®BuscaLegis.ccj.ufsc.br
O limite legal à taxa de juros
Nelson Zunino Neto - Advogado
Os juros correspondem ao preço do uso; daí usura, vocábulo
empregado originariamente para designar o empréstimo de dinheiro mediante
remuneração. Segundo Ronaldo Lupinacci, (Limite da Taxa de Juros no Brasil, 1ªed,
LED, SP, 1998, p.27), hoje o termo significa lucro exagerado ou juro excessivo.
Esta é a acepção léxica da palavra.
No âmbito jurídico, ensina Plácido e Silva (Vocabulário
Jurídico, Forense, SP, 1987, p.446) que "no conceito atual, usura não
significa simplesmente o interesse devido pelo uso de alguma coisa. É o
interesse excessivo, isto é, a estipulação exagerada de um juro, que ultrapasse
ao máximo da taxa legal, ou estipulação de lucro excessivo, ou excedente do
lucro normal e razoável."
A usura e a veemente condenação a esta prática é tão
antiga quanto a história da civilização econômica. Os romanos limitavam as
taxas de juros; a mais alta não passava de 8% ao ano (Gabriel Wedy em O Limite
Constitucional dos Juros Reais, Síntese, Porto Alegre, 1997, p.21). No Código
de Hamurabi, por volta de 1.700 a.C., a punição à extrapolação do limite máximo
era a perda do capital emprestado.
Aristóteles dizia, já em 350 a.C., num texto que se
adequa aos dias atuais (Política, traduzido do grego por Mário Kury, UNB, 1981,
p.288):
"O objeto original do dinheiro foi facilitar a
permuta, mas os juros aumentavam a quantidade do próprio dinheiro (esta é a
verdadeira origem da palavra: a prole se assemelha aos progenitores, e os juros
são dinheiro nascido do próprio dinheiro); logo, esta forma de ganhar dinheiro
é de todas a mais contrária à natureza."
Do Direito Romano ao Medieval e finalmente a usura chegou
à terra brasilis através das Ordenações Filipinas, código de 1603 que
permaneceu em vigor até 1917, por força da Lei de 20 de outubro de 1823, artigo
2º. No Livro Quarto das Ordenações os contratos usurários eram reprimidos. A
Lei de 24 de outubro de 1832, entretanto, quebra a tradição – sob influência do
liberalismo francês – liberando a estipulação de juros, embora fixasse a taxa
legal em 6%, no artigo 4º.
O Código Civil, quase um século após, manteve a lacuna,
não estabelecendo limite legal, a não ser para o caso de ausência de convenção
ou convenção sem taxa definida. Manteve a fixação da taxa de seis pontos
percentuais ao ano para os juros moratórios, no artigo 1.062. O artigo 1.262,
no entanto, liberava a taxa convencionada.
A Revolução de 30 encerrou a era do Café com Leite, e
Getúlio Vargas promoveu mudanças estruturais na economia do país. Neste quadro
surgiu a Lei da Usura, através do Decreto-Lei 22.626, de 7 de abril de 1933,
que acompanhando a tendência mundial (França, Alemanha, Áustria, Portugal,
Espanha, etc.) fixou um limite para a taxa de juros.
Diz a Lei da Usura:
"Art. 1º - É vedado, e será punido nos termos desta
lei, estipular em quaisquer contratos taxas de juros superiores ao dobro da
taxa legal (Código Civil, art. n. 1.062). (...)
Art. 2º - É vedado, a pretexto de comissão, receber taxas
maiores do que as permitidas por esta lei."
Esta proibição à usura foi alçada à hierarquia constitucional
pela Carta Magna de 1934, no artigo 117, parágrafo único. A Constituição de
1937 repetiu o preceito no artigo 142 e a de 1946 fez o mesmo no artigo 154.
Em 1938, ainda por influência da política de moralização
econômica do governo Vargas, a usura foi erigida à condição de ilícito penal,
com a edição do Decreto-Lei 869/38 (artigo 4º, alínea b), e treze anos mais
tarde foi tipificada como crime pela Lei 1.521, de 1951, no artigo 4º, alíneas
a e b e § 3º.
Ocorre que em meio a crise econômica e política de 1964
foi editada a Lei 4.595, chamada Lei da Reforma Bancária, que reestruturou o
sistema financeiro nacional e criou o todo-poderoso Conselho Monetário Nacional
– CMN, cuja competência foi determinada no artigo 4º:
"Art. 4º - Compete ao Conselho Monetário
Nacional...:
(...)
