®BuscaLegis.ccj.ufsc.br
Os
contratos são realmente intangíveis?
Considerações
acerca do fundamento de vinculatividade dos
contratos
Eduardo Sens
dos Santos
SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. O
princípio da
intangibilidade contratual;
3. Dos contratos sagrados até o
princípio da boa-fé; 4. O
princípio da boa-fé objetiva; 5. O
dever de confiança; 6.
Conclusão; 7. Bibliografia.
1. Introdução
Para a doutrina clássica, o contrato como ato
livre e não contrário ao
ordenamento seria intangível e obrigatório.
Somente pela mesma vontade criadora do
pacto ou em casos excepcionalíssimos de caso
fortuito ou de força maior poder-se-ia
rescindi-lo. Sequer a lei derrogar-lhe-ia as
cláusulas, tão forte a declaração aposta1, e
nem mesmo judicialmente se admitia, para essa
doutrina, a alteração do conteúdo,
estando autorizada a execução da obrigação,
qualquer que fosse o motivo do
inadimplemento2.
O contrato seria lei
privada. Daí o brocardo pacta sunt servanda.
À época, a partir de pressupostos éticos e
sociais, não seria conveniente
permitir a alteração das avenças, pois a
honra do declarante presumia-se ligada à palavra
dada. Também hasteava o princípio da
intangibilidade o pressuposto social de segurança
das relações negociais3 (impropriamente designado comércio jurídico).
Ou seja, os
contratos deveriam ser cumpridos a qualquer
custo, caso contrário faltar-lhes-ia a devida
segurança; e o descumprimento da palavra, por
antiético, resultaria na perda de
confiança pública do inadimplente4.
1 LISBOA, Roberto Senise. Contratos difusos
e coletivos.
2. ed. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2000.
p. 86.
2 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito
Civil brasileiro.
São Paulo : Saraiva, 1984. v. 3. p. 30.
3 BITTAR, Carlos Alberto. Direito dos
contratos e dos atos unilaterais. Rio de Janeiro : Forense
Universitária, 1990. p. 37.
4 BESSONE, Darcy. Do contrato: teoria geral. São Paulo :
Saraiva, 1997. pp. 19 e 20. O autor cita Giorgi
que, partindo da Filosofia
do Direito, compendia sete explicações para o princípio:
“a) sociabilidade ou pacto social – O fundamento da obrigação
contratual residiria em uma convenção
tácita e primitiva de
fidelidade às próprias promessas, celebrada pelos homens.
b) Ocupação, posse ou tradição – A promessa constituiria
uma abdicação de direito e a aceitação
importaria na ocupação do direito abdicado,
operando-se, assim, a tradição.
2
Esse o conceito de intangibilidade proposto
pela doutrina clássica.
Entretanto, é preciso situá-lo melhor.
2. O princípio da intangibilidade
contratual
A origem deste antigo postulado remonta à
Revolução Francesa. Com a
ascensão da burguesia ao poder fazia-se
necessário um instrumento que possibilitasse ao
mesmo tempo a transferência dos bens da
nobreza à nova classe dominante (burguesia)
e a livre e ágil circulação do capital, de
modo a gerar mais riquezas. Criou-se, então, o
contrato moderno, claramente calcado nas
doutrinas econômicas do individualismo,
liberalismo e contratualismo e situado no
dogma voluntarista.
Entretanto, a partir da Primeira Guerra
Mundial, com o crescimento do
fenômeno inflação, a desestabilização
econômica começou a preocupar. Estudiosos do
direito, necessitando alguma forma de
minimizar os efeitos das guerras, principalmente
da quebra da Bolsa de Nova Iorque, passaram a
repensar o princípio da intangibilidade,
abrandando a força do pacta sunt servanda. Os mesmos preceitos éticos e sociais que
compunham a teoria clássica do contrato
exigiram revisão5.
Tendo em vista a impossibilidade material de
execução de vários pactos
em virtude da miséria mundial, admitiu-se
pequena intervenção do judiciário para
alterar os contratos e permitir o cumprimento
por ambas as partes. Revitalizaram-se
nesse período com o dirigismo contratual6 as teorias da imprevisão, da excessiva
onerosidade da prestação e, por fim, a do
desaparecimento da base do negócio jurídico7.
