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Paulo Câmara** "A OPERAÇÃO DE
TITULARIZAÇÃO"* Sumário: § 1.º Introdução; § 2.º A
titularização como operação; § 3.º A fase preliminar de avaliação de créditos
para titularização; § 4.º A cessão de créditos para titularização;
§ 5.º A emissão de valores
mobiliários na sequência de operações de titularização. § 1.º Introdução
Este contexto traz fundas consequências na moderna
evolução do direito dos valores mobiliários. É estimulada a concorrência
legislativa entre Estados, cada qual procurando apresentar-se apetrechado com
um arsenal de normas jurídicas a regular, em termos adequados, os clássicos e
os modernos instrumentos mobiliários[1]. A análise económica do direito
adquire redobrada importância em trabalhos de reforma legislativa, na senda
das soluções mais eficientes. O sistema jurídico passa, pois, a
constituir um elemento da competitividade dos mercados, assumindo-se como um
instrumento de atracção de investidores e de emitentes. Por
estes motivos, o momento é propício para proceder a uma revisão crítica das
modalidades mobiliárias de captação de aforro e do respectivo recorte
normativo. A
partir desse exercício, uma das principais deficiências reveladas no sistema
jurídico português prende-se com a sujeição dos valores mobiliários
representativos de dívida a um sistema de duplo registo. Sucede, com efeito,
que a emissão de obrigações realizada através de oferta pública está sujeita
a inscrição no Registo Comercial e a registo prévio na Comissão do Mercado de
Valores Mobiliários[2]. Esta circunstância, com explicação histórica na
precedência da codificação societária sobre a codificação mobiliária,
representa actualmente uma infundada duplicação de instâncias de controlo de
legalidade, com severo prejuízo para os custos de emissão e com o
agravamento da morosidade associada ao processo de emissão. Não pode
esquecer-se, a este propósito, que as estatísticas actuais entre nós dão
conta de um cada vez mais reduzido número de emissões públicas de empréstimos
obrigacionistas clássicos, particularmente por parte de emitentes não
bancários[3]. Apesar desta ineficiência
normativa, a verdade é que os tempos mais recentes conheceram intervenções
legislativas que traduzem avanços do sistema mobiliário nacional, explícita e
intencionalmente movidos pela globalização dos mercados e pela concorrência
entre ordenamentos jurídicos. Aqui se incluem, nomeadamente, o novo Código
dos Valores Mobiliários, aprovado pelo DL n.º 486/99, de 13 de Novembro, o
regime dos warrants autónomos constante do DL n.º 172/99, de 20 de Maio, e o
tratamento legislativo conferido às operações de titularização, inaugurado
com o DL n.º 453/99, de 5 de Novembro. Concentrar-se-ão estas páginas neste
último. II – A titularização parte da
feliz resposta a duas ordens de utilidades. De um lado, esta operação assenta
na vantagem encontrada na cessão de créditos por parte de entidades que, por
virtude da sua actividade profissional, lidam regularmente com um conjunto
significativo e temporalmente estável de devedores, vendo o seu desempenho
financeiro melhorado ao libertarem-se de parte do universo dos créditos
detidos. De outro lado, constata-se que,
atendendo à função de legitimação do valor mobiliário, o seu preço em mercado
será tanto maior quanto mais elevado for o valor do direito subjacente –
constituindo designadamente factor de apreciação a circunstância de a
situação jurídica de base ser rodeada de uma garantia a favor do titular do
valor mobiliário[4]. É da reunião destas utilidades que
desponta a titularização[5]: em primeira aproximação, dir-se-á que esta
envolve uma transmissão em massa de créditos aptos a gerar fluxos financeiros
duradouros, com o objectivo de estes virem a servir de garantia a situações
jurídicas representadas por valores mobiliários. Por
prudência, cabe preliminarmente advertir que à sucessão de neologismos nacionais
que se perfilhavam como candidatos para a tradução do vocábulo anglo-saxónico
securitization[6] - securitização, titularização, mobilização[7] -
corresponde uma variedade ainda mais intensa de significados que a esta são
atribuídos. A
pluralidade de sentidos atribuídos à titularização e a falta de rigor com que
a expressão é muitas vezes empregue são de tal modo notórios que se chega a
questionar a efectiva existência de um significado técnico subjacente àquele
conceito: um autor britânico apelidou-o severamente como “a buzz word lacking
any technical meaning”[8]. Similarmente, já houve quem afirmasse tratar-se
de um dos termos mais ambíguos do vocabulário jurídico[9]. Não se reputam,
porém, como justas estas observações. A titularização tem um espaço demarcado
no tráfego e na literatura, apesar da sua púbere existência. Em vez de lhe
apontar traços de ambiguidade, há que anotar o acentuado poliformismo do
fenómeno e a diversidade das configurações que, na prática, recebe. Sucede,
aliás, que a diversidade de esquemas de titularização se explica, não apenas
pela sua versatilidade, mas também por razões históricas, ligadas à génese do
fenómeno. O
expediente da titularização ainda ostenta a aura de novidade. A sua génese
situa-se nos anos trinta nos Estados Unidos no ambiente da Grande Depressão,
a causar profunda crise no sector do crédito imobiliário[11]. O National Housing Act
de 1934 viria a estar ligado de perto à figura, na medida em que este diploma
pretendeu criar um mercado secundário de créditos hipotecários como meio de
auxiliar instituições de crédito imobiliário face ao risco de
incumprimento. Houve, no entanto, que aguardar quase quatro décadas para se
verificar, nos anos setenta, o aparecimento em termos estruturados de valores
mobiliários representativos de dívida cujo reembolso era garantido por
agências públicas federais – tais como a Government National Mortgage
Association (GNMA ou, na gíria, Ginnie Mae), a Federal National Mortgage
Association (FNMA ou Fannie Mae) e a Federal Home Loan Mortgage Company
(FHLMC, também designada, no jargão do mercado, Freddie Mac)[12].
Daqui surge uma constatação relevante: a titularização não nasceu em puro
ambiente de mercado. V – A evolução histórica do
processo de titularização desenvolveu-se em direcção a uma célere
diversificação dos quatro pólos essenciais do fenómeno. De um lado, deve
ter-se em conta a diversificação de direitos de crédito utilizados; a que
acresce a pluralidade de formas jurídicas em que assentam os cedentes e os
cessionário nestes processos, condição importante para a internacionalização
do fenómeno. VI - Interessa, em primeiro lugar,
tomar nota da extrema diversificação de direitos utilizados nos processos de
titularização neste percurso histórico. A titularização teve, como vimos, um
despontar no tráfego em torno do mercado hipotecário (mortgage-backed
securities), tendo inicialmente por base a emissão de valores mobiliários
garantidos por direitos de crédito com garantia hipotecária. A partir dos
anos oitenta, alargou-se esta técnica a outros bens, o que justifica, do
ponto de vista terminológico, que nos Estados Unidos se tenha vulgarizado o
termo mais amplo de asset-backed securities para designar os valores
mobiliários emitidos com base em operações de titularização. Assim, passaram
a funcionar como activos mobilizáveis créditos a empresas, créditos
emergentes de locação financeira, créditos emergentes de cartões[13] e
outros tipos de crédito ao consumo. O alastramento a outro tipo de bens –
inclusivamente de natureza não financeira - tem sido contínuo, não sendo
possível indicar, neste momento, um universo cristalizado de bens
mobilizáveis através desta técnica[14]. Apenas por razões pragmáticas,
ligadas à facilidade de transmissão em massa, se verifica ainda uma certa
padronização dos direitos de crédito a mobilizar.
A
racionalização da utilização dos fundos próprios, em benefício dos rácios de
solvabilidade foi, numa primeira fase, aproveitada apenas por sociedades
bancárias, sob influência das exigências prudenciais que apelam a uma
racionalização dos fundos próprios, empreendidas nomeadamente pelo Comité de
Basileia e pelo direito comunitário. No entanto, as preocupações prudenciais
e de eficiência de gestão foram igualmente partilhadas por outras sociedades
cuja actividade não se desenvolve na área financeira, vislumbrando-se na
titularização uma técnica de gestão de créditos potencialmente apicável a
qualquer empresa. Refira-se
designadamente que, no aproveitamento das sinergias dos grupos de sociedades,
a possibilidade de potenciar uma racionalização do desempenho financeiro das
sociedades coligadas é aumentada através da cessão de créditos das várias
sociedades do grupo a um mesmo cessionário, para obter maior liquidez do
valor mobiliário emitido[15]. VIII – Importa ainda tomar nota da
vincada diversificação de estrutura, em atenção à natureza da pessoa jurídica
emitente dos valores mobiliários emitidos na base de operações de
titularização. No contexto norte-americano, a
forma embrionária de titularização implicava uma aquisição de créditos por
bancos. Ulteriormente, o processo passou a ter como característica o facto de
envolver transmissões de créditos do seu detentor originário (na gíria
designado por originator ou sponsor) para uma outra entidade, que funcionaria
como “veículo” da operação de financiamento (special purpose vehicle ou
special purpose entity) através da emissão de valores mobiliários. Este
aspecto consolidou-se de modo a que o processo de titularização passou a
singularizar-se pela contraposição generalizada, como sujeitos jurídicos
distintos, entre o cedente e o cessionário dos créditos a mobilizar[16].