IX – limitar, sempre que necessário, as taxas de
juros..."
Surgiu então a Súmula 596 do STF, segundo o qual "as
disposições do Decreto 22.626/33 não se aplicam às taxas de juros e aos outros
encargos cobrados nas operações realizadas por instituições públicas ou
privadas, que integram o sistema financeiro nacional."
Foi o julgamento do Recurso Extraordinário 78.953, de São
Paulo, em 5 de março de 1975, que cristalizou esta súmula, em decisão unânime
cujo relator foi o Ministro Cordeiro Guerra, que emitiu seu voto nestes termos:
"(...) Penso que o art. 1º do Dec. 22.626 está
revogado, não pelo desuso ou pela inflação, mas pela L. 4.595, pelo menos no
pertinente às operações com as instituições de crédito, públicos ou privados,
que funcionam sob o estreito controle do Conselho Monetário Nacional. (...)"
Em 1976 o Banco Central expediu a Resolução 389,
autorizando os bancos comerciais a operar "taxas de mercado". Estava
formalizada a usura.
Só em 1988 vem a atual Constituição Federal,
recepcionando o Decreto 22.626/33, retomar a vedação máxima à usura, impondo
inclusive limite determinado, em 12% ao ano, no artigo 192, § 3º, como já o era
na legislação ordinária.
Pois bem. O limite à taxa anual de juros sempre foi,
desde a Lei da Usura, em 1933, o de doze por cento.
A Lei da Reforma Bancária
já era, nesta parte, contrária à Constituição de 1946. Insubsistente qualquer
tentativa de justificar a delegação de poder a um órgão do Executivo sobre
matéria de competência exclusiva do Legislativo.
Agora em 1988 a Carta Magna manteve a sistemática de
autonomia e independência dos Poderes – que no Direito pátrio só foi
excepcionada nas Constituições "militares" de 1967 e 1969 – vedando a
delegação de atribuições. Concomitantemente, uma novidade: o artigo 192, § 3º,
repete o limite de 12%, já fixado na Lei da Usura.
A partir desta simultaneidade de disposições (a
restauração da sistemática jurídica de independência de Poderes e a fixação de
limite à taxa de juros), há dois nítidos caminhos a se percorrer no estudo da
usura no Brasil. O primeiro é o limite constitucional dos juros, e o segundo é
o infra-constitucional.
CONSTITUCIONALMENTE
A sustentação do limite constitucional dos juros parte do
parágrafo 3º do artigo 192 da Constituição, que, segundo os estudiosos
constitucionalistas, é dispositivo autônomo:
"Art. 192 – (...)
§ 3º - As taxas de juros reais, nelas incluídas comissões
e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão
de crédito, não poderão ser superiores a doze por cento ao ano; a cobrança
acima deste limite será conceituada como crime de usura, punido, em todas as
suas modalidades, nos termos que a lei determinar."
Sob a ótica constitucional, a polêmica ficou estagnada
numa simples (6 votos a 4) decisão incidental do STF reputando como não
auto-aplicável o parágrafo 3º do artigo 192 da Carta Magna.
Da ementa se extrai:
"Tendo a Constituição Federal, no único artigo em
que trata do Sistema Financeiro Nacional (art.192), estabelecido que este será
regulado por lei complementar, com observância do que determinou no caput, nos
seus incisos e parágrafos, não é de se admitir a eficácia imediata e isolada do
disposto em seu parágrafo 3º, sobre a taxa de juros reais (12% ao ano), até
porque estes não foram conceituados. Só o tratamento global do Sistema
Financeiro Nacional, na futura lei complementar, com observância de todas as
normas do caput, dos incisos e parágrafos do art. 192, é que permitirá a
incidência da referida norma sobre juros reais e desde que estes também sejam
conceituados em tal diploma.
Em conseqüência, não são inconstitucionais os atos
normativos em questão (parecer da Consultoria-Geral da República, aprovado pela
Presidência da República e circular do Banco Central), o primeiro considerando
não auto-aplicável a norma do parágrafo 3º sobre juros reais de 12% ao ano, e a
segunda determinando a observância da legislação anterior à Constituição de
1988, até o advento da lei complementar reguladora do Sistema Financeiro
Nacional."