No Brasil, há pelo menos dez anos se
reconhece por lei que o princípio
da intangibilidade contratual não é absoluto,
tendo o art. 6o do Código de Defesa do
Consumidor garantido o direito à revisão
quando houver modificação das cláusulas em
c) Abandono da
própria liberdade –
Todo homem teria uma esfera particular de direito, na qual poderia
impedir o ingresso de
qualquer outro, mas, se livremente o permitisse, não haveria injustiça na
apropriação pelo credor de
uma parte de sua liberdade.
d) Interesse – O homem deve manter,
lealmente, as suas promessas, no próprio interesse, porque, de outro
modo, perderia a confiança
pública e dificilmente encontraria com quem contratar.
e) Ahrens – A consciência e a razão
mandam fazer o bem e, por conseguinte, respeitar as próprias
promessas. Acresce que, se
as promessas pudessem ser violadas impunemente, a ordem social tornar-se-ia
impossível, a sociedade
seria inútil e o homem ficaria reduzido às suas próprias e mesquinhas forças.
f) Neminem laedere – Não é tolerável que se
faça mal a outrem, arrebatando-lhe o direito.
g) Veracidade – O homem deve manter as
suas promessas, porque a lei da natureza o obriga a dizer a
verdade. Pode, certamente,
calar ou falar, mas, se prefere falar e, falando, promete, o dever de ser
verdadeiro obrigá-lo-ia ao
cumprimento do prometido”.
5 BITTAR. Direito... Op. cit.
p. 37.
6 BITTAR, Carlos Alberto.
Dirigismo econômico e direito contratual. Revista dos Tribunais, São Paulo,
v. 526, p. 20-32, ago. 1979.
7 OLIVEIRA, Carlos Alberto
Álvaro de. A evolução do direito privado e os princípios contratuais.
3
razão de fatos supervenientes que as tornem
excessivamente onerosas8. No mesmo
sentido é o projeto do novo Código Civil, em
tramitação no Congresso Nacional.
Não obstante, parcela dos juristas ainda não
recepcionou a já quase
secular mudança. Tribunais não aceitam a
teoria da imprevisão, calcando suas decisões
no surrado princípio pacta sunt servanda. Juízes, em nome de uma inexistente
segurança jurídica9, temem aplicar o Código de Defesa do
Consumidor e as legislações
mais sociais. Mesmo grandes estudiosos da
Ciência Jurídica relutam em abandonar o
voluntarismo contratual, afirmando que, uma
vez livre, a vontade exteriorizada somente
em circunstâncias excepcionalíssimas poderia
ser revista pela autoridade judiciária. À
mente apavora o que ainda não é mesmo velho,
como diria o autor de Sampa.
O princípio da intangibilidade, como se pode
notar, vem sendo mitigado
tanto na doutrina quanto na jurisprudência em
nítida resposta do dirigismo contratual
próprio do Estado Social aos desmandos
privados. A cogência da legislação de proteção
ao consumidor aliada à percepção de sua
hipossuficiência aponta para uma verdadeira
derrogação do princípio, pois, na ótica
contemporânea, nenhum contrato contrário aos
postulados éticos, sociais e jurídicos é
intangível.
Mas então, por que o contrato deve ser
obedecido? Não há mais motivo
plausível para se exigir o cumprimento das
obrigações acordadas? É o fim do contrato?
Em verdade, atualmente há um deslocamento do
centro de preocupação do direito:
abandona-se a pura intenção da parte que a
ninguém aproveitava e perquire-se os efeitos
dessa declaração de intenção na sociedade.
Necessária nesse ponto, portanto, uma breve
explicação sobre a evolução do fundamento de
vinculatividade do contrato.
3. Dos contratos sagrados até o
princípio da boa-fé
Em tempos remotos o contrato deveria ser
cumprido para que o
inadimplente não se sujeitasse à ira divina,
pois se acreditava que algum ser divino
Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 328, p.
25-29, out./dez. 1994. p. 27.
8 Arnoldo Wald demonstra que
há mais de sessenta anos a teoria da imprevisão é albergada pela
jurisprudência dos tribunais
e da própria administração pelos pareceres da Consultoria Geral da
República. (WALD, Arnoldo. O
princípio pacta
sunt servanda,
a teoria da imprevisão e a doutrina das
dívidas de valor e seus
efeitos no caso dos planos monetários. Revista de Direito Renovar, Rio de Janeiro,
v. 2, p. 31, maio/ago.
