários emitidos na base de operações de titularização, uma vez que é sobretudo o público investidor que reclama uma informação rigorosa sobre o risco de incumprimento associado aos créditos mobilizados e, consequentemente, sobre o risco de não reembolso do seu investimento.  

    O conteúdo mínimo deste relatório é definido por lei, no art. 27.º, n.º 4, do DL n.º 453/99, de 5 de Novembro. Merecem apreciação nesse documento informativo, designadamente, a avaliação prudencial dos créditos cedidos (alíneas a), d) e e)) bem como a adequação da estrutura da operação de titularização, encarada no seu todo (alíneas b) e c) do mencionado art. 27.º, n.º 4)[40].

    A elaboração destes relatórios apenas pode realizar-se por sociedades de notação de risco, que estão sujeitas a deveres de imparcialidade – o que justifica a sua sujeição a registo de supervisão na CMVM (art. 12.º CVM)[41]. Nesta óptica da confiabilidade da informação[42], o regime da titularização demonstra ser substancialmente mais avançado do que o encontrado em relação à avaliação dos créditos subjacentes à emissão de obrigações hipotecárias, em que o relatório de avaliação dos bens hipotecados, igualmente exigível, é da exclusiva responsabilidade da entidade emitente, segundo o art. 14.º do DL n.º 125/90, de 16 de Abril.

    Este dever de apresentação de relatório de notação de risco em ofertas públicas não exclui a faculdade de haver a prestação de garantias quanto ao cumprimento do crédito cedido assumidas por terceiros, designadamente seguradoras, por exemplo através da celebração de contratos de seguro de créditos (art. 4.º, n.º 5). Tal influirá, naturalmente, na classificação atribuída pela sociedade de notação de risco.

§ 4.º A cessão de créditos para titularização

 
I – Na sua acepção central, a titularização implica sempre uma cessão de direitos de crédito a favor do emitente de valores mobiliários[43]. Neste quadro, a lei nacional não se basta com promessas de transmissão de créditos, impondo no âmbito da titularização uma cessão efectiva e incondicional (true sale) (art. 4.º, n.º 4, do DL n.º 453/99, de 5 de Novembro).

Esta exigência é explicada por razões ligadas ao reforço de protecção dos investidores, uma vez que a segregação do crédito torna a titularização imune ao risco de insolvência do cedente (bankruptcy remoteness). Apenas assim, aliás, é possível proceder a uma notação de risco que tenha exclusivamente em atenção a qualidade dos direitos cedidos[44].

Também a partir daqui é tornada mais fácil a tarefa de distinção da titularização em relação ao factoring, na medida em que esta operação bancária pode não envolver uma cessão de créditos em sentido técnico, ao resultar nomeadamente num mútuo sujeito a condição (o dito factoring impróprio)[45].

 

II - O regime nacional mostra-se sensível à tendência de crescente diversificação dos direitos titularizados[46], ao não colocar requisitos gerais quanto à susceptibilidade de titularização relacionados com a fonte de que emergem os créditos. Tal não valerá apenas para as empresas de seguros, fundos de pensões e sociedades gestoras de fundos de pensões, que só podem ceder para titularização créditos hipotecários, créditos sobre o Estado ou outras pessoas colectivas públicas e créditos dos fundos de pensões[47].

Para aquilatar a amplitude do regime português no tocante a este aspecto, compare-se o regime nacional como o encontrado no direito belga, que apenas admite, como base de operações de titularização, créditos bancários, com duração superior a dois anos e que tenham a mesma natureza[48].

    No mais, refira-se que no DL n.º 453/99, de 5 de Novembro, são apenas feitas exigências ligadas ao conteúdo do crédito tendo em vista a sua relação com uma operação colectiva de investimento. Devem, nessa medida, os créditos ser livremente transmissíveis e de natureza pecuniária; não podendo ser condicionados nem estar vencidos; nem, por último, ser litigiosos (art. 4.º do  DL n.º 453/99, de 5 de Novembro).

Na economia do diploma, deve entender-se que a cessão de créditos vincula imediatamente o transmitente, ainda que se refira a créditos futuros[49]. Quanto a estes últimos, impõe o art. 4.º, n.º 2, que sejam emergentes de relações jurídicas constituídas e sejam de montante conhecido ou estimável para poderem ser objecto de cessão no âmbito das operações de titularização.

 
III – Nesta etapa, as técnicas de titularização envolvem uma adaptação às regras gerais de cessão de créditos de direito civil.

Como se sabe, em geral a eficácia da cessão de créditos em relação ao devedor depende de notificação feita a este (art. 583.º CC) podendo o devedor, até ao conhecimento da cessão, opor ao cessionário os meios de defesa oponíveis ao cedente (art. 585.º CC). Mais se sabe que a forma da transmissão segue a exigida para o negócio de base, não se prescindindo de escritura pública para a cessão de créditos hipotecários (art. 578.º CC)[50].

Porém, no ambiente macro-jurídico da titularização, não seria exequível fazer notificações em massa aos devedores cedidos, nem tão-pouco se afiguraria prática a outorga de escritura pública sempre que os créditos a transmitir fossem créditos hipotecários. Este problema ditou a necessidade de revisão de vários ordenamentos europeus, a favor de uma flexibilização dos mecanismos transmissivos[51].

Em Portugal, as exigências gerais quanto à eficácia da cessão de créditos perante o devedor mantêm-se, salvo quando se trate de cessão de créditos cujo cedente seja instituição de crédito, sociedade financeira, empresa seguradora, fundo de pensões ou sociedade gestora de fundos de pensões. Nesse caso, a cessão é eficaz simultaneamente perante os contraentes e perante o devedor, sem carecer, em relação a este, de conhecimento, de aceitação ou de notificação (art. 6.º, n.º 4).

    Encarado à luz do percurso evolutivo do regime da transmissão de créditos, este aspecto constitui mais um passo no sentido do apagamento da relevância do devedor cedido. É muito interessante analisar, deste prisma, a evolução do instituto da cessão de créditos, que já conheceu a hostilidade do Direito Romano - no seio do qual foi gizada uma modalidade de mandato para atingir resultados próximos - e já se defrontou com a exigência medieval de consentimento para a eficácia transmissiva, dada a ideia da ligação do crédito à pessoa do credor[52].