(STF; ADIn
4-7-600-DF, RTJ 147/719-858)
Foi no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade movida
pelo PDT contra ato normativo do Presidente da República, que homologou o
parecer SR-70 da Procuradoria-Geral da República, através do Consultor-Geral
Saulo Ramos, no dia seguinte à promulgação da Constituição, em 6 de outubro de
1988. Em 7 de outubro o Banco Central emitiu a Circular 1.365, notificando os
bancos de que o limite de 12% não precisaria ser respeitado.
O tal parecer do advogado Saulo Ramos se baseava na
possibilidade de que a limitação de juros poderia ocasionar desvio de capitais
para o câmbio paralelo e para a especulação do ouro. Sobre este parecer falou o
Deputado Fernando Gasparian (A Luta Contra a Usura, 1ªed, GCN, DF, 1991, p.13)
autor da "Emenda Gasparian" que se tornou o parágrafo 3º do artigo
192 da CF:
"Não é preciso ser jurista para entender o
mal-amarrado sofisma do advogado. O que o caput pede é lei complementar que, na
obediência dos incisos que se seguem, reestruture todo o Sistema Financeiro
Nacional. O § 3º que, na realidade, deveria ser um artigo a parte, é, em si
mesmo, conclusivo, impondo aplicação imediata. O que se pode complementar ou
regulamentar de um mandamento tão explícito?"
A clareza deste dispositivo constitucional só veio a ser
distorcida a partir do dito parecer e de outros encomendados por instituições
financeiras.
Conta Ronaldo Lupinacci (obra citada, p.36) que "por
solicitação da Federação Nacional dos Bancos e da Federação Brasileira das
Associações de Bancos, diversos juristas forneceram pareceres contrários à
aplicação imediata do teto de 12% anuais, tal como previsto no § 3º do art. 192
da Constituição Federal. Foram eles Hely Lopes Meirelles, Caio Tácito, José
Frederico Marques, Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Celso Bastos, Ives Gandra
da Silva Martins, Rosah Russomano, José Alfredo de Oliveira Baracho, Cid
Heráclito de Queiroz, Arnoldo Wald e Geraldo Vidigal. Tais pareceres serviram
de fundamento para o voto condutor, proferido pelo Ministro Sidney
Sanches."
Antes disso não havia controvérsia. Até mesmo no âmbito
do Congresso Nacional, onde nasceu a norma, o entendimento era cristalino.
Como noticia Gabriel Wedy (obra citada, p.42), o relator
constituinte, Deputado Bernardo Cabral, respondendo questionamento do Deputado
César Maia, respondeu ao Deputado Ulysses Guimarães, presidente da Assembléia
Nacional Constituinte:
"Sr. Presidente, respondo com muita satisfação ao
eminente constituinte César Maia. A remissão ‘nos termos da lei’ é feita quanto
aos crimes de usura. O que se estabelece no texto permanente é que as taxas de
juros reais não poderão ser superiores a 12% ao ano. Isto é auto-aplicável,
evidentemente."
Decidiu-se em 1989, liminarmente, e no mérito, em 1991,
que a eficácia do parágrafo 3º do artigo 192 da Constituição Federal estaria a
depender da edição de norma regulamentadora. Foram vencidos os Ministros Carlos
Velloso, Paulo Brossard, Marco Aurélio e Ilmar Galvão.
A questão, por óbvio, se fez muito mais política do que
jurídica. Denuncia Gabriel Wedy (obra citada, p.47):
"Esta atitude do STF, em descumprir o limite
constitucional de juros, trata-se de um ato eivado de conservadorismo e
subserviência ao governo e às grandes instituições financeiras aglutinadas em
um verdadeiro cartel."
Do voto vencido do Ministro Paulo Brossard na ADIn 4 uma
das mais brilhantes exposições:
"A usura encontrou o seu paraíso no Brasil, e foi
exatamente isto que os constituintes quiseram enfrentar quando aprovaram a
limitação dos juros reais em 12% ao ano. (...)
Dir-se-á que as instituições financeiras captam recursos
a taxas superiores a 12% ao ano, e que elas não subsistiriam se não cobrassem
remuneração que partisse do custo pago. O banco não pode tomar dinheiro a 24% e
emprestá-lo a 12%. Nem a Constituição quer isto. (...) O que a Constituição
quer é que os juros, por isso disse juros reais, não excedam a 12% ao ano.