A
estrutura jurídica do cessionário passa, no tráfego internacional, a denotar
também reflexos do polimorfismo que caracteriza a titularização. Assim, nos
ordenamentos anglo-americanos, o cessionário pode estruturar-se como trust,
como fundo de investimento ou como sociedade[17]. Em certa
medida, o nosso ordenamento jurídico aparta-se deste avanço ao consagrar um
princípio de tipicidade de entidades cessionárias[18]. Além disso, mercê do
alheamento continental em relação aos trusts[19], acabou por reconhecer
como veículos de operações de titularização apenas as sociedades de
titularização e os fundos de titularização. Esta
diversidade estrutural - ainda que em menor grau no direito português - acarreta
consequências marcantes quanto à construção jurídica do fenómeno, pois impede
a recondução, a um tipo unitário, dos valores mobiliários emitidos na base de
processos de titularização. Apesar
de o mercado norte-americano apresentar ainda os números de utilização mais
intensa destas operações[20], o facto é que cedo o fenómeno se alargou à
Europa. Aqui, destaca-se a difusão que a técnica de titularização encontra no
Reino Unido, na Bélgica[21] e em França, tendo sido, neste último caso, os
fonds commun de créances primeiro regulados pela Lei n.º 88-1201, de 23
de Dezembro, revista em 1993[22]. A Espanha seguiu o mesmo caminho em 1992,
através da aprovação de uma lei sobre regime e fundos de investimento e de
titularização, primeiro hipotecária (Lei 19/1992, de 7 de Julho) e mais
recentemente estendida a outros activos financeiros (Real Decreto n.º
926/1998). Até à entrada
em vigor do DL n.º 453/99, de 5 de Novembro, o ordenamento jurídico
nacional apenas conhecia a emissão de obrigações hipotecárias como forma
próxima da titularização de créditos (DL n.º 125/90, de 16 de Abril)[23].
Trata-se de valores mobiliários representativos de dívida cuja situação
jurídica subjacente é reforçada através de um privilégio creditório especial
sobre os créditos hipotecários afectos à emissão[24]. Aí coexistirá, por
regra, na mesma pessoa jurídica, o detentor originário dos créditos e o
emitente dos valores mobiliários[25], o que constituirá porventura
motivo do seu menor sucesso em Portugal quanto à sua utilização pelo
tráfego[26]. Contudo, são instrumentos jurídicos assentes em modos de
captação de aforro cujos rudimentos são mais antigos, que encontram
antecedentes remotos em experiências de emissão de títulos de dívida de
crédito hipotecário na Alemanha, desde o século XVIII[27]. Tem-se,
todavia, presente que esse não é o esquema central de titularização. Este,
nas mais das vezes, repousa em estruturas mais complexas, em que a par do
cedente de créditos (originator) figura um cessionário (special purpose
vehicle (SPV) ou special purpose entity (SPE)) que toma a iniciativa da
emissão dos valores mobiliários com base nos créditos cedidos. I – Apesar de se frisar que a
titularização não envolve necessariamente instituições financeiras do lado
dos cedentes, interessa enquadrar a titularização como peça do sistema
financeiro, por forma a entender por que razão esta corresponde a uma fase
mais elaborada de desintermediação financeira. Embora seja
trivial, é útil lembrar que configuração típica do sistema financeiro baseada
no financiamento bancário supõe a interposição das instituições de crédito
entre os aforradores e os sujeitos carecidos de financiamento. É graças à
dupla função das instituições de crédito - recepção de fundos
reembolsáveis e concessão de crédito –, somada ao efeito jurídico-real de
transmissão da propriedade dos bens (fungíveis) depositados para a esfera do
depositário, que este circuito económico flui. Assim se apresenta o sistema
financeiro assente na intermediação, na sua acepção mais central. O mercado de
valores mobiliários representa, como também é sabido, uma configuração
diferente no sistema financeiro. De facto, a emissão de valores mobiliários
logra colocar em contacto directo o tecido empresarial e os aforradores –
aqueles procurando no mercado os meios alternativos ao financiamento da sua
actividade, estes buscando no investimento mobiliário mecanismos de aforro
diferentes das tradicionais aplicações bancárias[28]. Neste desenho, passa
a haver menor dependência do financiamento bancário e, relegadas para a
margem, as instituições financeiras vêem neste quadro um estímulo para a sua
diversificação de actividades e, em particular, para a prestação de serviços
associados ao mercado de valores mobiliários (colocação, consultoria, gestão
de carteiras, transmissão de ordens, entre outros). Trata-se do que, na sua
formulação mais simples, se pode designar de desintermediação financeira de
1.º grau. Neste percurso,
a titularização tem a singularidade de corresponder a uma satisfação
simultânea de necessidades dos aforradores, do sector empresarial e das
entidades financeiras[29]. A jusante, envolve um contacto entre as
entidades de financiamento (os special purpose vehicles) e os investidores,
através da emissão de valores mobiliários. A montante, supõe, ou o
funcionamento tradicional do sistema financeiro, envolvendo a optimização
prudencial da actividade de concessão de crédito; ou implica alternativamente
o desenrolar de actividades negociais - sem intervenção de instituições
financeiras – que pressupõe a assunção de posições creditícias e o afinamento
da sua gestão. A titularização corresponde, nessa medida, a uma fase mais
elaborada do circuito económico-financeiro, que podemos designar de
desintermediação financeira de 2.º grau. II – A partir daqui entende-se
ainda ser mais ajustado analisar a titularização do ponto de vista dinâmico,
por forma a abarcar as fases que, a montante e a jusante, aí estão
compreendidas. De
facto, a titularização envolve uma sequência de actos e negócios jurídicos
tendentes à comercialização em mercado secundário de valores mobiliários
emitidos na base de direitos de crédito. A complexidade e a natureza
processual da titularização conduz à sua qualificação como uma operação[30]. Este ponto
justifica um apontamento. Sucede que em alguma literatura depara-se o
conceito de titularização como reportando-se ao conjunto de técnicas
envolvendo a transformação de créditos (ou de outros bens a que não esteja
associado um mercado secundário) em valores mobiliários líquidos, através da
emissão de valores mobiliários[31]. Este formulação não revela, porém, alguns
traços essenciais da figura, designadamente por se centrar no resultado do
processo, e não nas etapas que compreende até à sua conclusão[32].