    A verdade é que, na continuidade do regime constante do Código de Seabra[53], o actual Código Civil, no tratamento da cessão, firma claramente a irrelevância da pessoa perante quem o devedor cumpre (art. 583.º), exceptuados casos de prestações estritamente pessoais, por isso julgadas intransmissíveis. Em consequência, no regime civil da cessão de créditos é dispensado o assentimento do devedor cedido, sendo a notificação requisito de eficácia perante o devedor, conquanto – como agora se reconhece sem escolhos - que não funcione como requisito de perfeição do contrato de cessão[54]. Todavia, lembre-se que o Código Civil alemão vai mais longe, ao dispensar o conhecimento do devedor para a eficácia da cessão (§ 398.º), embora se estabeleçam uma série de laboriosos preceitos que visam tutelar o devedor cedido em caso de desconhecimento da cessão (§§ 406.º-409.º)[55].

    O regime da cessão de créditos no âmbito da titularização inscreve-se nesta tendência, uma vez que, nos casos mencionados, deixa de se fazer a exigência, contida no nosso Código Civil, do conhecimento do devedor para a cessão de créditos ser eficaz, mesmo perante este. Os resultados desta solução são amparados pela circunstância de a gestão dos créditos cedidos se manter na esfera jurídica do cedente, quando este seja instituição de crédito, sociedade financeira ou empresa de seguros, de acordo com o art. 5.º, n.º 1.

    Ora, como o rigor obriga a lembrar, esta previsão não esgota o rol de cedentes à luz da previsão do art. 6.º, n.º 4. Justifica-se, nessa medida, uma interpretação extensiva do art. 5.º, n.º 1, por forma a fazer abarcar a cessão feita às demais entidades mencionadas no art. 6.º, n.º 4 (fundos de pensões e sociedades gestoras de fundos de pensões), para dar cabal resposta às hipóteses de cumprimento perante o cedente, e não o cessionário, em caso de ignorância da cessão por parte do devedor[56].

    Sublinhe-se, por precaução, não se tratar o art. 6.º, n.º 4, de uma solução geral, apenas valendo em relação a este particular universo de cedentes; nem pode, tão-pouco, ser extrapolada para o domínio da cessão da posição contratual, em que o requisito do consentimento da contraparte não sofre qualquer desvio (art. 424.º CC).

    A forma da transmissão de créditos para titularização, por seu turno, mereceu um aligeiramento substancial em relação ao art. 578.º CC, na medida em que o art. 7.º do DL n.º 453/99, de 5 de Novembro, permite que a cessão se realize por documento particular, ainda que tenha por objecto créditos hipotecários.

 

§ 5.º A emissão de valores mobiliários na sequência de operações de titularização


I – A emissão deve entender-se como uma operação - um conjunto complexo e dinâmico de actos materiais e jurídicos destinados finalisticamente à criação de valores mobiliários e à sua introdução originária no mercado - pelo que não se esgota no momento final da criação dos valores mobiliários[57]. Neste passo, tratar-se-á desta etapa processual da génese dos valores mobiliários como corolário da operação de titularização, tendo-se presente que os momentos que precedem a constituição do valor mobiliário são igualmente importantes na conformação do seu regime jurídico.

Como se frisou, o DL n.º 453/99, de 5 de Novembro, reconhece capacidade para a emissão de valores mobiliários com base em técnicas de titularização aos fundos de titularização e às sociedades de titularização. Há, por outro lado, a imposição de uma especialização absoluta no objecto destes special purpose vehicles, revelada nos arts.16.º, n.º1, e 39.º do mesmo diploma: assim, respectivamente, as sociedades gestoras de fundos de titularização têm como objecto exclusivo a gestão deste tipo de fundos e as sociedades de titularização têm como objecto exclusivo a realização de operações de titularização. Ambas são, na lei, qualificadas como sociedades financeiras (arts. 17.º e 39.º)[58].

II - A emissão dos valores mobiliários emitidos na sequência de operações de titularização deve ser confrontada com a fundamental distinção, no seu tratamento normativo, entre emissões efectuadas através de oferta particular e emissões realizadas através de oferta pública[59].

    Em relação a estas últimas, há uma sensível densificação dos deveres de informação sobre os direitos de crédito objecto da titularização e sobre os valores mobiliários emitidos. Assim, de acordo com o art. 114.º do Código dos Valores Mobiliários, a emissão está sujeita a um registo prévio na CMVM, o qual tem em vista um controlo da legalidade da oferta e dos documentos que lhe servem de base, designadamente quanto ao cumprimento dos deveres informativos inerentes à operação e quanto à elaboração do respectivo prospecto[60].

    Perante os créditos bancários - e, portanto, emergente de relações contratuais sujeitas a deveres de segredo (art. 78.º RGIC) - colocava-se a questão melindrosa de saber como possibilitar a respectiva transmissão sem haver violação do dever de segredo, sobretudo ante os deveres de informação no prospecto impostos nas oferta públicas. A resposta da nossa lei foi a de fazer com que a transmissão se realize com a identidade dos devedores cifrada, ficando a chave do código depositada na CMVM[61]. Em caso de incumprimento, os credores obrigacionistas solicitarão à CMVM o código, para poder fazer valer as suas pretensões creditícias. Até lá, fora desse momento patológico, preserva-se o segredo bancário quanto aos créditos cedidos. A divulgação das características gerais dos créditos – que, no plano informativo, é o aspecto mais relevante[62] - é feita sem revelação da identidade dos devedores, sendo por esse motivo lícita, à luz do art. 80.º, n.º 2 do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras.


III - Se a emissão destes valores mobiliários é realizada através de oferta particular, dir-se-ia à partida estar a emissão apenas sujeita a comunicação subsequente na CMVM, de acordo com o art.110.º, n.º 2, do Código dos Valores Mobiliários. Porém, tal apenas vale como traço geral do regime para a emissão de unidades de titularização, visto que, tratando-se de obrigações titularizadas, é substancialmente esbatida a diferença entre ofertas públicas e particulares, mercê da sujeição, de umas e de outras, a registo prévio na CMVM.

    Com efeito, para contornar os efeitos perniciosos do sistema de duplo registo de valores obrigacionistas a que atrás se fez referência[63], o legislador estabeleceu no art. 46.º, n.º 4, do DL n.º 453/99, de 5 de Novembro, que a emissão de obrigações por parte de sociedades de titularização não estaria sujeita a registo comercial, em desvio do regime constante do art. 3.º, alínea l) do Código do Registo Comercial. Em benefício da publicidade da emissão, basta o envio à Conservatória do Registo Comercial competente de declaração comprovativa do registo da emissão na CMVM, para depósito oficioso na pasta da sociedade.