1995).
9 A expressão “segurança
jurídica” comumente designa duas idéias bastante diferentes: a primeira, a
suposta segurança que teriam
as partes em um litígio de que, dada determinada situação, só haveria uma
possível solução ao caso. A
segunda, intimamente ligada ao princípio da boa-fé, seria a segurança de que
o conteúdo das declarações
surtiria o efeito almejado. Uma é a previsibilidade da interpretação a ser
feita
pelo juiz; outra a
previsibilidade de que as declarações serão cumpridas. Obviamente, o direito só
tutela
essa última acepção.
4
castigaria o indivíduo pela falta. Por isso
os contratos tinham caráter sagrado e
intangível, vinculando as partes em quaisquer
situações. Já na época do direito
canônico, com a grande reviravolta levada a
cabo por Graciano em meados do século
XII – o Decretum Magister Graciani –, grande parte daquele formalismo sacro
perdeu
razão de existir e o contrato passou a ser
obrigatório por fundamento diverso. A parte
que empenhou sua palavra cairia no pecado da
mentira se não cumprisse com o
prometido; Deus desejaria que os contratos
fossem cumpridos porque a ninguém era
dado mentir.
Depois das revoluções liberais o motivo pelo
qual os pactos deveriam ser
cumpridos mudou. Naquele período as livres
declarações de vontade, por força da ética
kantiana, obrigariam os contratantes. E
fundamentava esse argumento a teoria dos
imperativos categóricos do filósofo de
Königsberg: Immanuel Kant. Para o pensador,
imperativos categóricos são leis morais,
universais e necessárias. Imperativos
porque
são obrigatórios e categóricos porque obrigam a vontade de forma absoluta e
incondicional. Seria imperativo categórico a
máxima: comporta-te de modo que possas
querer que teu comportamento se torne lei
universal. Todos os direitos se resumem a um
só: “que a ação de cada um se exerça numa
esfera compatível com a mesma liberdade
de ação conferida aos demais”10.
Desse modo, as obrigações contratuais
deveriam ser adimplidas porque
não era desejável que o impune descumprimento
dos contratos se tornasse lei universal;
não era desejável que todos pudessem
descumprir os contratos; e, se alguém
descumprisse, estaria abrindo espaço ao
descumprimento de todos.
Entretanto, conjugando esse princípio do
liberalismo clássico com o fato
de que a burguesia recentemente conquistara o
poder, o verdadeiro motivo pelo qual
adquire tanta força o dogma da
intangibilidade é mais complexo.
A alta burguesia acabara de tomar os bens da
nobreza e precisava
negociá-los para aumentar seu próprio
patrimônio e assim manter-se no poder. Para
tanto era necessário um instrumento eficaz,
de fácil utilização e que mantivesse a
hegemonia daquela classe. Criou-se, assim, o
moderno contrato.
Atualmente não se pode mais pretender dar ao
princípio da
intangibilidade a mesma conotação da época do
liberalismo clássico, tampouco mantê-
10 MENEZES, Djacir. Introdução à
ciência do direito. 3.
ed. Rio de Janeiro : Editora Aurora, 1952. p.
203. Vide também FRANÇA,
Rubens Limongi. Direito natural e direito positivo. Revista dos
Tribunais,
São Paulo, v. 315, p. 545,
jan. 1962.
5
lo absolutamente intocável. O direito
modificou seu centro de atenções da propriedade
para a o indivíduo dentro da sociedade e o
direito contratual não pode seguir lastreado
nos mesmos princípios de duzentos anos atrás.
Urge buscar um contrato mais humano e
empregar todos os esforços para que este
importante direito se torne instrumento para
alcançar o exercício pleno dos direitos
sociais e individuais, do bem-estar, do
desenvolvimento, da igualdade e da justiça,
como proclama o preâmbulo da
Constituição de 1988.
4. O princípio da boa-fé objetiva
Surge então um dos mais importantes
princípios do direito contratual
contemporâneo: o princípio da boa-fé objetiva11. A largueza de seu conceito e de sua
aplicação aumenta ainda mais seu relevo
jurídico, tendo Cláudia Lima Marques
afirmado ser princípio máximo do Código de
Defesa do Consumidor12.