Ninguém ignora, de outro lado, que o Tesouro é o grande tomador de recursos no
mercado, e que ele comanda, por conseguinte, a taxa de juros.
As instituições financeiras não podem competir com o
Tesouro e têm de seguir-lhe as veredas sob pena de nada captarem. Esta a
realidade. Ora, o constituinte não ignorava isso, e foi isso que ele quis
modificar ao estabelecer uma regra peremptória, categórica, imperativa,
consignada no § 3º do art. 192 da CF. É evidente que essa transformação, que
deixou de ser feita em outubro de 1988, e que terá de ser feita, a menos que se
conspire contra a Constituição e ela não venha a ser cumprida, é claro que não
será feita sem dificuldades e sem resistências. A rotina é mais cômoda. A rotina
vem de ruta, ‘caminho conhecido, sem surpresas’. Daí a resistência à mudança. E
vai para 11 anos que o país vive na agiotagem. Virou rotina. É natural que
pareça imodificável."
Brada o professor João Roberto Parizatto (Multas e Juros
no Direito Brasileiro, 1ªed, LED, SP, 1996, p.82) que "o Poder Judiciário
haverá de dar um basta em tal situação, revendo-se contratos bancários que
estejam impondo taxas abusivas e distantes da realidade... não se justifica a
nenhum entendimento legal, ético e jurídico a cobrança de juros que representam
diversas vezes a própria inflação do país."
E arremata:
"Pessoas físicas, jurídicas e micro-empresários não
conseguem suportar taxas tão irreais, totalmente distanciadas da realidade
atual do país, o que vem contribuindo para a quebra de tantas pessoas e
empresas, que não conseguem pagar aquilo que devem aos bancos. Nada justifica a
captação de recursos por um percentual e sua repassagem ao tomador do
empréstimo em percentual várias vezes superior ao custo do dinheiro para a
instituição financeira."
Walter Ceneviva (Direito Constitucional Brasileiro, 1ª,
Saraiva, SP, 1989, p.19) reclama que "no Brasil, a eficácia e a validade
da Constituição têm sido relacionadas com a conveniência do grupo dominante,
embora variem os exercentes do poder no curso do tempo."
Mas, se socialmente o limite deve ser entendido como
questão de justiça contra o protecionismo ao poderio econômico das instituições
financeiras, juridicamente não há como escapar à conclusão de que esta norma
constitucional só não é clara para quem não quiser compreendê-la assim. A
começar pela questão da auto-aplicabilidade.
O relator da famosa ADIn 4, Ministro Sidney Sanches,
concluiu que "uma vez que faz parte do contexto do artigo, o § 3º também
tem de ser regulamentado por lei complementar."
Esta é a idéia central da tese vencedora, precedida por
vários pareceres encomendados, já mencionados, entre os quais o de Ives Gandra
Martins (A Constituição Aplicada, 1ªed, Cejup, Belém, 1989, p.13), segundo o
qual o parágrafo 3º deve ser entendido como parte integrante do artigo 192,
que, por sua vez, "hospeda" todo o sistema financeiro nacional; como
este sistema seria regulado por lei complementar, também deveria sê-lo a
matéria dos parágrafos, calculou o jurista.
Ambas as manifestações, data venia, são insubsistentes em
si mesmas.
Primeiro porque o limite dos juros no parágrafo 3º é
comando autônomo e não integra o Sistema Financeiro Nacional. Claro que não.
Pode até que esta regra a ele se aplique, mas dele não faz parte. O fato de que
haverá lei complementar para o SFN não induz que esta lei compreenda também a
usura. O raciocínio é torto, sofismático.
Segundo porque a aplicabilidade – ou
"empregabilidade", como prefere Ceneviva (obra citada, p.23) – não
está sendo considerada com a suficiente exempção.
É o que se passa a ter em conta.
O incomensurável Rui Barbosa (Comentários à Constituição
Federal Brasileira, vol II, Forense, Rio, 1933, p.488) definiu as normas
auto-aplicáveis como as determinações que, para serem executadas, "não se
haja mister de constituir ou designar uma autoridade, nem criar ou indicar um
processo especial, e aquelas onde o direito instituído se ache armado por si
mesmo, pela sua própria natureza, dos seus meios de execução e
preservação."
Pontes de Miranda resume:
"Quando uma regra se basta, por si mesma, para sua
incidência, diz-se bastante em si, self-executing, self-acting, self-enforcing.