    Em contrapartida, impôs-se a necessidade de prévio registo na CMVM de emissões de obrigações por sociedades de titularização, mesmo quando a emissão se realize através de oferta particular, através do art. 46.º, n.º 3[64]. A redacção das alíneas a) e b) deste art. 46.º, n.º 3, é maximalista, abrangendo a oferta de obrigações titularizadas emitidas por sociedade sujeita a lei pessoal portuguesa, mesmo que a oferta seja dirigida ao estrangeiro, e a oferta realizada por sociedade de titularização sujeita a lei pessoal estrangeira realizada em Portugal. Deixa-se apenas de fora do âmbito aplicativo do diploma, evidentemente, as ofertas realizadas no estrangeiro por sociedades de titularização sujeitas a lei estrangeira. O dever de registo prévio na CMVM não envolve, para as ofertas particulares, dever de elaboração de prospecto nem de contratação de intermediário financeiro na assistência ao processo de registo – embora, na prática, esta última possa vir a ocorrer, sob a forma de assistência do emitente[65].

    Frise-se também que a emissão de unidades de titularização, que deve assumir necessariamente forma escritural (art. 31.º, n.º 1)[66], deve ser precedida da autorização da CMVM para a constituição do fundo de titularização (art. 27.º).


IV – O regime da responsabilidade patrimonial pelo reembolso dos créditos que servem de situação jurídica subjacente aos valores mobiliários é diferente consoante estejamos perante unidades de titularização ou obrigações titularizadas.

Nos fundos de titularização, prevê-se uma larga margem de conformação, no regulamento de gestão, do conteúdo dos direitos inerentes às respectivas unidades de titularização. O art. 32.º, n.º 1, prevê que as unidades de titularização possam conferir, exclusiva ou cumulativamente, o direito ao pagamento de rendimentos periódicos, o direito ao reembolso do valor nominal das unidades de participação e o direito à quota de liquidação, após serem pagos os rendimentos periódicos e as despesas a cargo do fundo.

    É certo que se afasta a responsabilidade da sociedade gestora pela mora ou incumprimento dos direitos de crédito que integram o património do fundo (art.32.º, n.º 4). Mas, salvaguardado este aspecto, confia-se à autonomia privada o estabelecimento do regime de responsabilidade patrimonial do fundo e dos direitos de cada titular de unidades de titularização.

 
V - As obrigações titularizadas conhecem mecanismos mais complexos de autonomia patrimonial.

Geralmente, na prática verificada em mercados estrangeiros, o conjunto de direitos de crédito afecto a cada emissão é suficiente para reembolsar os credores obrigacionistas. Aliás, em virtude das garantias estabelecidas em benefício dos titulares dos valores obrigacionistas, esta auto-suficiência do património a garantir o reembolso das obrigações resiste mesmo perante o risco de liquidação da sociedade de titularização. Daí que, ordinariamente, na notação de risco seja mais importante a estruturação da operação e o avaliação dos créditos do que a envergadura patrimonial do emitente[67].

Este efeito é obtido através de uma cuidadosa adequação dos créditos à obrigação de reembolso do empréstimo obrigacionista, sendo garantido da diferença positiva entre o montante dos créditos que servem de garantia e o montante da dívida de capital e juros representada pelos valores mobiliários emitidos (over-collateralisation)[68]. Por outro lado, as sociedades de notação de risco usualmente exigem, para uma boa classificação, que não haja uma exposição do património do emitente a dívidas perante terceiros: também o património do emitente será, nestes termos, imune ao risco de insolvência[69].

Estes dados explicam que, no tráfego, as sociedades emitentes deste tipo de valores mobiliários se apresentem normalmente com uma estrutura patrimonial muito ligeira (thinly capitalised)[70]. A especialidade do seu objecto conduz a que não existam outras actividades a desenvolver pela sociedade de titularização, pelo que mesmo as exigências legais de um capital social mínimo acima do exigido na forma societária de base têm duvidosa justificação material, expondo-se a críticas no sentido de levarem tão-só a uma “contraproducente imobilização de capital”[71], susceptível de desvirtuar o perfil funcional da operação de titularização, do ponto de vista da eficiência alocativa.


VI - É a esta luz que deve ser apreciado o regime nacional de responsabilidade pela emissão de obrigações titularizadas.

Nestes casos, antes da emissão deve ser afectada uma parcela de créditos, na medida em que for necessária, ao reembolso do empréstimo obrigacionista (art. 47.º, n.º 2), créditos esses sobre os quais recai um privilégio creditório especial a favor dos titulares de obrigações titularizadas (art. 49.º). Posto isto, os direitos de crédito ficam, nos termos do art. 48.º, submetidos ao princípio da segregação, não respondendo por outras dívidas do emitente até reembolso integral do montante devido aos titulares das obrigações titularizadas (n.º 1).

A autonomia patrimonial deste lote de créditos não é, contudo, absoluta. Com efeito, no direito português não foi consagrado o princípio do limited recourse, segundo o qual apenas os créditos e respectivos frutos afectos à emissão responderiam pelo reembolso das obrigações[72]. O património da sociedade de titularização responde pelo reembolso das obrigações titularizadas, como é princípio geral do nosso direito patrimonial privado (art. 601.º CC).

Além disso, o remanescente dos créditos afectos ao reembolso das obrigações titularizadas serve de garantia patrimonial aos credores comuns da sociedade de titularização (art. 48.º, n.º 2). Certo é, porém, que em execução movida contra a sociedade de titularização, o exequente apenas pode penhorar o direito ao remanescente se provar a insuficiência dos demais bens da sociedade (art. 48.º, n.º 3).

Vê-se, assim, que o regime nacional dobra a tutela patrimonial do titular de obrigações titularizadas, que tem em garantia do seu crédito obrigacionista, não apenas um privilégio creditório especial sobre um conjunto adequado de créditos, mas também o património geral do emitente. A diversidade de tratamento entre os credores obrigacionista e os credores comuns entende-se facilmente, tendo em vista o objecto único a que se dedicam estas sociedades: a realização das operações de titularização.

 

 

 

 

 

 

 
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Retirado de: http://www.fd.ul.pt/licenciatura/dvm/estudos/titularizacao.htm



[1]  SIMON SACKMAN/ MARGARET COLTMAN, Legal Aspects of a Global Securities Market, in FIDELIS ODITAH (ed.), The Future for the Global Securities Market. Legal and Regulatory Aspects, Oxford, (1996), 28-29. Um bom exemplo de concorrência legislativa provém dos Estados Unidos, em que as legislações societárias federais ditam as opções das sociedades quanto ao local de incorporação, o que pode documentar-se amplamente em ROBERTA ROMANO, The Genious of American Corporate Law, Washington, (1993); Id., Empowering Investors: A Market Approach to Securities Regulation, in KLAUS HOPT/ HIDEKI KANDA/ MARK J. ROE/ EDDY WYMEERSCH/ STEFAN PRIGGE, Comparative Corporate Governance, Oxford, (1998), 143-217 (149-174).