Por outro lado, não parece adequado focar principalmente a vicissitude
modificativa em relação ao débito, uma vez que, na titularização de créditos,
a modificação da relação obrigacional de base se reflecte apenas em relação
à pessoa do titular – vicissitude que, aliás, no contexto global de
transmissões de créditos em massa, não pode deixar de ser considerada de
diminuta importância[33]. Julgam-se,
assim, que é mais correcto reunir três traços tipológicos que marcam este
processo: a existência de uma transmissão de um conjunto de direitos de
crédito de longa duração, idóneos a proporcionar frutos periódicos; a emissão
de valores mobiliários; e o facto de os créditos funcionarem como garantia da
situação jurídica subjacente representada através da emissão de valores
mobiliários. Resta
agora identificar as fases fundamentais da operação de titularização, de
seguida analisadas: a fase preliminar de individualização e avaliação do
crédito; a fase da transmissão dos créditos; e a fase da emissão. É importante
apontar o papel dos intermediários financeiros neste momento, o qual comporta
uma dupla vertente: um controlo do mérito económico-financeiro da operação
quanto à oportunidade e à adequação do crédito no contexto da operação de
titularização; e um controlo de legalidade, no que toca ao cumprimento das
regras legais inerentes à recolha e preparação de informação sobre o crédito
a transmitir, a qual irá fazer parte do prospecto (due dilligence)[34]. O conjunto de
deveres jurídicos assinalados aos intermediários nesta fase preparatória da
oferta, fundamental para uma formação correcta da decisão de investimento, é
objecto de regulação geral no art. 337.º do novo Código dos Valores
Mobiliários, sob a designação de contrato de assistência. Aí se refere
directamente que o intermediário financeiro incumbido da assistência em
oferta pública deve aconselhar o oferente sobre os termos da oferta e deve
assegurar o respeito pelos preceitos legais e regulamentares aplicáveis,
mormente no domínio informativo. Embora dirigido apenas a ofertas públicas,
no âmbito das quais o contrato de assistência é de celebração obrigatória
(art.113.º CVM), o mencionado art. 337.º representa um dispositivo com plenas
potencialidades aplicativas às emissões de valores mobiliários que se
realizem através de oferta particular, sobretudo no âmbito de operações de
titularização. Nos
primórdios da titularização, nos Estados Unidos, a tarefa de avaliação era
originariamente realizada através da intervenção de uma agência federal,
através da concessão de garantias. Com a evolução do expediente, passou a ser
a notação de risco (rating) a funcionar como meio indispensável de avaliação
do risco inerente aos direitos de crédito e à sua mobilização, prática que
foi iniciada já na segunda metade da década de oitenta[37]. A avaliação do risco
passou, pois, a substituir no tráfego a prestação de garantias pelo
cumprimento dos créditos cedidos: em vez de se anular o risco de não
cumprimento dos créditos, procura-se, de acordo com os princípios
mobiliários, torná-lo visível para uma fundada decisão de investimento[38]. A
obrigatoriedade de apresentação de relatório de notação de risco apenas vale
para a emissão de unidades de titularização e de obrigações titularizadas
realizada através de oferta pública. Assenta-se aqui na contraposição entre
ofertas particulares e ofertas públicas relativas a valores mobiliários, cujo
critério distintivo figura nos arts. 109.º e 110.º do Código dos Valores
Mobiliários, reservando-se para estas últimas o sistema mais exigente do
ponto de vista dos deveres de informação. Este enunciado é válido no direito
mobiliário em geral, mas recebe uma confirmação particularmente intensa nas
ofertas públicas de valores mobiliários emitidos na base de operações de
titularização, uma vez que é sobretudo o público investidor que reclama uma
informação rigorosa sobre o risco de incumprimento associado aos créditos
mobilizados e, consequentemente, sobre o risco de não reembolso do seu
investimento. O conteúdo
mínimo deste relatório é definido por lei, no art. 27.º, n.º 4, do DL n.º
453/99, de 5 de Novembro. Merecem apreciação nesse documento informativo,
designadamente, a avaliação prudencial dos créditos cedidos (alíneas a), d) e
e)) bem como a adequação da estrutura da operação de titularização, encarada
no seu todo (alíneas b) e c) do mencionado art. 27.º, n.º 4)[40]. A elaboração
destes relatórios apenas pode realizar-se por sociedades de notação de risco,
que estão sujeitas a deveres de imparcialidade – o que justifica a sua
sujeição a registo de supervisão na CMVM (art. 12.º CVM)[41]. Nesta óptica da
confiabilidade da informação[42], o regime da titularização
demonstra ser substancialmente mais avançado do que o encontrado em relação à
avaliação dos créditos subjacentes à emissão de obrigações hipotecárias,
em que o relatório de avaliação dos bens hipotecados, igualmente exigível, é
da exclusiva responsabilidade da entidade emitente, segundo o art. 14.º do DL
n.º 125/90, de 16 de Abril. Este dever de
apresentação de relatório de notação de risco em ofertas públicas não exclui
a faculdade de haver a prestação de garantias quanto ao cumprimento do
crédito cedido assumidas por terceiros, designadamente seguradoras, por
exemplo através da celebração de contratos de seguro de créditos (art. 4.º,
n.º 5). Tal influirá, naturalmente, na classificação atribuída pela sociedade
de notação de risco. Esta
exigência é explicada por razões ligadas ao reforço de protecção dos
investidores, uma vez que a segregação do crédito torna a titularização imune
ao risco de insolvência do cedente (bankruptcy remoteness). Apenas assim,
aliás, é possível proceder a uma notação de risco que tenha exclusivamente em
atenção a qualidade dos direitos cedidos[44]. Também
a partir daqui é tornada mais fácil a tarefa de distinção da titularização em
relação ao factoring, na medida em que esta operação bancária pode não envolver
uma cessão de créditos em sentido técnico, ao resultar nomeadamente num mútuo
sujeito a condição (o dito factoring impróprio)[45]. II - O regime nacional mostra-se
sensível à tendência de crescente diversificação dos direitos titularizados[46],
ao não colocar requisitos gerais quanto à susceptibilidade de
titularização relacionados com a fonte de que emergem os créditos. Tal não
valerá apenas para as empresas de seguros, fundos de pensões e sociedades
gestoras de fundos de pensões, que só podem ceder para titularização créditos
hipotecários, créditos sobre o Estado ou outras pessoas colectivas públicas e
créditos dos fundos de pensões[47]. Para
aquilatar a amplitude do regime português no tocante a este aspecto,
compare-se o regime nacional como o encontrado no direito belga, que apenas
admite, como base de operações de titularização, créditos bancários, com
duração superior a dois anos e que tenham a mesma natureza[48]. No mais,
refira-se que no DL n.º 453/99, de 5 de Novembro, são apenas feitas exigências
ligadas ao conteúdo do crédito tendo em vista a sua relação com uma operação
colectiva de investimento. Devem, nessa medida, os créditos ser livremente
transmissíveis e de natureza pecuniária; não podendo ser condicionados nem
estar vencidos; nem, por último, ser litigiosos (art. 4.º do DL n.º
453/99, de 5 de Novembro). Na
economia do diploma, deve entender-se que a cessão de créditos vincula
imediatamente o transmitente, ainda que se refira a créditos futuros[49].
Quanto a estes últimos, impõe o art. 4.º, n.º 2, que sejam emergentes de
relações jurídicas constituídas e sejam de montante conhecido ou estimável
para poderem ser objecto de cessão no âmbito das operações de titularização. Como
se sabe, em geral a eficácia da cessão de créditos em relação ao devedor
depende de notificação feita a este (art. 583.º CC) podendo o devedor, até ao
conhecimento da cessão, opor ao cessionário os meios de defesa oponíveis ao
cedente (art. 585.º CC). Mais se sabe que a forma da transmissão segue a
exigida para o negócio de base, não se prescindindo de escritura pública para
a cessão de créditos hipotecários (art. 578.º CC)[50]. Porém,
no ambiente macro-jurídico da titularização, não seria exequível fazer
notificações em massa aos devedores cedidos, nem tão-pouco se afiguraria
prática a outorga de escritura pública sempre que os créditos a transmitir
fossem créditos hipotecários. Este problema ditou a necessidade de revisão de
vários ordenamentos europeus, a favor de uma flexibilização dos mecanismos
transmissivos[51]. Em
Portugal, as exigências gerais quanto à eficácia da cessão de créditos
perante o devedor mantêm-se, salvo quando se trate de cessão de créditos cujo
cedente seja instituição de crédito, sociedade financeira, empresa
seguradora, fundo de pensões ou sociedade gestora de fundos de pensões. Nesse
caso, a cessão é eficaz simultaneamente perante os contraentes e perante o
devedor, sem carecer, em relação a este, de conhecimento, de aceitação ou de
notificação (art. 6.º, n.º 4). Encarado à luz
do percurso evolutivo do regime da transmissão de créditos, este aspecto
constitui mais um passo no sentido do apagamento da relevância do devedor
cedido. É muito interessante analisar, deste prisma, a evolução do instituto
da cessão de créditos, que já conheceu a hostilidade do Direito Romano - no
seio do qual foi gizada uma modalidade de mandato para atingir resultados
próximos - e já se defrontou com a exigência medieval de consentimento para a
eficácia transmissiva, dada a ideia da ligação do crédito à pessoa do credor[52]. A verdade é
que, na continuidade do regime constante do Código de Seabra[53], o
actual Código Civil, no tratamento da cessão, firma claramente a irrelevância
da pessoa perante quem o devedor cumpre (art. 583.º), exceptuados casos de
prestações estritamente pessoais, por isso julgadas intransmissíveis. Em
consequência, no regime civil da cessão de créditos é dispensado o
assentimento do devedor cedido, sendo a notificação requisito de eficácia
perante o devedor, conquanto – como agora se reconhece sem escolhos - que não
funcione como requisito de perfeição do contrato de cessão[54].