Quando, porém, precisam as regras jurídicas de regulamentação, porque, sem a
criação de novas regras jurídicas, que as completem ou suplementem, não
poderiam incidir e, pois, ser aplicadas, dizem-se não bastantes em si."
(Comentários à Constituição de 1967, 1ªed, vol I, 1968,
p.126)
A doutrina americana – precursora na dicotomia da
aplicabilidade das normas constitucionais – está consubstanciada nas palavras
do jurista Thomas Cooley (Treatise on the Constitutional Limitations, 6ªed, Boston,
1890, p.93, apud Rui Barbosa, traduzindo, obra citada, p.495):
"Pode-se dizer que uma disposição constitucional é
auto executável quando nos fornece uma regra mediante a qual se possa fruir e
resguardar o direito outorgado, ou executar o dever imposto, e que não é
auto-aplicável quando meramente indica princípios, sem estabelecer normas, por
cujo meio se logre dar a esses princípios vigor de lei."
Os doutrinadores falam em apresentação de princípios,
contra a especificação de preceitos decorrentes. Para compreender melhor este
critério é mister que a caracterização da auto-aplicabilidade passe, ainda que
superficialmente, pela definição da natureza da norma, se programática ou não.
Normas programáticas, conforme o constitucionalista Paulo
Bonavides (Direito Constitucional, 2ªed, Forense, Rio, 1986, p.200), são
aquelas destinadas ao legislador, têm por objeto a conduta estatal e por
natureza são imperfeitas, incompletas, demandando operações integrativas.
Segundo o jurista, elas teriam por fim "provocar uma
sucessiva atividade legislativa que venha disciplinar uma certa matéria em
sentido conforme com aquilo que ela dispôs, fazendo-o quase sempre em linhas
gerais". (ibidem, p.213)
Já as normas preceptivas se destinam ao povo, objetivam
relações privadas e são completas; por isso de aplicação imediata. Considerando
que as normas não-programáticas são auto-aplicáveis porque dirigidas ao povo e
não ao legislador, cabe novamente a ensinança de Bonavides (obra citada,
p.215):
"O caráter ‘mediato’ ou ‘imediato’ de aplicação de
uma norma depende unicamente, segundo Carl Schmitt, da respectiva presença ou
ausência da ‘auctoritas interpositio’ de um ‘simples’ legislador."
De outro lado, Paulo Dourado de Gusmão (Introdução ao
Estudo do Direito, 16ªed, Forense, Rio, p.107) leciona que a lei constitucional
ou ordinária não será auto-aplicável quando depender de ato legislativo a
disciplinar detalhadamente a matéria. E completa:
"Nestes casos, a lei (regulamentável) enuncia
somente um princípio ou uma regra muito ampla, que necessita disciplina
pormenorizada para ser aplicada."
Nota-se, então, o primeiro critério: a pormenorização ou
o detalhamento de uma regra geral, de traços genéricos.
A norma insculpida no parágrafo 3º não é ampla,
principiológica, de modo algum. O texto dispõe que a taxa de juros reais não
poderá ser superior a 12% ao ano. Define o alcance da expressão
("incluídas comissões e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente
referidas à concessão de crédito"). E qualifica exatamente a espécie dos
juros (reais). O que mais falta à compreensão da norma? De que carece para ser
aplicada?
Por fim há ainda outro critério para definir a norma em
relação à sua aplicabilidade, que é o da classificação da lei em função da sua
imperatividade.
Quando em relação ao particular ela for impositiva
proibitiva (jus cogens que veda determinada ação), a norma será sempre de
eficácia plena.
Rememorando os tempos de escola, Gabriel Wedy (obra
citada, p.74) diz que "os acadêmicos de direito que estudaram as primeiras
linhas de direito constitucional, bem como princípios basilares da
hermenêutica, não ignoram que regras constitucionais de caráter proibitivo,
como é o caso em apreciação, revestem-se de auto-aplicabilidade."
O Desembargador Araken de Assis (TARS, Ap Civ 190011791)
traz a velha lição:
"Da antiga classificação em self-executing ou não,
basta recordar que sendo proibitiva a norma, automaticamente assume eficácia
plena".