[2]  Art. 3.º, alínea l) do Código do Registo Comercial e art. 114.º do Código dos Valores Mobiliários. Adiante entender-se-á melhor a importância do sistema de duplo registo na actual configuração do regime da tirularização, a propósito da emissão de obrigações titularizadas: v. infra, § 5.º, III.

[3] No ano de 1997 apenas houve 4 emissões de obrigações por subscrição pública submetidas a registo na CMVM - e destas apenas uma dizia respeito a um emitente não bancário. A emissão em causa não era, sequer, uma pura emissão de obrigações: tratava-se de obrigações convertíveis em acções. No ano de 1998, os números são muito semelhantes, pois contam-se apenas 5 emissões de obrigações clássicas registadas na CMVM, sendo todas elas relativas a obrigações com warrant. O panorama é sensivelmente diferente se tivermos em conta as obrigações de caixa e os títulos de dívida de curto prazo (vulgo papel comercial), umas e outros não sujeitos a registo comercial. Para um último retrato estatístico, veja-se CMVM, Relatório Anual. A Situação Geral dos Mercados de Valores Mobiliários, (1997), 49-50; Id., ibid., (1998), 55-60.

[4]  A afirmação encontra demonstração directa na avaliação dos warrants, em que o preço varia consoante a evolução do preço do activo subjacente. Mas também é facilmente constatável nos valores mobiliários representativos de dívida, consoante seja esta subordinada ou garantida. Por isso não se pode afirmar que a técnica da derivação seja totalmente diversa da utilizada nos valores mobiliários, encarados do ponto de vista da sua avaliação económica (como por exemplo aparece defendido em GUIDO FERRARINI, I Derivati Finanziari tra Vendita a Termine e Contratto Differenziale, in FRANCO RIOLO (ed.), I Derivati Finanziari. Profili Economici, Giuridici e Finanziari, Milano (1993), 27).

[5]  A pedra de toque de ligação entre estas duas utilidades reside também no regime civil da cessão de créditos, que, como se sabe, faz acompanhar as garantias que rodeiam o direito transmitido (art. 582.º/1 CC). Cf. em geral MENEZES CORDEIRO, Direito das Obrigações, Lisboa, (1980), 91-92; RIBEIRO DE FARIA, Direito das Obrigações, Coimbra, (1990), II, 530-535.

[6]  Ou securitisation, como se depara mais frequentemente em textos britânicos.

[7] O Despacho Normativo n.º 564/94 já se referia a titularização, o que terá jogado a favor da utilização do mesmo termo no DL n.º 453/99, de 5 de Novembro.  Porém, mesmo a entender não estarmos perante um galicismo, a expressão está sujeita às mesmas críticas perante a utilização do vocábulo título para sinónimo de valor mobiliário, sobretudo quanto à sua inadequação para os valores mobiliários escriturais (sobretudo ante a circunstância de as unidades de titularização, entre nós, deverem revestir necessariamente forma escritural, nos termos do art. 31.ª, n.º 1: v. infra, § 5.º, II).  Veja-se que o novo Código dos Valores Mobiliários considera o termo título como sinónimo de valor mobiliário titulado, no art. 46.º, n.º 1; para designar, mais genericamente a forma de representação, o legislador prefere falar em documento (art. 1.º, n.º 2 do mesmo Código), o que se mostra coerente com o DL n.º 290-D/99, de 2 de Agosto, que qualificou directamente como documento os documentos electrónicos, caracterizados por serem elaborados mediante processamento electrónico de dados. No Brasil, a escolha de neologismo recaiu sobre o vocábulo securitização (CASSIO MARTINS PENTEADO Jr., A Securitização de Recebíveis de Créditos gerados em Operações dos Bancos – A Resolução n.º2.493 em sua Perspectiva Jurídica, in Revista de Direito Mercantil n.º 111, 120-124), também empregue no preâmbulo do DL n.º 453/99, de 5 de Novembro.

[8] FIDELIS ODITAH, Selected Issues in Securitisation, in The Future for the Global Securities Market. Legal and Regulatory Aspects, cit., 84; Id., THEODOR BAUMS/ EDDY WYMEERSCH, Asset-Backed Securitization in Europe, London/ The Hague/ Boston, (1996), 100.

[9] YVES GUYON, Prefácio a THIERRY GRANIER/ CORYNNE JAFFEUX, La Titrisation, Paris, (1997), 5. Outros autores consideram-na um loosely used term: JOHN HENDERSON/ ING BARINGS (ed.), Asset Securitization: Current Techniques and Emerging Market Applications, Playhouse Yard, (1997), 1-3; JOSEPH C. SHENKER/ ANTHONY COLLETTA, Asset Securitization: Evolution, Current Issues and New Frontiers, in Texas Law Review (1991), 1373-1374; KENNETH P. MORRISON, The Securitization Phenomenon, in International Financial Review, (Aug.1993), 3.

[10]  Para uma concretização no domínio do direito da informação, permito-me reenviar para o meu Deveres de Informação e Formação de Preços no Mercado de Valores Mobiliários, in Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, n.º 2, (1998), 79-94; quanto aos reflexos no domínio dos grupos bancários, veja-se ainda Id., O governo dos grupos bancários, in Estudos de Direito Bancário, Coimbra, (1999), 111-205 (119-120).

[11] JOSEPH C. SHENKER/ ANTHONY COLLETTA, Asset Securitization: Evolution, Current Issues and New Frontiers, cit., 1380-1388; JOHN HENDERSON/ ING BARINGS (ed.), Asset Securitization: Current Techniques and Emerging Market Applications,  cit., 3-4. Sobre a crise de 1929, e em particular, sobre a especulação imobiliária que a precedeu – e que desembocou em incumprimentos em série de empréstimos hipotecários, a gerar por seu turno um intenso tráfego dos guaranteed mortgage participation certificates, tem interesse consultar JOHN KENNETH GALBRAITH, The Great Crash 1929, Boston, (1979), de que existe tradução castelhana, El crac del 29, Barcelona, (1993).

[12]  Embora a FNMA tenha sido criada em 1938 como uma agencie federal, estrutura-se actualmente como uma sociedade de capitais privados. Todavia, a verdade é que beneficia de uma linha de crédito posta à disposição pelo Tesouro norte-americano em caso de necessidade de fundos de emergência, o que a aproxima a um organismo público. Dos organismos arrolados, apenas a GNMA, constituída em 1968 a partir de uma cisão do FNMA, se configura como totalmente garantida pelo Estado. Cf. ANTHONY SAUNDERS, Financial Institutions Management. A Modern Perspective2, Boston, (1997), 601-602; MARC STERLING/ C.HUANG, Securitization of Mortgages in the United States, in Butterworths Journal of International Banking and Financial Law (October 1989), 455-457.