Surgido no direito alemão, com a teoria da
confiança nas declarações,
pelas quais necessário se fazia presumir a
boa-fé dos contratantes, fixou-se naquele país,
pela primeira vez, um conceito objetivo para
a boa-fé. A partir de então, e de forma
mais acentuada nos últimos tempos, o
princípio vem sendo consideravelmente
enfatizado, mormente por emprestar conteúdo
ético ao direito contratual13.
A boa-fé objetiva é princípio e, portanto,
tem normatividade14. Provém
da interpretação do §242 do Código Civil
alemão, difundido por quase todos os
ordenamentos jurídicos, com maior ênfase nos
de common law15. Traduz a expressão
alemã Treu und Glauben, pela qual o primeiro elemento significa lealdade e o segundo,
crença.
11 Há quem diga, entretanto,
que a remissão à boa-fé é recurso retórico, por ser princípio de extrema
generalidade. (ASCENSÃO,
José de Oliveira. Cláusulas contratuais gerais, cláusulas abusivas e boa-fé.
Revista de direito
privado,
São Paulo, v. 4, p. 18, out./dez. 2000; AZEVEDO, Antônio Junqueira. O
princípio da boa-fé nos
contratos. Revista
CEJ,
Brasília, n. 9, p. 43, set./dez. 1999).
12 MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no
código de defesa do consumidor. 2. ed. São Paulo : Revista
dos Tribunais, 1995. p. 257.
13 OLIVEIRA, Carlos Alberto
Álvaro de. A evolução do direito privado e os princípios contratuais.
Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 328, p.
28, out./dez. 1994.
14 Adota-se aqui o conceito de
normas, princípios e regras de Ronald Dworkin e Robert Alexy. Para esses
autores as normas podem ser regras ou princípios. As regras seriam mandados
determinados;
determinações para até certo
ponto, como por exemplo a regra de proibição de fumar em certo recinto. Já
os princípios são mandados
de otimização, determinando a atuação sempre da melhor forma possível,
dentro de um ótimo. O princípio da boa-fé, por
exemplo, determinaria que as partes procedessem com a
maior lealdade possível,
sempre. Vide ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Tradução
de Ernesto Garzón Valdés.
Madrid : Centro de Estudios Constitucionales, 1993. pp. 86 e segs.
15 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no
direito privado:
sistema e tópica no processo obrigacional.
São Paulo : Revista dos
Tribunais, 1999. p. 411.
6
Não requer qualquer elemento psicológico ou
interno. Invoca um dever,
uma obrigação socialmente recomendada. É
regra de conduta fundada na lealdade
(Treu), na confiança, na lisura, na retidão e
principalmente “na consideração para com
os interesses do ‘alter’, visto como um
membro do conjunto social que é juridicamente
tutelado”16.
Em outras palavras, é o
dever de conduta de não frustrar a confiança
alheia.
Por isso também é designada boa-fé confiança,
pois tutela a confiança
“de quem acreditou que a outra parte
procederia de acordo com os padrões de conduta
exigíveis”17. É
conceito originado da ética cristã18,
que se confunde com a eqüidade das
relações negociais, estando presente em todas
as etapas do contrato – da fase précontratual
ao período posterior à extinção da obrigação19.
Os “padrões de conduta” são determinados pelo
comportamento exigível
do bom cidadão, do bom pai de família. Uma
atuação desconforme com esses padrões
configura violação à boa-fé objetiva20.
O princípio está inserido na maioria das
legislações civis mais atuais,
podendo-se citar o art. 7o, I do Código Civil espanhol, de 1974: “os
direitos deverão
exercitar-se conforme as exigências da
boa-fé”; o art. 1.337 do Código Civil italiano de
1942: “as partes, no desenvolvimento das
tratativas na formação do contrato, devem
comportar-se segundo a boa-fé”; o art. 227 do
Código Civil português: “quem negocia
com outrem para conclusão de um contrato
deve, tanto nas preliminares como na
formação dele, proceder segundo as regras da
boa-fé”.
Entre nós, embora apenas topicamente, o
princípio é reconhecido no
artigo 131, I, do Código Comercial, nos
artigos 4o, III e 51, IV, do Código de Defesa do
Consumidor; 112, 1.002, 1.073, 1.404, 1.405,
1.438, 1.443 e 1.444 e principalmente
155, todos do Código Civil. Também nos
artigos 14, 17 e 630 do Código de Processo
16 Idem, p. 412.
17 NORONHA, Fernando. O direito dos
contratos e seus princípios fundamentais: autonomia privada,
boa-fé, justiça contratual.