Outra vez a lição certeira de Ruy Barbosa (obra citada,
p.75, mantida a grafia original):
"Entre os
textos contitucionaes executáveis sem o concurso de legislação applicativa
sobressaem os de caracter prohibitório. No prohibir que se faça alguma coisa
não há nada, que exija ulterior acção da lei. A acção ulterior da lei poderá
vir a ser necessária, a fim de castigar as infracções da regra prohibitiva.
Isto, porém, é coisa totalmente diversa da prohibição em si mesma.
É que a norma prohibitiva encerra em si mesma tudo quanto
se há mister, para que desde logo se torne obrigatória a prohibição, embora a
sancção contra o acto, que a violar, ainda não esteja definida.
Se uma Constituição prohibe formalmente certos e
determinados actos, a prática de qualquer delles transgride ipso facto o
preceito constitucional; porquanto a interdicção, como interdicção, na medida
traçada pelos seus termos, é cabal quanto à obrigação, que juridicamente
estabelece, erga omnes, de ser respeitada."
(Neste trecho de obra escrita há quase 70 anos o jurista
parece estar fazendo comentário sobre o parágrafo 3º do artigo 192 da Carta
Magna de 1988, tal é a adequação da hipótese.)
Tanto quanto esta lição se encaixa perfeitamente à norma
em debate é o que leciona Paulino Jacques, em seu Curso de Direito
Constitucional (2ªed, Forense, Rio, 1958, p.406):
"A proibição e punição da usura (Constituição de
1946, art.154) pode ser incluída entre as modalidades de intervenção econômica
estatal indireta; limita a ganância do particular. O preceito veio da Constituição
de 1934 (art. 117, parágrafo único), que foi mantido na Carta de 1937 (art.
142). As sanções penais, contudo, dependem de lei ordinária; as civis são
self-executing." (grifo nosso)
Então fica claro que o dispositivo em debate, tanto por
ser específico, quanto por ser proibitivo, independe de regulamentação. Isto
está nítido desde os debates no Congresso Nacional.
Em suma, tem-se que uma norma constitucional pode ser
programática ou não. Se não o for, se não ficar limitada a exarar princípios e
programas, então será auto-aplicável. E o comando do § 3º do artigo 192 da CF
não se limita a princípios, mas desce a detalhes como o valor numérico da taxa
de juros (12%), o alcance da expressão e tanto mais.
Há também a questão da mediação, pela qual a norma
constitucional será de aplicação imediata quando não houver necessariamente a
interposição de autoridade (auctoritas interpositio) a exercer função
legislativa como condição à sua aplicação. A norma em apreço, na parte do
limite de 12%, naturalmente, não depende sob aspecto algum da função normativa
da autoridade. É, também por isto, auto-aplicável.
Sabe-se, por fim, que a norma não-programática – também
chamada preceptiva, porque dela emana preceito e não mero programa – pode ser
permissiva ou proibitiva, e que quando é proibitiva a aplicabilidade é
automática.
O limite à taxa de juros não é programa e sim preceito;
preceito, sem dúvida, proibitivo ("as taxas... não poderão ser").
Auto-aplicável, destarte.
Note-se que são razões diversas, mas bastantes em si
mesmas, cada uma per se. Juntas se reforçam, se amarram perfeitamente numa
inegável construção lógica. Construção que, diferentemente de pareceres
encomendados e comprometidos, respeita a sistemática jurídica constitucional, o
contexto social e a lógica jurídica.
Conclui-se, então, pela auto-aplicabilidade da norma
insculpida no parágrafo terceiro do artigo 192 da Constituição Federal.
--------------------------------------------------------------------------------
INFRACONSTITUCIONALMENTE
Todavia, se a norma contida na Carta Política de 88 é ou
não de eficácia plena, auto-executável, a questão é menor, desimporta ao
debate, pois o limite legal é o da Lei da Usura, contra a qual não haverá
privilégio a oligopólios financeiros. Esta é a segunda via pela qual se pode
estudar a usura em território brasileiro: a legislação ordinária,
infraconstitucional.
Antes de tudo é preciso dizer que a Lei da Usura nunca,
nunca, nunca foi revogada. Se a Lei da Reforma Bancária inovou na matéria, o
fez permitindo que o Conselho Monetário Nacional pudesse limitar as taxas de
juros. Se já havia um limite posto, este "limitar", obviamente, se
referia à fixação de novo limite menor, jamais maior, pois a lei não permitiu a
liberação.