[13]  Uma análise dos problemas associados à estrutura típica de reembolso deste tipo de direitos de crédito, quando enquadrados em operações de titularização, pode encontrar-se em IAN BELL, Securitisation of Credit Card Receivables: New Bank of England Rules, in Journal of International Banking Law, n.º 8 (1992), 297.

[14] Como se intui, a partir daqui divisam-se problemas de risco, pois alguns destes créditos contam com elevada probabilidade de incumprimento. Sobre recentes aplicações ao domínio dos créditos futuros relativos a bens naturais, v. CHARLES E. HARREL/ JAMES L. RICE III/ ROBERT SHEARER, Securitization of Oil, Gas and Other Natural Resource Assets: Emerging Financing Techniques in The Business Lawyer Vol. 52 n.º 3 (Maio 1997), 885-946. Em geral, sobre o alargamento do tipo de direitos idóneos à titularização, numa perspectiva económica: ANTHONY SAUNDERS, Financial Institutions Management. A Modern Perspective2, cit., 631-633.

[15]  É certo, porém, que no direito português é limitada a possibilidade de aproveitamento da estrutura dos fundos de titularização no contexto de coligações inter-societárias. Com efeito, o art. 16.º, n.º 3, dispõe que as entidades cedentes cujos créditos transmitidos para fundos administrados pela mesma entidade gestora representam mais de 20% do valor global líquido da totalidade dos fundos administrados pela sociedade gestora, ou de algum desses fundos, não pode, por si ou por sociedade que se encontre em relação de domínio ou de grupo, deter mais de20% do capital social da entidade gestora.

[16] Os textos norte-americanos contrapõem a estrutura pass-through e pay-through, consoante respectivamente o veículo seja não-societário ou societário. O pass-through assenta na figura do trust ou do fundo de investimento, pressupondo uma gestora do património do fundo e um depositário dos títulos de dívida. JOHN HENDERSON/ ING BARINGS (ed.), Asset Securitization: Current Techniques and Emerging Market Applications, cit., 37-40; THEODOR BAUMS/ EDDY WYMEERSCH, Asset-Backed Securitization in Europe, cit., 11.

[17]  Uma apresentação escorreita sobre as diversas formas jurídicas do cedente em operações de titularização, no prisma continental, encontra-se em JEAN-FRANÇOIS ROMAIN, Régime de la Tittrisation de Créances en Droit Belge, cit., 48-63.

[18] O art. 3.º do  DL n.º 453/99, de 5 de Novembro é, no seu proémio, categórico. Idêntico comedimento não vale no plano da legitimidade reconhecida às entidades cedentes de créditos para titularização, ao alcance de três categorias de entidades: de um lado, figuram o Estado e outras pessoas colectivas públicas; num segundo lote, incluem-se as instituições de crédito, as sociedades financeiras, as empresas de seguros, os fundos de pensões e as sociedades gestoras de fundos de pensões; de outro lado, são igualmente abarcadas, no art.2.º do diploma, no perímetro das entidades cedentes as pessoas colectivas cujos documentos de prestação de contas tenham, nos últimos três exercícios, sido objecto de certificação legal por auditor registado na CMVM. Porém, da eficácia da cessão perante terceiros independentemente de notificação (art. 6.º/4) apenas beneficia o segundo conjunto de entidades, e não as demais. Cf. a propósito infra, § 4.º, III.

[19]  Uma sólida defesa da introdução do trust no direito português, designadamente para servir de instrumento à titularização de créditos, depara-se em MARIA JOÃO TOMÉ/ DIOGO LEITE DE CAMPOS, A Propriedade Fiduciária (Trust): Estudo para a sua Consagração no Direito Português, Coimbra, (1999), 14-15, 308-311 e passim.

[20] O pioneirismo norte-americano e o tratamento contabilístico cedo reconhecido à cessão de créditos para titularização no espaço jurídico do Além-Atlântico são alguns dos motivos apontados para o avanço profundo que o mercado de titularização tem nesse país: v. OCDE - DIRECTORATE FOR FINANCIAL, FISCAL AND ENTREPRISE AFFAIRS, Recent Trends and Developments in Securitisation, (12 Junho 1998), 4-7; JOHN HENDERSON/ ING BARINGS (ed.), Asset Securitization: Current Techniques and Emerging Market Applications, cit., 3-4; KENNETH P.MORRISON, The Securitization Phenomenon, cit., 3-5.

[21]  Lei de 5 de Agosto de 1992: v. a propósito JEAN-FRANÇOIS ROMAIN, Régime de la Tittrisation de Créances en Droit Belge, in MARC EKELMANS/ JEAN-FRANÇOIS ROMAIN/ VALERIE SIMONART, Questions d’Actualité en Droit Économique, Vol. I, Bruxelles, (1994), 39-89.

[22]  HUBERT DE VAUPLANE/ JEAN-PIERRE BORNET, Droit des Marchés Financiers, (1998), 769-771; JEAN-BAPTISTE DEVADE/ PHILIP BOYS, Securitisation:Another Step Towards Developing the French Markets, in Butterworths Journal of International Banking and Financial Law (May 1989), 218-221.

[23]  Em sustento da conclusão de que “a emissão de obrigações hipotecárias não prossegue os objectivos da verdadeira titrisation”, v. ARMINDO SARAIVA MATIAS, Titularização. Um Novo Instrumento Financeiro, in Revista de Direito Mercantil n.º 112, (1998), 53.

[24]  Cf. art. 6.º do DL n.º 125/90, de 16 de Abril.

[25]  Do mesmo modo, incluindo na titularização estes mecanismos menos sofisticados: JESS LEDERMAN (ed.), The Handbook of Asset-Backed Securities, New York (1990), 7; EILÍS FERRAN, Mortgage Securitisation. Legal Aspects, London/ Dublin/ Edinburgh, (1992),.

[26] Entre a data de aprovação do diploma e 1998 apenas tinham ocorrido 10 emissões, sendo que 1992 e 1995 foi nulo o número de emissões deste tipo de valor mobiliário.

[27]  Sobre os Pfandbriefe, caracterizados por não implicarem uma transferência de crédito para uma entidade distinta, v. difusamente GERHARD-CHRISTOPH IHLE, Germany, in THEODOR BAUMS/ EDDY WYMEERSCH, Asset-Backed Securitization in Europe, cit., 87-88; HEINZ-DIETER ASSMANN / ROLF SCHÜTZE (org.), Handbuch des Kapitalanlagerechts2, München (1997), 402-403, 720; EVA REUDELHUBER/ ALEXANDER VOGT, The Issuance of Asset-Backed Securities by Credit Institutions in Germany, in Butterworths Journal of International Banking and Financial Law, Vol. 13 n.º 2 (Feb. 1998), 59.