Todavia, lembre-se que o Código Civil alemão vai mais longe, ao dispensar
o conhecimento do devedor para a eficácia da cessão (§ 398.º), embora se
estabeleçam uma série de laboriosos preceitos que visam tutelar o devedor
cedido em caso de desconhecimento da cessão (§§ 406.º-409.º)[55]. O regime da
cessão de créditos no âmbito da titularização inscreve-se nesta tendência,
uma vez que, nos casos mencionados, deixa de se fazer a exigência, contida no
nosso Código Civil, do conhecimento do devedor para a cessão de créditos ser
eficaz, mesmo perante este. Os resultados desta solução são amparados pela
circunstância de a gestão dos créditos cedidos se manter na esfera jurídica
do cedente, quando este seja instituição de crédito, sociedade financeira ou
empresa de seguros, de acordo com o art. 5.º, n.º 1. Ora, como o
rigor obriga a lembrar, esta previsão não esgota o rol de cedentes à luz da
previsão do art. 6.º, n.º 4. Justifica-se, nessa medida, uma interpretação
extensiva do art. 5.º, n.º 1, por forma a fazer abarcar a cessão feita às
demais entidades mencionadas no art. 6.º, n.º 4 (fundos de pensões e
sociedades gestoras de fundos de pensões), para dar cabal resposta às
hipóteses de cumprimento perante o cedente, e não o cessionário, em caso de
ignorância da cessão por parte do devedor[56]. Sublinhe-se,
por precaução, não se tratar o art. 6.º, n.º 4, de uma solução geral, apenas
valendo em relação a este particular universo de cedentes; nem pode,
tão-pouco, ser extrapolada para o domínio da cessão da posição contratual, em
que o requisito do consentimento da contraparte não sofre qualquer desvio
(art. 424.º CC). A forma da
transmissão de créditos para titularização, por seu turno, mereceu um
aligeiramento substancial em relação ao art. 578.º CC, na medida em que o
art. 7.º do DL n.º 453/99, de 5 de Novembro, permite que a cessão se realize
por documento particular, ainda que tenha por objecto créditos hipotecários. § 5.º A emissão de valores mobiliários na sequência
de operações de titularização
Como
se frisou, o DL n.º 453/99, de 5 de Novembro, reconhece capacidade para a
emissão de valores mobiliários com base em técnicas de titularização aos
fundos de titularização e às sociedades de titularização. Há, por outro lado,
a imposição de uma especialização absoluta no objecto destes special purpose
vehicles, revelada nos arts.16.º, n.º1, e 39.º do mesmo diploma: assim,
respectivamente, as sociedades gestoras de fundos de titularização têm como
objecto exclusivo a gestão deste tipo de fundos e as sociedades de
titularização têm como objecto exclusivo a realização de operações de
titularização. Ambas são, na lei, qualificadas como sociedades financeiras
(arts. 17.º e 39.º)[58]. II - A emissão dos valores
mobiliários emitidos na sequência de operações de titularização deve ser
confrontada com a fundamental distinção, no seu tratamento normativo, entre
emissões efectuadas através de oferta particular e emissões realizadas
através de oferta pública[59]. Em relação a
estas últimas, há uma sensível densificação dos deveres de informação sobre
os direitos de crédito objecto da titularização e sobre os valores
mobiliários emitidos. Assim, de acordo com o art. 114.º do Código dos Valores
Mobiliários, a emissão está sujeita a um registo prévio na CMVM, o qual tem
em vista um controlo da legalidade da oferta e dos documentos que lhe servem
de base, designadamente quanto ao cumprimento dos deveres informativos
inerentes à operação e quanto à elaboração do respectivo prospecto[60]. Perante os
créditos bancários - e, portanto, emergente de relações contratuais sujeitas
a deveres de segredo (art. 78.º RGIC) - colocava-se a questão melindrosa de
saber como possibilitar a respectiva transmissão sem haver violação do dever
de segredo, sobretudo ante os deveres de informação no prospecto impostos nas
oferta públicas. A resposta da nossa lei foi a de fazer com que a transmissão
se realize com a identidade dos devedores cifrada, ficando a chave do código
depositada na CMVM[61]. Em caso de incumprimento, os credores
obrigacionistas solicitarão à CMVM o código, para poder fazer valer as suas
pretensões creditícias. Até lá, fora desse momento patológico, preserva-se o
segredo bancário quanto aos créditos cedidos. A divulgação das
características gerais dos créditos – que, no plano informativo, é o aspecto
mais relevante[62] - é feita sem revelação da identidade dos devedores, sendo por
esse motivo lícita, à luz do art. 80.º, n.º 2 do Regime Geral das
Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras. Com efeito,
para contornar os efeitos perniciosos do sistema de duplo registo de valores
obrigacionistas a que atrás se fez referência[63], o legislador estabeleceu
no art. 46.º, n.º 4, do DL n.º 453/99, de 5 de Novembro, que a emissão de
obrigações por parte de sociedades de titularização não estaria sujeita a
registo comercial, em desvio do regime constante do art. 3.º, alínea l) do
Código do Registo Comercial. Em benefício da publicidade da emissão, basta o
envio à Conservatória do Registo Comercial competente de declaração
comprovativa do registo da emissão na CMVM, para depósito oficioso na pasta
da sociedade. Em
contrapartida, impôs-se a necessidade de prévio registo na CMVM de emissões
de obrigações por sociedades de titularização, mesmo quando a emissão se
realize através de oferta particular, através do art. 46.º, n.º 3[64].
A redacção das alíneas a) e b) deste art. 46.º, n.º 3, é maximalista,
abrangendo a oferta de obrigações titularizadas emitidas por sociedade
sujeita a lei pessoal portuguesa, mesmo que a oferta seja dirigida ao
estrangeiro, e a oferta realizada por sociedade de titularização sujeita a
lei pessoal estrangeira realizada em Portugal. Deixa-se apenas de fora do
âmbito aplicativo do diploma, evidentemente, as ofertas realizadas no
estrangeiro por sociedades de titularização sujeitas a lei estrangeira. O
dever de registo prévio na CMVM não envolve, para as ofertas particulares,
dever de elaboração de prospecto nem de contratação de intermediário
financeiro na assistência ao processo de registo – embora, na prática, esta
última possa vir a ocorrer, sob a forma de assistência do emitente[65]. Frise-se também
que a emissão de unidades de titularização, que deve assumir necessariamente
forma escritural (art. 31.º, n.º 1)[66], deve ser precedida da
autorização da CMVM para a constituição do fundo de titularização (art. 27.º).
Nos fundos de
titularização, prevê-se uma larga margem de conformação, no regulamento de
gestão, do conteúdo dos direitos inerentes às respectivas unidades de
titularização. O art. 32.º, n.º 1, prevê que as unidades de titularização
possam conferir, exclusiva ou cumulativamente, o direito ao pagamento de
rendimentos periódicos, o direito ao reembolso do valor nominal das unidades
de participação e o direito à quota de liquidação, após serem pagos os
rendimentos periódicos e as despesas a cargo do fundo. É certo que se afasta a
responsabilidade da sociedade gestora pela mora ou incumprimento dos direitos
de crédito que integram o património do fundo (art.32.º, n.º 4). Mas,
salvaguardado este aspecto, confia-se à autonomia privada o estabelecimento
do regime de responsabilidade patrimonial do fundo e dos direitos de cada titular
de unidades de titularização. Geralmente, na prática
verificada em mercados estrangeiros, o conjunto de direitos de crédito afecto
a cada emissão é suficiente para reembolsar os credores obrigacionistas.
Aliás, em virtude das garantias estabelecidas em benefício dos titulares dos
valores obrigacionistas, esta auto-suficiência do património a garantir o
reembolso das obrigações resiste mesmo perante o risco de liquidação da
sociedade de titularização. Daí que, ordinariamente, na notação de risco seja
mais importante a estruturação da operação e o avaliação dos créditos do que
a envergadura patrimonial do emitente[67]. Este efeito é obtido
através de uma cuidadosa adequação dos créditos à obrigação de reembolso do
empréstimo obrigacionista, sendo garantido da diferença positiva entre o
montante dos créditos que servem de garantia e o montante da dívida de
capital e juros representada pelos valores mobiliários emitidos
(over-collateralisation)[68]. Por outro lado, as sociedades de notação de
risco usualmente exigem, para uma boa classificação, que não haja uma
exposição do património do emitente a dívidas perante terceiros: também o
património do emitente será, nestes termos, imune ao risco de insolvência[69].