São Paulo : Saraiva, 1994. p. 136.
18 BITTAR. Direito... Op. cit. p. 39.
19 Antônio Junqueira de Azevedo
traz dois excelentes exemplos de infração ao dever de boa-fé pré e póscontratual.
No primeiro caso, uma
montadora de automóveis teria negociado durante dois anos com o
Estado do Rio Grande do Sul
a instalação de uma filial, vendo ao final, frustrada sua expectativa.
Conforme o autor, em caso de
ter sido gerada uma falsa expectativa de conclusão do contrato, haveria
infringência do dever de
boa-fé antes de celebrado o pacto.
No segundo caso, a dona de
uma butique encomenda vários casacos de pele a uma confecção e, depois
de pago o preço e recebida a
mercadoria (extinção das obrigações), vem a saber que a mesma confecção
vendeu casacos idênticos a
uma loja vizinha. Nessa hipótese, a infringência do dever de boa-fé (lealdade),
foi posterior ao pacto.
(AZEVEDO, Antônio Junqueira. O princípio da boa-fé nos contratos. Revista CEJ,
Brasília, n. 9, p. 40-44,
set./dez. 1999. p. 42).
7
Civil. O princípio se faz presente no Projeto
de Código Civil, em seu art. 422: “os
contratantes são obrigados a guardar, assim
na conclusão do contrato, como em sua
execução, os princípios de probidade e
boa-fé”21.
Obviamente, o fato de não haver no direito
brasileiro, como em outros
sistemas, menção expressa ao princípio da
boa-fé22 não quer dizer que seja inaplicável.
Se é princípio, tem normatividade. É da mesma
opinião Clóvis do Couto e Silva: “no
Direito brasileiro poder-se-ia afirmar que,
se não existe o dispositivo legislativo que o
consagre, não vigora o princípio da boa-fé no
Direito das Obrigações. Observa-se
contudo ser o aludido princípio considerado
fundamental, ou essencial, cuja presença
independe de sua recepção legislativa”23.
5. O dever de confiança
Uma das decorrências mais importantes do
princípio da boa-fé objetiva é
o dever de confiança pois, como exposto, o
princípio se materializa num dever de
lealdade para com o outro contratante. Em
virtude da boa-fé, o contratante deve
proceder de modo que o outro confie em suas
declarações – em suma, que não se frustre
a confiança e as expectativas da outra parte
quanto ao resultado objetivado.
E a confiança, segundo Menezes Cordeiro,
“exprime a situação em que
uma pessoa adere, em termos de actividade ou
de crença, a certas representações,
passadas, presentes ou futuras, que tenha por
efectivas. O princípio da confiança
explicitaria o reconhecimento dessa situação
e a sua tutela”24.
Assim, na esteira do que ensina este autor,
na sociedade massificada a
confiança significa a segurança de
resultado final, de um comportamento regular. Em
outras palavras, o princípio da confiança
tutela com maior veemência a segurança de
que o pacto entabulado terá um percurso
certo, pré-determinado25. De acordo com o
princípio da boa-fé, tutela-se a confiança da
contraparte na efetivação do resultado final
almejado, reduzindo a complexidade social,
haja vista que “as eventualidades
susceptíveis de, na sociedade, interferirem
nas decisões que desencadeiam
20 NORONHA. Op. cit. p. 140.
21 Consultou-se AGUIAR Jr., Ruy
Rosado. Extinção
dos contratos por incumprimento do devedor. Rio de
Janeiro : Aide, 1991. pp.
240-241 e NORONHA. p. 137.
22 MARTINS-COSTA. Op. cit. pp. 343 e 517-518.
23 COUTO e SILVA, Clóvis. O princípio da
boa-fé no direito brasileiro e português: estudos de direito
civil brasileiro e
português. São Paulo : Revista dos Tribunais, 1980. p. 43-61.
24 CORDEIRO, António Manuel da
Rocha e Menezes. Da
boa fé no direito civil. Coimbra : Almedina,
1997. p. 1234.