[28]  PAULO CÂMARA, Emissão e subscrição de valores mobiliários, in AA.VV., Direito dos Valores Mobiliários, Lisboa (1997), 202-204; Id., Obrigações indexadas e moeda única, in Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, n.º 4, (1999),147-150.

[29]  Embora, como já foi referido, não só as entidades financeiras se apresentem com legitimidade para ceder créditos em operações de titularização. Em complemento, quanto ao perfil funcional da titularização e a sua relação com o sistema financeiro, v. FRANK FABOZZI/ FRANCO MODIGLIANI, Capital Markets2, New Jersey, (1996), 661-665; JOSEPH C. SHENKER/ ANTHONY COLLETTA, Asset Securitization: Evolution, Current Issues and New Frontiers, cit., 1389-1396.

[30]  Em sentido próximo, concebendo a titularização como “um conjunto sistemático de operações que liga o mercado de crédito ao mercado de valores mobiliários e cria novos valores mobiliários à disposição dos aforradores”: v. ANGEL ALMOGUERA GÓMEZ, La Titulización Crediticia. Un Estudio Interdisciplinar, Madrid, (1995), 31.

[31] Assim, por exemplo, HUBERT DE VAUPLANE/ JEAN-PIERRE BORNET, Droit des Marchés Financiers, cit., 770. Constitui via frustre a que conceber a titularização como toda e qualquer criação de valores mobiliários assentes em dívida. Com efeito, nem todo o valor mobiliário assente em créditos constitui titularização – como sucede por exemplo no caso de obrigações clássicas. Nesta acepção, dita de titularização primária (cfr. FIDELIS ODITAH, Selected Issues in Securitisation, in The Future for the Global Securities Market. Legal and Regulatory Aspects, cit., 84; AMADEU FERREIRA, Direito dos Valores Mobiliários. Sumários das lições, cit., 429), o conceito de titularização revela-se excessivamente amplo, e por isso inoperante. Confronte-se nomeadamente: JESS LEDERMAN (ed.), The Handbook of Asset-Backed Securities, cit., 4; RICHARD JENNINGS/ HAROLD MARSH Jr./ JOHN COFFEE Jr., Securities Regulation. Cases and Materials7, Westbury, New York, (1992), 26; ANGEL ALMOGUERA GÓMEZ, La Titulización Crediticia. Un Estudio Interdisciplinar, cit., 25-31.

[32] Identicamente, JOSEPH C. SHENKER/ ANTHONY COLLETTA, Asset Securitization: Evolution, Current Issues and New Frontiers, cit., 1372-1373.

[33]  Em geral, acerca da indiferença pessoal na cessão de créditos e nos negócios jurídicos de massa, v. CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, Texto e Enunciado do Negócio Jurídico, Coimbra, (1992), I,  593-598.

[34] JESS LEDERMAN (ed.), The Handbook of Asset-Backed Securities, cit., 59; JOHN HENDERSON/ ING BARINGS (ed.), Asset Securitization: Current Techniques and Emerging Market Applications, cit., 19-21.

[35] JOSEPH C. SHENKER/ ANTHONY COLLETTA, Asset Securitization: Evolution, Current Issues and New Frontiers, cit., 1376-1377.

[36]  Cf. infra, § 4.º, I.

[37] JOSEPH C. SHENKER/ ANTHONY COLLETTA, Asset Securitization: Evolution, Current Issues and New Frontiers, cit., 1401.

[38] Em termos de prática dos mercados, constitui de igual modo um meio de temperar inovação excessiva, uma vez que instrumentos com uma estruturação demasiado complexa podem não receber avaliação tão favorável.

[39] Art. 35 da lei de 23 de Dezembro de 1988; cf. THIERRY GRANIER/ CORYNNE JAFFEUX, La Titrisation, cit., 147.

[40]  Este dispositivo é aplicável à emissão de obrigações de titularização, ex vi do art.46.º, n.º 5.

[41] Não são, todavia, intermediários financeiros: aliás, já assim se concluía ante o Código de 1991 (AMADEU FERREIRA, Direito dos Valores Mobiliários. Sumários das lições, Lisboa, (1998), 91-92).

[42]  É bom ter presente que a informação constante dos relatórios de notação de risco está subordinada às exigências gerais mobiliárias, no tocante à qualidade da informação - completude, veracidade, actualidade, clareza, objectividade e licitude - constantes do art. 7.º do Código dos Valores Mobiliários (cf., em especial, o seu n.º 2, in fine).

[43]  Cf. supra, § 1.º, VIII.

[44] JESS LEDERMAN (ed.), The Handbook of Asset-Backed Securities, cit., 41-42; RICHARD JENNINGS/ HAROLD MARSH Jr./ JOHN COFFEE Jr., Securities Regulation. Cases and Materials7, cit., 26; PHILIP R. WOOD, Title Finance, Derivatives, Securitisations, Set-Off and Netting, London, (1995), 42, 59-60; KENNETH P.MORRISON, The Securitization Phenomenon, cit., 4-5;EVA REUDELHUBER/ ALEXANDER VOGT, The Issuance of Asset-Backed Securities by Credit Institutions in Germany, cit., 60-61.

[45]  Assim, MENEZES CORDEIRO, Da Cessão Financeira (Factoring), Lisboa, (1994), 85; Id., Manual de Direito Bancário, Coimbra, (1998), 577-582; RUI PINTO DUARTE, Notas sobre o Contrato de Factoring, in Novas Perspectivas de Direito Comercial, Coimbra, (1988), 144-158; considerando que o núcleo essencial do factoring tem como suporte a cessão de créditos, como função financeira, embora não se resuma a esta, v. TERESA ANSELMO VAZ, O Contrato de Factoring, Revista da Banca n.º 3, (1987), 73-88; e, mais recentemente, MARIA HELENA BRITO, Factoring Internacional e a Convenção do Unidroit, Lisboa, (1999), 15-16, 42-43, 55-57. Acrescente-se que a Convenção do UNIDROIT sobre factoring internacional reconhece a natureza complexa da operação, ao considera contrato de factoring aquele em que, podendo ou devendo haver uma cessão de créditos, estejam confiadas ao cessionário duas das seguintes actividades: financiamento; tratamento contabilístico dos créditos; cobrança de créditos; e garantia de pagamento. Em sentido dissonante ao apresentado no texto, registe-se que PHILIP WOOD qualifica a titularização como “uma forma sofisticada de factoring ou de desconto de dívidas” (Title Finance, Derivatives, Securitisations, Set-Off and Netting, cit., 41).

[46] Cf. supra, § 1.º, VI.