Estes dados explicam
que, no tráfego, as sociedades emitentes deste tipo de valores mobiliários se
apresentem normalmente com uma estrutura patrimonial muito ligeira (thinly
capitalised)[70]. A especialidade do seu objecto conduz a que não existam
outras actividades a desenvolver pela sociedade de titularização, pelo que
mesmo as exigências legais de um capital social mínimo acima do exigido na
forma societária de base têm duvidosa justificação material, expondo-se a
críticas no sentido de levarem tão-só a uma “contraproducente imobilização de
capital”[71], susceptível de desvirtuar o perfil funcional da operação de
titularização, do ponto de vista da eficiência alocativa. Nestes casos, antes da
emissão deve ser afectada uma parcela de créditos, na medida em que for
necessária, ao reembolso do empréstimo obrigacionista (art. 47.º, n.º 2),
créditos esses sobre os quais recai um privilégio creditório especial a favor
dos titulares de obrigações titularizadas (art. 49.º). Posto isto, os
direitos de crédito ficam, nos termos do art. 48.º, submetidos ao princípio
da segregação, não respondendo por outras dívidas do emitente até reembolso
integral do montante devido aos titulares das obrigações titularizadas (n.º
1). A autonomia
patrimonial deste lote de créditos não é, contudo, absoluta. Com efeito, no
direito português não foi consagrado o princípio do limited recourse, segundo
o qual apenas os créditos e respectivos frutos afectos à emissão responderiam
pelo reembolso das obrigações[72]. O património da sociedade de titularização
responde pelo reembolso das obrigações titularizadas, como é princípio
geral do nosso direito patrimonial privado (art. 601.º CC). Além disso, o
remanescente dos créditos afectos ao reembolso das obrigações titularizadas
serve de garantia patrimonial aos credores comuns da sociedade de
titularização (art. 48.º, n.º 2). Certo é, porém, que em execução movida
contra a sociedade de titularização, o exequente apenas pode penhorar o
direito ao remanescente se provar a insuficiência dos demais bens da
sociedade (art. 48.º, n.º 3). Vê-se, assim, que o
regime nacional dobra a tutela patrimonial do titular de obrigações
titularizadas, que tem em garantia do seu crédito obrigacionista, não apenas
um privilégio creditório especial sobre um conjunto adequado de créditos, mas
também o património geral do emitente. A diversidade de tratamento entre os
credores obrigacionista e os credores comuns entende-se facilmente, tendo em
vista o objecto único a que se dedicam estas sociedades: a realização das
operações de titularização. |
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Retirado de: http://www.fd.ul.pt/licenciatura/dvm/estudos/titularizacao.htm
[1] SIMON SACKMAN/
MARGARET COLTMAN, Legal Aspects of a Global Securities Market, in FIDELIS
ODITAH (ed.), The Future for the Global Securities Market. Legal
and Regulatory Aspects, Oxford, (1996), 28-29. Um bom exemplo de concorrência legislativa provém
dos Estados Unidos, em que as legislações societárias federais ditam as
opções das sociedades quanto ao local de incorporação, o que pode
documentar-se amplamente em ROBERTA ROMANO, The Genious of American Corporate
Law, Washington, (1993); Id., Empowering Investors: A Market Approach to
Securities Regulation, in KLAUS HOPT/ HIDEKI KANDA/ MARK J. ROE/ EDDY
WYMEERSCH/ STEFAN PRIGGE, Comparative Corporate Governance, Oxford, (1998),
143-217 (149-174). |
[2] Art. 3.º, alínea l) do Código do Registo
Comercial e art. 114.º do Código dos Valores Mobiliários. Adiante
entender-se-á melhor a importância do sistema de duplo registo na actual
configuração do regime da tirularização, a propósito da emissão de obrigações titularizadas:
v. infra, § 5.º, III. |
[3] No ano de 1997 apenas houve 4 emissões de obrigações
por subscrição pública submetidas a registo na CMVM - e destas apenas uma
dizia respeito a um emitente não bancário. A emissão em causa não era, sequer,
uma pura emissão de obrigações: tratava-se de obrigações convertíveis em
acções. No ano de 1998, os números são muito semelhantes, pois contam-se
apenas 5 emissões de obrigações clássicas registadas na CMVM, sendo todas elas
relativas a obrigações com warrant. O panorama é sensivelmente diferente se
tivermos em conta as obrigações de caixa e os títulos de dívida de curto
prazo (vulgo papel comercial), umas e outros não sujeitos a registo
comercial. Para um último retrato estatístico, veja-se CMVM, Relatório Anual.
A Situação Geral dos Mercados de Valores Mobiliários, (1997), 49-50; Id.,
ibid., (1998), 55-60. |
[4] A afirmação encontra demonstração directa na
avaliação dos warrants, em que o preço varia consoante a evolução do preço do activo subjacente. Mas
também é facilmente constatável nos valores mobiliários representativos de
dívida, consoante seja esta subordinada ou garantida. Por isso não se pode
afirmar que a técnica da derivação seja totalmente diversa da utilizada nos
valores mobiliários, encarados do ponto de vista da sua avaliação económica
(como por exemplo aparece defendido em GUIDO FERRARINI, I Derivati Finanziari
tra Vendita a Termine e Contratto Differenziale, in FRANCO RIOLO (ed.), I
Derivati Finanziari. Profili Economici, Giuridici e Finanziari, Milano
(1993), 27). |
[5] A pedra de toque de ligação entre estas duas
utilidades reside também no regime civil da cessão de créditos, que, como se
sabe, faz acompanhar as garantias que rodeiam o direito transmitido (art. 582.º/1 CC). Cf. em geral
MENEZES CORDEIRO, Direito das Obrigações, Lisboa, (1980), 91-92; RIBEIRO DE
FARIA, Direito das Obrigações, Coimbra, (1990), II, 530-535. |
[7] O Despacho Normativo n.º 564/94 já se referia a titularização,
o que terá jogado a favor da utilização do mesmo termo no DL n.º 453/99, de 5
de Novembro. Porém, mesmo a entender não estarmos perante um galicismo,
a expressão está sujeita às mesmas críticas perante a utilização do vocábulo
título para sinónimo de valor mobiliário, sobretudo quanto à sua inadequação
para os valores mobiliários escriturais (sobretudo ante a circunstância de as
unidades de titularização, entre nós, deverem revestir necessariamente forma
escritural, nos termos do art. 31.ª, n.º 1: v. infra, § 5.º, II).
Veja-se que o novo Código dos Valores Mobiliários considera o termo título
como sinónimo de valor mobiliário titulado, no art. 46.º, n.º 1; para
designar, mais genericamente a forma de representação, o legislador prefere
falar em documento (art. 1.º, n.º 2 do mesmo Código), o que se mostra
coerente com o DL n.º 290-D/99, de 2 de Agosto, que qualificou directamente
como documento os documentos electrónicos, caracterizados por serem elaborados
mediante processamento electrónico de dados. No Brasil, a escolha de
neologismo recaiu sobre o vocábulo securitização (CASSIO MARTINS PENTEADO
Jr., A Securitização de Recebíveis de Créditos gerados em Operações dos
Bancos – A Resolução n.º2.493 em sua Perspectiva Jurídica, in Revista de
Direito Mercantil n.º 111, 120-124), também empregue no preâmbulo do DL n.º
453/99, de 5 de Novembro. |
[8] FIDELIS ODITAH,
Selected Issues in Securitisation, in The Future for the Global Securities
Market. Legal and Regulatory Aspects, cit., 84; Id., THEODOR
BAUMS/ EDDY WYMEERSCH, Asset-Backed Securitization in Europe, London/ The
Hague/ Boston, (1996), 100. |
[9] YVES GUYON, Prefácio a
THIERRY GRANIER/ CORYNNE JAFFEUX, La Titrisation, Paris, (1997), 5. Outros
autores consideram-na um loosely used term: JOHN
HENDERSON/ ING BARINGS (ed.), Asset Securitization: Current Techniques and