A Lei de Introdução ao Código Civil determina no caput do
artigo 2º que, não sendo caso de vigência temporária, "a lei terá vigor
até que outra a modifique ou revogue".
Sobre o inabalado vigor da lei em comento, é relevante
trazer à lembrança o parágrafo 2º do dito artigo 2º da LICC:
"§ 2º - A lei nova, que estabeleça disposições
gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei
anterior."
A Lei da Reforma Bancária não trouxe mais do que
disposições extras, "a par das já existentes" Suas disposições podem
até ser aplicadas para incrementar a norma anterior, mas nunca sobrepondo-se à
regras preexistentes com as quais não tenha conflito.
E no primeiro parágrafo o texto é: "A lei posterior
revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela
incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior."
No caso presente, a Lei 4.595/64 não regulou inteiramente
a matéria. Do mesmo modo não há, entre a Lei da Usura e a da Reforma Bancária
qualquer incompatibilidade; as regras não se chocam em parte alguma, vez que
limitação não implica liberação. E, finalmente, não há em absoluto revogação
expressamente declarada pela Lei de 1964.
Em parte alguma da Lei 4.595/64 está dito que o Decreto
22.626/33 foi revogado, ou que foi revogado certo dispositivo nela contido, um
artigo, um inciso sequer, ou ainda que o limite de 12% deixaria de sê-lo. Não
há absolutamente nada neste sentido.
Então, definitivamente não houve revogação do Decreto
22.626/33 pela Lei 4.595/64, nos termos do parágrafo primeiro do artigo 2º da
Lei de Introdução ao Código Civil.
Em verdade já naquela lei de 1964 foram delegados ao CMN
poderes normativos, o que contrariava o artigo 36, § 2º, da então vigente
Constituição Federal de 1946, que dizia: "É vedado a qualquer dos Poderes
delegar atribuições".
A afronta ao texto constitucional se configurava porque a
Carta Magna atribuía (artigo 5º, XV) à União a competência para legislar sobre
direito comercial, financeiro e instituições de crédito, dentre outras
matérias, e o artigo 65, IX, preceituava que ao Congresso Nacional competia
legislar "sobre todas as matérias da competência da União".
Assim, qualquer iniciativa de normatização acerca
daquelas matérias que não fosse oriunda do Poder Legislativo estaria negando
vigência à Constituição. Foi o que sucedeu com a Lei 4595/64 em relação à
regulamentação financeira e creditícia.
E havia outra forma de inconstitucionalidade ainda. O
inciso IX do artigo 4º da Lei 4.595/64 trazia o comando "limitar, sempre
que necessário". Ora, "sempre que necessário" quer dizer
"nem sempre", ou "poderá não ser", levando à possibilidade
de que não houvesse limitação. Se a lei permitia a possibilidade de inexistir
limite, estaria permitindo a usura, e assim violando diretamente o preceito do
artigo 154 da Constituição Federal de 1946, que vedava incondicionalmente a
usura.
Mas prevaleceu o entendimento de pareceristas segundo os
quais o CMN teria agora poderes para tornar lícita uma prática que a lei
classificava ilícita.
O Ministro aposentado do STF Paulo Brossard disse em
prefácio à obra de Gabriel Wedy (O Limite Constitucional dos Juros Reais, 1ªed,
Síntese, Porto Alegre, 1997, p.14):
"Pois bem, o que o Chefe do Poder Executivo não
podia fazer, poderia fazê-lo o Conselho Monetário Nacional... até por telefone,
como se tornou notório. Ora, por mais amplas que fossem as atribuições do dito
Conselho, e o são, não poderiam, em caso algum, revogar a lei, a lei civil e a
lei penal, a lei que não só considerava ilícito o juro superior a 12% ao ano,
como cominava a pena de nulidade em caso de pactuado, como a lei que capitulava
a infração como ilícito penal, Lei 1.521, art. 4º, a. (...)
Admitir-se que um órgão da administração financeira
pudesse dizer que o ilícito civil passava a ser lícito, quando praticado por
bancos, e que o ilícito penal deixava de ser crime, importaria em proclamar que
um órgão da administração pudesse legislar e efetivamente o fizesse. (...)
O fato está a mostrar que a Nação não necessita de mais
leis, mas do cumprimento legal das leis existentes."
Entretanto, alguns juristas entenderam, a despeito da
sistemática constitucional vigente e da lógica jurídica, que "limitar as
taxas de juros" poderia significar o poder de liberar, extrapolar o limite
legal das taxas de juros.