[47]  A solução decorrente do art. 4.º, n.º 3, do DL n.º 453/99, de 5 de Novembro, resulta muito restritiva, sendo dificilmente compreensível no tocante à permissão de cessão de crédito hipotecário, atenta a natureza das entidades cedentes em causa.

[48] No direito belga, em moldes semelhantes ao regime nacional, os créditos não podem ser intransmissíveis, duvidosos ou litigiosos (JEAN-FRANÇOIS ROMAIN, Régime de la Tittrisation de Créances en Droit Belge, cit., 62-63).

[49]  O problema, na dogmática civilística, é discutido no direito alemão: v. em sentido negativo DIETER MEDICUS, Tratado de las Relaciones Obligacionales, I, trad. esp., Barcelona, (1995), 331.

[50]  Em geral, na literatura nacional, v. por exemplo VAZ SERRA, Cessão de créditos e outros direitos, in BMJ nº especial (1955), 5-ss.; ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral5, Coimbra, (1992), II, 292-332; CARLOS MOTA PINTO, Cessão da Posição Contratual, Coimbra, (reimp. 1982), 110-114; MENEZES CORDEIRO, Direito das Obrigações, Lisboa, (1980, já com diversas reimpressões posteriores), II, 89-97; RIBEIRO DE FARIA, Direito das Obrigações, cit., 501-547.

[51] Nota-se, em primeira linha, a existência de uma figura anglo-saxónica (o equitable assignement) que – contrariamente ao legal assignement, que reclama notificação ao devedor - dispensa conhecimento do devedor (embora com efeitos mais limitados), bem como de modalidades de transferência incompleta de hipoteca, que se bastam com a outorga de um equitable title to the mortgage, a facilitar substancialmente este processo (EILÍS FERRAN, Mortgage Securitisation. Legal Aspects, cit., 39-41, 45-53). Em França foi introduzido um regime de mais fácil transmissão de créditos detidos por bancos a outras empresas, operada através da transferência de bordereau com as indicações fudamentais relativas ao crédito cedido: trata-se da célebre Lei Dailly (Lei n.º 81-1, de 2 de Janeiro de 1981, modificada em 24 de Janeiro de 1984): v. sobre esta ALAIN CERLES, Le Contrat Fiduciaire et ses Applications Bancaires: Present et Avenir, in Direito Bancário. Actas do Congresso Comemorativo do 150.º Aniversário do Banco de Portugal, Revista da Faculdade de Direito de Lisboa, Suplemento, (1997), 92-100; HUBERT DE VAUPLANE/ JEAN-PIERRE BORNET, Droit des Marchés Financiers, cit., 770-771.  Também na Bélgica, a Lei de 6 de Julho de 1994, foi introduzida uma flexibilização do regime da cessão de créditos que teve muito claramente em vista favorecer a titularização: esta singulariza-se pelo facto de ter resultado numa modificação ao próprio Código Civil (art.1690.º), no sentido, de um lado, da oponibilidade da cessão ao devedor cedido desde a data do conhecimento e, de outro lado, da oponibilidade da cessão a terceiros desde a data da sua conclusão (EDDY WYMEERSCH, Belgium, in THEODOR BAUMS/ EDDY WYMEERSCH, Asset-Backed Securitization in Europe, cit., 29-33; JEAN-FRANÇOIS ROMAIN, Régime de la Tittrisation de Créances en Droit Belge, cit., 83-87)

[52]  LUDWIG ENNECCERUS/ HENRICH LEHMANN, Derecho de Obligaciones, tradução castelhana, (1954), I380-382.

[53]  Arts.785.º e 789.º.

[54] DIETER MEDICUS, Tratado de las Relaciones Obligacionales, I, cit., 336-341; LUDWIG ENNECCERUS/ HENRICH LEHMANN, Derecho de Obligaciones, cit., 389; ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral5, cit., 308-313; MENEZES CORDEIRO, Direito das Obrigações, cit., 96-97; RIBEIRO DE FARIA, Direito das Obrigações, cit.,516-521.

[55]  Frise-se, designadamente, que o § 407 BGB permite que o cumprimento seja eficazmente realizado perante o cedente, antes de o devedor tomar conhecimento da cessão. Sobre este regime da protecção do devedor cedido, v. nomeadamente KARL LARENZ, Lehrbuch des Schuldrechts14, München, (1987), 588-593; DIETER MEDICUS, Tratado de las Relaciones Obligacionales, I, cit., 338-340.

[56] É justo, de igual modo, observar que o desfasamento entre o art. 5.º, n.º 1, e o art. 6.º, n.º 4, pode ter escasso alcance prático, na medida em que, como antes se fez notar, o regime de cessão de créditos é muito restritivo para as entidades seguradoras (art. 4.º, n.º 3): cf. supra, § 4.º, II.

[57] PAULO CÂMARA, Emissão e subscrição de valores mobiliários, cit., 206-210.