Emerging Market Applications, Playhouse Yard, (1997), 1-3; JOSEPH C. SHENKER/
ANTHONY COLLETTA, Asset Securitization: Evolution, Current Issues and New
Frontiers, in Texas Law Review (1991), 1373-1374; KENNETH P. MORRISON, The
Securitization Phenomenon, in International Financial Review, (Aug.1993), 3. |
[10] Para uma concretização no domínio do direito da
informação, permito-me reenviar para o meu Deveres de Informação e Formação de Preços no
Mercado de Valores Mobiliários, in Cadernos do Mercado de Valores
Mobiliários, n.º 2, (1998), 79-94; quanto aos reflexos no domínio dos grupos
bancários, veja-se ainda Id., O governo dos grupos bancários, in Estudos de
Direito Bancário, Coimbra, (1999), 111-205 (119-120). |
[11] JOSEPH C. SHENKER/
ANTHONY COLLETTA, Asset Securitization: Evolution, Current Issues and New
Frontiers, cit., 1380-1388; JOHN HENDERSON/ ING BARINGS (ed.), Asset
Securitization: Current Techniques and Emerging Market
Applications, cit., 3-4. Sobre a crise de 1929, e em particular, sobre a
especulação imobiliária que a precedeu – e que desembocou em incumprimentos
em série de empréstimos hipotecários, a gerar por seu turno um intenso tráfego
dos guaranteed mortgage participation certificates, tem interesse consultar
JOHN KENNETH GALBRAITH, The Great Crash 1929, Boston, (1979), de que existe
tradução castelhana, El crac del 29, Barcelona, (1993). |
[12] Embora a FNMA tenha sido criada em 1938 como uma agencie federal,
estrutura-se actualmente como uma sociedade de capitais privados. Todavia, a
verdade é que beneficia de uma linha de crédito posta à disposição pelo
Tesouro norte-americano em caso de necessidade de fundos de emergência, o que
a aproxima a um organismo público. Dos organismos arrolados, apenas a GNMA,
constituída em 1968 a partir de uma cisão do FNMA, se configura como
totalmente garantida pelo Estado. Cf. ANTHONY SAUNDERS,
Financial Institutions Management. A Modern Perspective2, Boston, (1997),
601-602; MARC STERLING/ C.HUANG, Securitization of Mortgages in the United
States, in Butterworths Journal of International Banking and Financial Law
(October 1989), 455-457. |
[13] Uma análise dos problemas associados à
estrutura típica de
reembolso deste tipo de direitos de crédito, quando enquadrados em operações
de titularização, pode encontrar-se em IAN BELL, Securitisation of Credit
Card Receivables: New Bank of England Rules, in Journal of International
Banking Law, n.º 8 (1992), 297. |
[14] Como se intui, a partir daqui divisam-se problemas de
risco, pois alguns destes créditos contam com elevada probabilidade de
incumprimento. Sobre recentes aplicações ao domínio dos créditos futuros
relativos a bens naturais, v. CHARLES E. HARREL/ JAMES L. RICE III/ ROBERT SHEARER,
Securitization of Oil, Gas and Other Natural Resource Assets: Emerging
Financing Techniques in The Business Lawyer Vol. 52 n.º 3 (Maio 1997),
885-946. Em geral, sobre o alargamento do tipo de direitos idóneos à
titularização, numa perspectiva económica: ANTHONY SAUNDERS, Financial
Institutions Management. A Modern Perspective2, cit., 631-633. |
[15] É certo, porém, que no direito português é
limitada a possibilidade de aproveitamento da estrutura dos fundos de
titularização no
contexto de coligações inter-societárias. Com efeito, o art. 16.º, n.º 3,
dispõe que as entidades cedentes cujos créditos transmitidos para fundos
administrados pela mesma entidade gestora representam mais de 20% do valor
global líquido da totalidade dos fundos administrados pela sociedade gestora,
ou de algum desses fundos, não pode, por si ou por sociedade que se encontre
em relação de domínio ou de grupo, deter mais de20% do capital social da
entidade gestora. |
[16] Os textos norte-americanos contrapõem a estrutura pass-through e
pay-through, consoante respectivamente o veículo seja não-societário ou
societário. O pass-through assenta na figura do trust ou do fundo de
investimento, pressupondo uma gestora do património do fundo e um depositário
dos títulos de dívida. JOHN HENDERSON/ ING BARINGS (ed.),
Asset Securitization: Current Techniques and Emerging Market Applications,
cit., 37-40; THEODOR BAUMS/ EDDY WYMEERSCH, Asset-Backed Securitization in
Europe, cit., 11. |
[17] Uma apresentação escorreita sobre as diversas formas jurídicas do
cedente em operações de titularização, no prisma continental, encontra-se em
JEAN-FRANÇOIS ROMAIN, Régime de la Tittrisation de Créances en Droit Belge,
cit., 48-63. |
[18] O art. 3.º do DL n.º 453/99, de 5 de Novembro é, no seu
proémio, categórico. Idêntico comedimento não vale no plano da legitimidade
reconhecida às entidades cedentes de créditos para titularização, ao alcance
de três categorias de entidades: de um lado, figuram o Estado e outras
pessoas colectivas públicas; num segundo lote, incluem-se as instituições de
crédito, as sociedades financeiras, as empresas de seguros, os fundos de
pensões e as sociedades gestoras de fundos de pensões; de outro lado, são
igualmente abarcadas, no art.2.º do diploma, no perímetro das entidades
cedentes as pessoas colectivas cujos documentos de prestação de contas
tenham, nos últimos três exercícios, sido objecto de certificação legal por
auditor registado na CMVM. Porém, da eficácia da cessão perante terceiros
independentemente de notificação (art. 6.º/4) apenas beneficia o segundo
conjunto de entidades, e não as demais. Cf. a propósito infra, § 4.º, III. |
[19] Uma sólida defesa da introdução do trust no
direito português, designadamente para servir de instrumento à titularização de créditos,
depara-se em MARIA JOÃO TOMÉ/ DIOGO LEITE DE CAMPOS, A Propriedade Fiduciária
(Trust): Estudo para a sua Consagração no Direito Português, Coimbra, (1999),
14-15, 308-311 e passim. |
[20] O pioneirismo norte-americano e o tratamento contabilístico cedo
reconhecido à cessão de créditos para titularização no espaço jurídico do
Além-Atlântico são alguns dos motivos apontados para o avanço profundo que o
mercado de titularização tem nesse país: v. OCDE - DIRECTORATE FOR FINANCIAL,
FISCAL AND ENTREPRISE AFFAIRS, Recent Trends and Developments in
Securitisation, (12 Junho 1998), 4-7; JOHN HENDERSON/ ING BARINGS (ed.),
Asset Securitization: Current Techniques and Emerging Market Applications,
cit., 3-4; KENNETH P.MORRISON, The Securitization Phenomenon, cit., 3-5. |
[21] Lei de 5 de Agosto de 1992: v. a propósito
JEAN-FRANÇOIS ROMAIN, Régime de la Tittrisation de Créances en Droit Belge,
in MARC EKELMANS/ JEAN-FRANÇOIS ROMAIN/ VALERIE SIMONART, Questions
d’Actualité en
Droit Économique, Vol. I, Bruxelles, (1994), 39-89. |
[22] HUBERT DE
VAUPLANE/ JEAN-PIERRE BORNET, Droit des Marchés Financiers, (1998), 769-771;
JEAN-BAPTISTE DEVADE/ PHILIP BOYS, Securitisation:Another Step Towards
Developing the French Markets, in Butterworths
Journal of International Banking and Financial Law (May 1989), 218-221. |
[23] Em sustento da conclusão de que “a emissão de
obrigações hipotecárias não prossegue os objectivos da verdadeira
titrisation”, v. ARMINDO SARAIVA MATIAS, Titularização. Um Novo Instrumento Financeiro, in
Revista de Direito Mercantil n.º 112, (1998), 53. |
[25] Do mesmo modo, incluindo na titularização estes
mecanismos menos sofisticados: JESS LEDERMAN (ed.), The Handbook of Asset-Backed Securities, New
York (1990), 7; EILÍS FERRAN, Mortgage Securitisation. Legal
Aspects, London/ Dublin/ Edinburgh, (1992),. |
[26] Entre a data de aprovação do diploma e 1998 apenas
tinham ocorrido 10 emissões, sendo que 1992 e 1995 foi nulo o número de emissões deste tipo de
valor mobiliário. |