Mas inobstante tudo isto, se é que triunfaram os
interesses dos bancos neste debate que nunca houve, em 1988 a festa acabou. A
nova Carta Magna fulminou definitivamente com o protecionismo. Restaurando o
Estado de Direito e preservando o princípio da separação dos Poderes, os
definiu no artigo 2º (Legislativo, Executivo e Judiciário) e no artigo 44
incumbiu ao Congresso Nacional o Legislativo.
Delegou ao Congresso Nacional, com exclusividade, a
competência para legislar sobre todas as matérias de competência da União,
inclusive sobre direito civil e comercial e política de crédito" (artigo
22, incisos I e VII) e especialmente sobre "matéria financeira, cambial e
monetária, instituições financeiras e suas operações" (artigo 48, caput e
inciso XIII).
No artigo 68, § 1º, fez-se proibida a delegação de
poderes no tocante à matérias reservadas a leis complementares, ficando o
Executivo limitado à "fiel execução das leis", segundo o artigo 84,
IV. A separação dos poderes, diga-se, e com isto o que daí advier, é cláusula
pétrea (artigo 60, § 4º, III).
Poder-se-ia dizer, então, que a competência passou a
valer a partir dali, sem afetar o que já havia sido regulamentado. Mas a
Constituição Federal cuidou disso também, no artigo 25 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias, quando revogou expressamente, a partir de 180
dias da promulgação da Carta, "todos os dispositivos legais que atribuam
ou deleguem a órgão do Poder Executivo competência assinalada pela Constituição
ao Congresso Nacional".
Assim, a Lei 4.595/64, que delegava ao Poder Executivo
(CMN) competência para limitar juros, foi expressamente revogada nesta parte,
assim como quaisquer resoluções do Banco Central sobre a matéria e, por
conseqüência, perdeu o sentido a velha Súmula 596 do Supremo Tribunal Federal.
Contado o prazo estabelecido no artigo 25 do ADCT a partir da promulgação, em 5
de outubro de 1988, a vigência dos ditos dispositivos legais expirou em 4 de
abril de 1989.
Note-se – não é demais repetir – que a Lei da Reforma
Bancária, que nunca revogou a Lei da Usura, e que na parte da delegação já era
inconstitucional, além disso foi definitivamente fulminada pela nova Carta Magna.
O que restou de pé? A Lei da Usura.
Há ainda uma discreta lamúria dos bancos dizendo que a
Lei da Usura foi revogada por um decreto sem número, de 25 de abril de 1991.
Primeiro é de se dizer que esta revogação foi tornada sem
efeito por outro decreto sem número, de 29 de novembro de 1991. Então, dizem,
como não existe no Brasil o efeito da repristinação, a Lei da Usura não pode
ressuscitar, porque segundo o parágrafo 3º do artigo 2º da Lei de Introdução ao
Código Civil "a lei revogada não se restaura por ter a lei revogadora
perdido a vigência". Só que há um sofisma aqui.
A uma porque, mesmo que fosse uma lei, revogadora, não
perdeu a vigência, mas simplesmente teve um de seus dispositivos declarado
ineficaz, e portanto não se aplica a norma da LICC.
A duas porque não é uma lei revogadora, e sim um mero
decreto presidencial, do Poder Executivo, que não tem a mínima força para
revogar uma lei. O Decreto 22626/33 tem força de lei, apesar do nome, em razão
do sistema legislativo da época, e não poderia ser revogado por um decreto do
Executivo, muito menos depois da Constituição de 1988.
Então esta é a segunda conclusão: não há porque deixar de
aplicar a Lei da Usura aos bancos, como a qualquer mortal sob a Constituição.
Por isso é que, finalizando, ou vale o artigo 192, § 3º
da Constituição, ou vale a Lei da Usura. O que não vale é cobrar juros ilegais,
acima de 12% ao ano.
--------------------------------------------------------------------------------
Informações Bibliográficas
Conforme a NBR 6023:2000 da
Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto científico
publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma:
ZUNINO NETO, Nelson. O limite
legal à taxa de juros. Site do Curso de Direito da UFSM. Santa Maria-RS.
Disponível em: <http://www.ufsm.br/direito/artigos/consumidor/juro.htm>.
Acesso em: 1.JUL.2003
--------------------------------------------------------------------------------