[58] A qualificação da sociedade de titularização como sociedade financeira representa uma solução legislativa que, pessoalmente, entendo não ser acertada. A decisão do legislador, neste ponto, não era evidente, na medida em que se deparava com uma divisão dos ordenamentos europeus: em causa está saber se a realização de operações de titularização configura uma actividade de recepção de fundos reembolsáveis, para efeitos da Directiva n.º 89/646 CEE, e da consequente qualificação do emitente como instituição de crédito ou sociedade financeira. O direito português – que não está, de resto, isolado (v. soluções próximas, mas sem directa qualificação na lei, na Holanda, Noruega e Suécia: THEODOR BAUMS/ EDDY WYMEERSCH, Asset-Backed Securitization in Europe, cit., 185-189, 205-206, 230-233) - alinhou, neste plano, pela posição mais cautelosa, que é defrontada nomeadamente com posições adversas no Reino Unido e em Itália (EILÍS FERRAN, Mortgage Securitisation. Legal Aspects, 102-105; o mesmo sucede no Brasil: CASSIO MARTINS PENTEADO Jr., A Securitização de Recebíveis de Créditos gerados em Operações dos Bancos – A Resolução n.º2.493 em sua Perspectiva Jurídica, cit., 122-123). A posição assumida será até coerente com os trabalhos preparatórios do actual Regime Geral bancário, espelhados no Livro Branco sobre o Sistema Financeiro, na medida em que este documento preparatório da reforma legislativa de 1992, influenciado pelo Quinto Considerando da Directiva n.º 77/780/CEE, acolhe uma acepção ampla de fundos reembolsáveis do público, que se basta com a verificação de três requisitos: a entrega de fundos; a obrigação de reembolso; e a existência de poderes de disposição dos fundos recebidos (v. Livro Branco sobre o Sistema Financeiro, (1991), I, 32-37) – e é facto que, no caso das obrigações titularizadas, o emitente assume um dever de reembolso em nome próprio, sendo a generalidade do seu património responsável pelo cumprimento do mútuo obrigacionista. Contudo, observe-se (e já houve quem o fez: PINTO DUARTE, A Regulação pelo RGICSF das anteriormente chamadas Instituições Parabancárias, Revista da Banca n.º 29, (1993), 64-66) que esta extensão do conceito de recepção de fundos reembolsáveis pode contrastar com o espírito da Directiva, que acentua a recepção de depósitos para caracterizar a actividade bancária. Não pode colocar-se em pé de igualdade a recepção de fundos através da emissão de obrigações e a recepção de depósitos: no plano infra-jurídico, esta última supõe a existência de  intermediação financeira em sentido próprio, ao passo que a emissão de obrigações se insere precisamente no circuito económico desintermediado (cf. supra, § 2.º, I). Esta diferença tem implicações profundas no sistema de regulação de um e do outro modo de captação de fundos do público, sendo via desaconselhável a de transpor para os emitentes de obrigações o conjunto de normas de direito público que rodeia o funcionamento das instituições de crédito e sociedades financeiras. E a protecção dos aforradores, como se sabe, assenta sobretudo no funcionamento do sistema de protecção próprio do mercado mobiliário (que não é, em si, ao aparecimento de instrumentos que envolvem risco), repousando designadamente no cumprimento das regras informativas. A verdade é que estes dados não são tidos em conta, desde logo, no Livro Branco sobre o Sistema Financeiro, que isola a emissão de obrigações sem relevância bancária de acordo com dois critérios: o critério da habitualidade e o critério quantitativo  (ob. cit., 36-37). O segundo foi o único a lograr consagração positiva, no art. 9.º, n.º 2, que não considera como recepção de fundos a emissão de obrigações nos termos e limites do Código das Sociedades Comerciais. Mas ambos são critérios permeáveis a críticas. Quanto ao primeiro, não merece contestação que, no mundo actual, diversas empresas assentam a sua política de financiamento no mercado de valores mobiliários, fazendo da emissão de obrigações prática regular. A limitação quantitativa do art. 349.º CSC, por seu turno, é em geral ferida por todas as debilidades que a figura do capital social exibe para ser indício da envergadura patrimonial dos emitentes; e, neste caso especial, a superação do limite do art. 349.º apenas é permitida caso esteja assegurada notação de risco com classificação A ou equivalente, nos termos do art. 50.º (confiando-se, pois, numa instituição do mercado). Nem merece lembrar que a qualificação da sociedade de titularização como entidade a receber fundos reembolsáveis do público provaria demais: conduziria, a ser coerente, à qualificação dessas sociedades como instituições de crédito, e não como meras sociedades financeiras. Salienta-se apenas que, no caso particular das sociedades de titularização, o ponto nevrálgico da intervenção legislativa reside na protecção dos investidores, e para estes interessa sobretudo acautelar, a imparcialidade da notação de risco e a adequação da operação, do que propriamente a solidez prudencial das sociedades emitentes (cf. supra, § 3.º).

[59]  Cf. supra, § 3.º, III.

[60]  Na Europa, é usual o estabelecimento de exigências específicas quanto ao conteúdo do prospecto em oferta pública ou de admissão de valores mobiliários cujo rendimento está dependente dos frutos de activos subjacentes, aí se obrigando a descrever nomeadamente o tipo de bens utilizados para titularização, uma descrição do fluxo financeiro associado à emissão, os termos da cessão e do direito cedido (v. por exemplo, no caso do Luxemburgo, o Appendix II da Circular CaB n.º 98/7, em desenvolvimento do Regulamento de 28 de Dezembro de 1990).

[61] Cf. o art. 48.º, n.ºs 1 e 4. O ponto será objecto de desenvolvimento regulamentar, de harmonia com o art. 51.º, alínea c).

[62]  Cf supra, § 3.º, II.

[63]  Cf. supra, § 1.º, I.

[64] O âmbito do art. 46.º, nos seus n.ºs 3 e 4, atinge a emissão de qualquer tipo de obrigações, visto poderem as sociedades de titularização emitir igualmente obrigações nos termos gerais dos arts. 348.º e seguintes do Código das Sociedades Comerciais (art. 46.º, n.º 1). É-lhes, porém, vedada a capacidade de emissão de obrigações de caixa (art. 43.º, n.º 3, b)), o que aliás já decorreria do art. 2.º, n.º 1, do DL n.º 408/91, de 17 de Outubro.

[65]  Cf. supra, § 3.º, I.

[66]  Trata-se de uma limitação que surge ao arrepio do actual Código dos Valores Mobiliários, que coloca em pé de igualdade a representação através de forma titulada e a representação através de forma escritural, o que se manifesta nomeadamente na livre convertibilidade de formas de representação de valores mobiliários (arts. 49.º e 50.º).

[67] MARC STERLING/ C.HUANG, Securitization of Mortgages in the United States, cit., 457.

[68]  O excesso da garantia sobre o montante do empréstimo obrigacionista é imposto na disciplina das obrigações hipotecárias, através do art. 15.º do DL n.º 125/90, segundo o qual o valor nominal das obrigações não pode ultrapassar 80% do valor global dos créditos hipotecários afectos ao seu reembolso.

[69]  IAN FALCONER, Securitisation in the United Kingdom, in Butterworths Journal of International Banking and Financial Law (June 1989), 260-261.

[70]  COSIMO RUCELLAI, I problemi legati allo sviluppo della Securitizarion in Italia: prospettive di soluzione, in Giurisprudenza Commerciale, n.º 22.1 (Jan./ Fev. 1995), 116-118; MARTINS PENTEADO Jr. fala expressivamente em empresas de caixa zero (A Securitização de Recebíveis de Créditos gerados em Operações dos Bancos – A Resolução n.º2.493 em sua Perspectiva Jurídica, cit., 121).

[71]  COSIMO RUCELLAI, I problemi legati allo sviluppo della Securitizarion in Italia: prospettive di soluzione, cit., 116.

[72]  O princípio do limited recourse foi acolhido nomeadamente no direito italiano, no art. 3.º, n.º 2, da Lei n.º 130, de 30 de Abril de 1999, e no direito brasileiro, na Resolução n.º 2.492, de 7 de Maio de 1998: v. a propósito, respectivamente, COSIMO RUCELLAI, La legge sulla cartolarizzazione dei crediti, in Giurisprudenza Commerciale (Jul./ Ag. 1999), 413/I; CASSIO MARTINS PENTEADO Jr., A Securitização de Recebíveis de Créditos gerados em Operações dos Bancos – A Resolução n.º2.493 em sua Perspectiva Jurídica, cit.,123.