[27] Sobre os
Pfandbriefe, caracterizados por não implicarem uma transferência de crédito
para uma entidade distinta, v. difusamente GERHARD-CHRISTOPH IHLE, Germany,
in THEODOR BAUMS/ EDDY WYMEERSCH, Asset-Backed
Securitization in Europe, cit., 87-88; HEINZ-DIETER ASSMANN / ROLF SCHÜTZE
(org.), Handbuch des Kapitalanlagerechts2, München (1997), 402-403, 720; EVA
REUDELHUBER/ ALEXANDER VOGT, The Issuance of Asset-Backed Securities by
Credit Institutions in Germany, in Butterworths Journal of International
Banking and Financial Law, Vol. 13 n.º 2 (Feb. 1998), 59. |
[28] PAULO CÂMARA, Emissão e subscrição de valores
mobiliários, in AA.VV., Direito dos Valores Mobiliários, Lisboa (1997), 202-204; Id.,
Obrigações indexadas e moeda única, in Cadernos do Mercado de Valores
Mobiliários, n.º 4, (1999),147-150. |
[29] Embora, como já foi referido, não só as
entidades financeiras se apresentem com legitimidade para ceder créditos em operações de
titularização. Em complemento, quanto ao perfil funcional da titularização e
a sua relação com o sistema financeiro, v. FRANK FABOZZI/ FRANCO MODIGLIANI,
Capital Markets2, New Jersey, (1996), 661-665; JOSEPH C. SHENKER/ ANTHONY
COLLETTA, Asset Securitization: Evolution, Current Issues and New Frontiers,
cit., 1389-1396. |
[30] Em sentido próximo, concebendo a titularização
como “um conjunto sistemático de operações que liga o mercado de crédito ao
mercado de valores mobiliários e cria novos valores mobiliários à disposição dos
aforradores”: v. ANGEL ALMOGUERA GÓMEZ, La Titulización Crediticia. Un Estudio Interdisciplinar, Madrid, (1995), 31. |
[31] Assim, por exemplo, HUBERT DE VAUPLANE/ JEAN-PIERRE
BORNET, Droit des Marchés Financiers, cit., 770. Constitui via frustre a que
conceber a titularização como toda e qualquer criação de valores mobiliários
assentes em dívida. Com efeito, nem todo o valor mobiliário assente em
créditos constitui titularização – como sucede por exemplo no caso de
obrigações clássicas. Nesta acepção, dita de
titularização primária (cfr. FIDELIS ODITAH, Selected Issues in
Securitisation, in The Future for the Global Securities Market. Legal and Regulatory Aspects,
cit., 84; AMADEU FERREIRA, Direito dos Valores Mobiliários. Sumários das
lições, cit., 429), o conceito de titularização revela-se excessivamente
amplo, e por isso inoperante. Confronte-se nomeadamente: JESS
LEDERMAN (ed.), The Handbook of Asset-Backed Securities, cit., 4; RICHARD
JENNINGS/ HAROLD MARSH Jr./ JOHN COFFEE Jr., Securities Regulation. Cases and Materials7, Westbury, New York, (1992), 26; ANGEL
ALMOGUERA GÓMEZ, La Titulización Crediticia. Un Estudio Interdisciplinar,
cit., 25-31. |
[32] Identicamente, JOSEPH
C. SHENKER/ ANTHONY COLLETTA, Asset Securitization:
Evolution, Current Issues and New Frontiers, cit., 1372-1373. |
[35] JOSEPH C. SHENKER/
ANTHONY COLLETTA, Asset Securitization: Evolution, Current Issues and New
Frontiers, cit., 1376-1377. |
[38] Em termos de prática dos mercados, constitui de igual modo um meio de
temperar inovação excessiva, uma vez que instrumentos com uma estruturação
demasiado complexa podem não receber avaliação tão favorável. |
[39] Art. 35 da lei de 23 de Dezembro de 1988; cf. THIERRY GRANIER/ CORYNNE
JAFFEUX, La Titrisation, cit., 147. |
[41] Não são, todavia, intermediários financeiros: aliás,
já assim se concluía ante o Código de 1991 (AMADEU FERREIRA, Direito dos Valores
Mobiliários. Sumários das lições, Lisboa, (1998), 91-92). |
[42] É bom ter presente que a informação constante
dos relatórios de notação de risco está subordinada às exigências gerais
mobiliárias, no tocante à qualidade da informação - completude, veracidade, actualidade,
clareza, objectividade e licitude - constantes do art. 7.º do Código dos
Valores Mobiliários (cf., em especial, o seu n.º 2, in fine). |
[44] JESS LEDERMAN (ed.), The
Handbook of Asset-Backed Securities, cit., 41-42; RICHARD JENNINGS/ HAROLD
MARSH Jr./ JOHN COFFEE Jr., Securities Regulation. Cases and Materials7,
cit., 26; PHILIP R. WOOD, Title Finance, Derivatives, Securitisations,
Set-Off and Netting, London, (1995), 42, 59-60; KENNETH P.MORRISON, The
Securitization Phenomenon, cit., 4-5;EVA REUDELHUBER/ ALEXANDER VOGT, The
Issuance of Asset-Backed Securities by Credit Institutions in Germany, cit.,
60-61. |
[45] Assim, MENEZES
CORDEIRO, Da Cessão Financeira (Factoring), Lisboa, (1994), 85; Id., Manual de Direito Bancário,
Coimbra, (1998), 577-582; RUI PINTO DUARTE, Notas sobre o Contrato de
Factoring, in Novas Perspectivas de Direito Comercial, Coimbra, (1988),
144-158; considerando que o núcleo essencial do factoring tem como suporte a
cessão de créditos, como função financeira, embora não se resuma a esta, v.
TERESA ANSELMO VAZ, O Contrato de Factoring, Revista da Banca n.º 3, (1987),
73-88; e, mais recentemente, MARIA HELENA BRITO, Factoring Internacional e a
Convenção do Unidroit, Lisboa, (1999), 15-16, 42-43, 55-57. Acrescente-se que
a Convenção do UNIDROIT sobre factoring internacional reconhece a natureza
complexa da operação, ao considera contrato de factoring aquele em que,
podendo ou devendo haver uma cessão de créditos, estejam confiadas ao
cessionário duas das seguintes actividades: financiamento; tratamento
contabilístico dos créditos; cobrança de créditos; e garantia de pagamento.
Em sentido dissonante ao apresentado no texto, registe-se que PHILIP WOOD qualifica
a titularização como “uma forma sofisticada de factoring ou de desconto de
dívidas” (Title Finance, Derivatives, Securitisations, Set-Off and Netting,
cit., 41). |
[47] A solução decorrente do art. 4.º, n.º 3, do DL
n.º 453/99, de 5
de Novembro, resulta muito restritiva, sendo dificilmente compreensível no
tocante à permissão de cessão de crédito hipotecário, atenta a natureza das
entidades cedentes em causa. |
[48] No direito belga, em moldes semelhantes ao regime
nacional, os
créditos não podem ser intransmissíveis, duvidosos ou litigiosos
(JEAN-FRANÇOIS ROMAIN, Régime de la Tittrisation de Créances en Droit Belge,
cit., 62-63). |
[49] O problema, na dogmática civilística, é
discutido no direito alemão: v. em sentido negativo DIETER MEDICUS, Tratado de las
Relaciones Obligacionales, I, trad. esp., Barcelona, (1995), 331. |
[50] Em geral, na literatura nacional, v. por
exemplo VAZ SERRA, Cessão de créditos e outros direitos, in BMJ nº especial
(1955), 5-ss.; ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral5, Coimbra, (1992), II,
292-332; CARLOS MOTA PINTO, Cessão da Posição Contratual, Coimbra, (reimp.
1982), 110-114; MENEZES CORDEIRO, Direito das Obrigações, Lisboa, (1980, já
com diversas reimpressões posteriores), II, 89-97; RIBEIRO DE FARIA, Direito
das Obrigações, cit., 501-547. |
[51] Nota-se, em primeira linha, a existência de uma
figura anglo-saxónica (o equitable assignement) que – contrariamente ao legal
assignement, que
reclama notificação ao devedor - dispensa conhecimento do devedor (embora com
efeitos mais limitados), bem como de modalidades de transferência incompleta
de hipoteca, que se bastam com a outorga de um equitable title to the
mortgage, a facilitar substancialmente este processo (EILÍS FERRAN, Mortgage
Securitisation. Legal Aspects, cit., 39-41, 45-53). Em França foi introduzido um
regime de mais fácil transmissão de créditos detidos por bancos a outras
empresas, operada através da transferência de bordereau com as indicações
fudamentais relativas ao crédito cedido: trata-se da célebre Lei Dailly (Lei
n.º 81-1, de 2 de Janeiro de 1981, modificada em 24 de Janeiro de 1984): v.