25 CORDEIRO. Op. cit. p. 1243.
8
comportamentos humanos, são inúmeras; a
confiança permitiria, nesse cenário, excluir
algumas possibilidades de desenvolvimento,
afastando perigos cuja concretização
comprometeria a actuação”26.
6. Conclusão
Em suma, a boa-fé objetiva fundamenta a
vinculatividade dos contratos
porque é necessário que se tutele a confiança
da contraparte de que a declaração será
cumprida. O contrato não é intangível por
respeito à intenção das partes ou ao direito
adquirido a um resultado predeterminado pelo
contrato. À sociedade interessa que os
pactos sejam observados não porque deve-se
observar a vontade das partes, não pela
palavra em si, mas porque é imprescindível
que se protejam as expectativas criadas
pelas declarações de vontade27.
E a maior implicação dessa teoria é a de que,
diferentemente do que
previam as teorias tradicionais, o contrato
não deve ser obedecido quando seja
desconforme com os preceitos da boa-fé
objetiva. Vale dizer, quando o pacto deixar de
atentar para deveres éticos como a lealdade,
a lisura, a transparência e a confiança. O
contrato que não obedeça minimamente a esses
requisitos não tem razão para ser
intangível, não tem razão para ser mantido e
não pode gerar todos os efeitos previstos.
7. Bibliografia
AGUIAR Jr., Ruy Rosado. Extinção dos contratos por
incumprimento do devedor.
Rio
de Janeiro : Aide, 1991.
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos
fundamentales. Tradução de
Ernesto Garzón
Valdés. Madrid : Centro de Estudios
Constitucionales, 1993.
ASCENSÃO, José de Oliveira. Cláusulas
contratuais gerais, cláusulas abusivas e boafé.
Revista de direito privado, São Paulo, v. 4, p. 8-25, out./dez. 2000
AZEVEDO, Antônio Junqueira. O princípio da
boa-fé nos contratos. Revista
CEJ,
Brasília, n. 9, p. 40-44, set./dez. 1999.
AZEVEDO, Antônio Junqueira. O princípio da
boa-fé nos contratos. Revista
CEJ,
Brasília, n. 9, p. 40-44, set./dez. 1999.
BESSONE, Darcy. Do contrato: teoria geral. São Paulo : Saraiva, 1997.
BITTAR, Carlos Alberto. Direito dos contratos e dos atos
unilaterais. Rio de Janeiro
:
Forense Universitária, 1990.
26 Idem, p. p. 1242, com base
no pensamento de Niklas Luhmann.
27 NORONHA. O direito... Op. cit. pp. 86-90.
9
BITTAR, Carlos Alberto. Dirigismo econômico e
direito contratual. Revista
dos
Tribunais, São Paulo, v. 526, p. 20-32, ago. 1979.
CORDEIRO, António Manuel da Rocha e Menezes. Da boa fé no direito civil. Coimbra
: Almedina, 1997.
COUTO e SILVA, Clóvis. O princípio da boa-fé no direito
brasileiro e português:
estudos de direito civil brasileiro e
português. São Paulo : Revista dos Tribunais,
1980.
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil brasileiro. São Paulo : Saraiva, 1984. v. 3.
FRANÇA, Rubens Limongi. Direito natural e
direito positivo. Revista
dos Tribunais,
São Paulo, v. 315, p. 541-571, jan. 1962.
LISBOA, Roberto Senise. Contratos difusos e coletivos. 2. ed. São Paulo : Revista dos
Tribunais, 2000.
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no código de defesa do
consumidor. 2. ed. São
Paulo : Revista dos Tribunais, 1995.
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo
obrigacional. São Paulo : Revista dos
Tribunais, 1999.
MENEZES, Djacir. Introdução à ciência do direito. 3. ed. Rio de Janeiro : Editora
Aurora, 1952.
NORONHA, Fernando. O direito dos contratos e seus
princípios fundamentais:
autonomia privada, boa-fé, justiça
contratual. São Paulo : Saraiva, 1994.
OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de. A
evolução do direito privado e os princípios
contratuais. Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 328, p. 25-29, out./dez.
1994.
WALD, Arnoldo. O princípio pacta sunt servanda, a teoria da imprevisão e a doutrina
das dívidas de valor e seus efeitos no caso
dos planos monetários. Revista
de Direito
Renovar, Rio de Janeiro, v. 2, p. 29-37, maio/ago.
1995.