sobre esta ALAIN CERLES, Le Contrat Fiduciaire et ses Applications Bancaires:
Present et Avenir, in Direito Bancário. Actas do Congresso Comemorativo do
150.º Aniversário do Banco de Portugal, Revista da Faculdade de Direito de
Lisboa, Suplemento, (1997), 92-100; HUBERT DE VAUPLANE/ JEAN-PIERRE BORNET,
Droit des Marchés Financiers, cit., 770-771. Também na Bélgica, a Lei
de 6 de Julho de 1994, foi introduzida uma flexibilização do regime da cessão
de créditos que teve muito claramente em vista favorecer a titularização:
esta singulariza-se pelo facto de ter resultado numa modificação ao próprio
Código Civil (art.1690.º), no sentido, de um lado, da oponibilidade da cessão
ao devedor cedido desde a data do conhecimento e, de outro lado, da
oponibilidade da cessão a terceiros desde a data da sua conclusão (EDDY
WYMEERSCH, Belgium, in THEODOR BAUMS/ EDDY WYMEERSCH, Asset-Backed
Securitization in Europe, cit., 29-33; JEAN-FRANÇOIS ROMAIN, Régime de la
Tittrisation de Créances en Droit Belge, cit., 83-87) |
[54] DIETER MEDICUS, Tratado de las Relaciones
Obligacionales, I, cit., 336-341; LUDWIG ENNECCERUS/ HENRICH LEHMANN, Derecho
de Obligaciones, cit., 389; ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral5, cit.,
308-313; MENEZES
CORDEIRO, Direito das Obrigações, cit., 96-97; RIBEIRO DE FARIA, Direito das
Obrigações, cit.,516-521. |
[55] Frise-se, designadamente, que o § 407 BGB
permite que o cumprimento seja eficazmente realizado perante o cedente, antes
de o devedor tomar conhecimento da cessão. Sobre este regime da protecção do devedor cedido,
v. nomeadamente KARL LARENZ, Lehrbuch des Schuldrechts14, München, (1987),
588-593; DIETER MEDICUS, Tratado de las Relaciones Obligacionales, I, cit.,
338-340. |
[56] É justo, de igual modo, observar que o desfasamento
entre o art. 5.º, n.º 1, e o art. 6.º, n.º 4, pode ter escasso alcance
prático, na medida em que, como antes se fez notar, o regime de cessão de
créditos é muito restritivo para as entidades seguradoras (art. 4.º, n.º 3):
cf. supra, § 4.º, II. |
[58] A qualificação da sociedade de titularização como
sociedade financeira representa uma solução legislativa que, pessoalmente,
entendo não ser acertada. A decisão do legislador, neste ponto, não era evidente, na
medida em que se deparava com uma divisão dos ordenamentos europeus: em causa
está saber se a realização de operações de titularização configura uma
actividade de recepção de fundos reembolsáveis, para efeitos da Directiva n.º
89/646 CEE, e da consequente qualificação do emitente como instituição de
crédito ou sociedade financeira. O direito português – que não está, de
resto, isolado (v. soluções próximas, mas sem directa qualificação na lei, na
Holanda, Noruega e Suécia: THEODOR BAUMS/ EDDY WYMEERSCH, Asset-Backed
Securitization in Europe, cit., 185-189, 205-206, 230-233) - alinhou, neste
plano, pela posição mais cautelosa, que é defrontada nomeadamente com
posições adversas no Reino Unido e em Itália (EILÍS FERRAN, Mortgage
Securitisation. Legal Aspects, 102-105; o mesmo sucede no Brasil: CASSIO
MARTINS PENTEADO Jr., A Securitização de Recebíveis de Créditos gerados em
Operações dos Bancos – A Resolução n.º2.493 em sua Perspectiva Jurídica,
cit., 122-123). A posição assumida será até coerente com os trabalhos
preparatórios do actual Regime Geral bancário, espelhados no Livro Branco
sobre o Sistema Financeiro, na medida em que este documento preparatório da
reforma legislativa de 1992, influenciado pelo Quinto Considerando da
Directiva n.º 77/780/CEE, acolhe uma acepção ampla de fundos reembolsáveis do
público, que se basta com a verificação de três requisitos: a entrega de
fundos; a obrigação de reembolso; e a existência de poderes de disposição dos
fundos recebidos (v. Livro Branco sobre o Sistema Financeiro, (1991), I,
32-37) – e é facto que, no caso das obrigações titularizadas, o emitente
assume um dever de reembolso em nome próprio, sendo a generalidade do seu
património responsável pelo cumprimento do mútuo obrigacionista. Contudo,
observe-se (e já houve quem o fez: PINTO DUARTE, A Regulação pelo RGICSF das
anteriormente chamadas Instituições Parabancárias, Revista da Banca n.º 29,
(1993), 64-66) que esta extensão do conceito de recepção de fundos reembolsáveis
pode contrastar com o espírito da Directiva, que acentua a recepção de
depósitos para caracterizar a actividade bancária. Não pode colocar-se em pé
de igualdade a recepção de fundos através da emissão de obrigações e a
recepção de depósitos: no plano infra-jurídico, esta última supõe a
existência de intermediação financeira em sentido próprio, ao passo que
a emissão de obrigações se insere precisamente no circuito económico
desintermediado (cf. supra, § 2.º, I). Esta diferença tem implicações profundas
no sistema de regulação de um e do outro modo de captação de fundos do
público, sendo via desaconselhável a de transpor para os emitentes de
obrigações o conjunto de normas de direito público que rodeia o funcionamento
das instituições de crédito e sociedades financeiras. E a protecção dos
aforradores, como se sabe, assenta sobretudo no funcionamento do sistema de
protecção próprio do mercado mobiliário (que não é, em si, ao aparecimento de
instrumentos que envolvem risco), repousando designadamente no cumprimento
das regras informativas. A verdade é que estes dados não são tidos em conta,
desde logo, no Livro Branco sobre o Sistema Financeiro, que isola a emissão
de obrigações sem relevância bancária de acordo com dois critérios: o
critério da habitualidade e o critério quantitativo (ob. cit., 36-37).
O segundo foi o único a lograr consagração positiva, no art. 9.º, n.º 2, que
não considera como recepção de fundos a emissão de obrigações nos termos e
limites do Código das Sociedades Comerciais. Mas ambos são critérios
permeáveis a críticas. Quanto ao primeiro, não merece contestação que, no
mundo actual, diversas empresas assentam a sua política de financiamento no
mercado de valores mobiliários, fazendo da emissão de obrigações prática
regular. A limitação quantitativa do art. 349.º CSC, por seu turno, é em
geral ferida por todas as debilidades que a figura do capital social exibe
para ser indício da envergadura patrimonial dos emitentes; e, neste caso
especial, a superação do limite do art. 349.º apenas é permitida caso esteja
assegurada notação de risco com classificação A ou equivalente, nos termos do
art. 50.º (confiando-se, pois, numa instituição do mercado). Nem merece
lembrar que a qualificação da sociedade de titularização como entidade a receber
fundos reembolsáveis do público provaria demais: conduziria, a ser coerente,
à qualificação dessas sociedades como instituições de crédito, e não como
meras sociedades financeiras. Salienta-se apenas que, no caso particular das
sociedades de titularização, o ponto nevrálgico da intervenção legislativa
reside na protecção dos investidores, e para estes interessa sobretudo
acautelar, a imparcialidade da notação de risco e a adequação da operação, do
que propriamente a solidez prudencial das sociedades emitentes (cf. supra, §
3.º). |
[60] Na Europa, é usual o estabelecimento de
exigências específicas quanto ao conteúdo do prospecto em oferta pública ou
de admissão de valores mobiliários cujo rendimento está dependente dos frutos de activos subjacentes, aí se
obrigando a descrever nomeadamente o tipo de bens utilizados para
titularização, uma descrição do fluxo financeiro associado à emissão, os
termos da cessão e do direito cedido (v. por exemplo, no caso do Luxemburgo,
o Appendix II da Circular CaB n.º 98/7, em desenvolvimento do Regulamento de
28 de Dezembro de 1990). |
[63] Cf. supra, § 1.º, I. |
[64] O âmbito do art. 46.º, nos seus n.ºs 3 e 4, atinge a
emissão de qualquer tipo de obrigações, visto poderem as sociedades de
titularização emitir igualmente obrigações nos termos gerais dos arts. 348.º
e seguintes do Código das Sociedades Comerciais (art. 46.º, n.º 1). É-lhes, porém,
vedada a capacidade de emissão de obrigações de caixa (art. 43.º, n.º 3, b)),
o que aliás já decorreria do art. 2.º, n.º 1, do DL n.º 408/91, de 17 de
Outubro. |
[66] Trata-se de uma limitação que surge ao arrepio do actual
Código dos Valores Mobiliários, que coloca em pé de igualdade a representação
através de forma titulada e a representação através de forma escritural, o
que se manifesta nomeadamente na livre convertibilidade de formas de
representação de valores mobiliários (arts. 49.º e
50.º). |
[68] O excesso da garantia sobre o montante do
empréstimo obrigacionista é imposto na disciplina das obrigações hipotecárias,
através do art. 15.º do DL n.º 125/90, segundo o qual o valor nominal das
obrigações não pode ultrapassar 80% do valor global dos créditos hipotecários
afectos ao seu reembolso. |
[69] IAN FALCONER,
Securitisation in the United Kingdom, in Butterworths
Journal of International Banking and Financial Law (June 1989), 260-261. |
[70] COSIMO RUCELLAI, I problemi legati allo
sviluppo della Securitizarion in Italia: prospettive di soluzione, in
Giurisprudenza Commerciale, n.º 22.1 (Jan./ Fev. 1995), 116-118; MARTINS PENTEADO Jr. fala
expressivamente em empresas de caixa zero (A Securitização de Recebíveis de
Créditos gerados em Operações dos Bancos – A Resolução n.º2.493 em sua
Perspectiva Jurídica, cit., 121). |
[71] COSIMO
RUCELLAI, I problemi legati allo sviluppo della
Securitizarion in Italia: prospettive di soluzione, cit., 116. |
[72] O princípio do limited recourse foi acolhido
nomeadamente no direito italiano, no art. 3.º, n.º 2, da Lei n.º 130, de 30
de Abril de 1999, e no direito brasileiro, na Resolução n.º 2.492, de 7 de Maio de
1998: v. a propósito, respectivamente, COSIMO RUCELLAI, La legge sulla
cartolarizzazione dei crediti, in Giurisprudenza Commerciale (Jul./ Ag.
1999), 413/I; CASSIO MARTINS PENTEADO Jr., A Securitização de Recebíveis de
Créditos gerados em Operações dos Bancos – A Resolução n.º2.493 em sua
Perspectiva Jurídica, cit.,123. |