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Os contratos são realmente intangíveis?

Considerações acerca do fundamento de vinculatividade dos

contratos

Eduardo Sens dos Santos

 

 

SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. O princípio da

intangibilidade contratual; 3. Dos contratos sagrados até o

princípio da boa-fé; 4. O princípio da boa-fé objetiva; 5. O

dever de confiança; 6. Conclusão; 7. Bibliografia.

 

1. Introdução

Para a doutrina clássica, o contrato como ato livre e não contrário ao

ordenamento seria intangível e obrigatório. Somente pela mesma vontade criadora do

pacto ou em casos excepcionalíssimos de caso fortuito ou de força maior poder-se-ia

rescindi-lo. Sequer a lei derrogar-lhe-ia as cláusulas, tão forte a declaração aposta1, e

nem mesmo judicialmente se admitia, para essa doutrina, a alteração do conteúdo,

estando autorizada a execução da obrigação, qualquer que fosse o motivo do

inadimplemento2. O contrato seria lei privada. Daí o brocardo pacta sunt servanda.

À época, a partir de pressupostos éticos e sociais, não seria conveniente

permitir a alteração das avenças, pois a honra do declarante presumia-se ligada à palavra

dada. Também hasteava o princípio da intangibilidade o pressuposto social de segurança

das relações negociais3 (impropriamente designado comércio jurídico). Ou seja, os

contratos deveriam ser cumpridos a qualquer custo, caso contrário faltar-lhes-ia a devida

segurança; e o descumprimento da palavra, por antiético, resultaria na perda de

confiança pública do inadimplente4.

1 LISBOA, Roberto Senise. Contratos difusos e coletivos. 2. ed. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2000.

p. 86.

2 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil brasileiro. São Paulo : Saraiva, 1984. v. 3. p. 30.

3 BITTAR, Carlos Alberto. Direito dos contratos e dos atos unilaterais. Rio de Janeiro : Forense

Universitária, 1990. p. 37.

4 BESSONE, Darcy. Do contrato: teoria geral. São Paulo : Saraiva, 1997. pp. 19 e 20. O autor cita Giorgi

que, partindo da Filosofia do Direito, compendia sete explicações para o princípio:

“a) sociabilidade ou pacto social – O fundamento da obrigação contratual residiria em uma convenção

tácita e primitiva de fidelidade às próprias promessas, celebrada pelos homens.

b) Ocupação, posse ou tradição – A promessa constituiria uma abdicação de direito e a aceitação

importaria na ocupação do direito abdicado, operando-se, assim, a tradição.

2

Esse o conceito de intangibilidade proposto pela doutrina clássica.

Entretanto, é preciso situá-lo melhor.

2. O princípio da intangibilidade contratual

A origem deste antigo postulado remonta à Revolução Francesa. Com a

ascensão da burguesia ao poder fazia-se necessário um instrumento que possibilitasse ao

mesmo tempo a transferência dos bens da nobreza à nova classe dominante (burguesia)

e a livre e ágil circulação do capital, de modo a gerar mais riquezas. Criou-se, então, o

contrato moderno, claramente calcado nas doutrinas econômicas do individualismo,

liberalismo e contratualismo e situado no dogma voluntarista.

Entretanto, a partir da Primeira Guerra Mundial, com o crescimento do

fenômeno inflação, a desestabilização econômica começou a preocupar. Estudiosos do

direito, necessitando alguma forma de minimizar os efeitos das guerras, principalmente

da quebra da Bolsa de Nova Iorque, passaram a repensar o princípio da intangibilidade,

abrandando a força do pacta sunt servanda. Os mesmos preceitos éticos e sociais que

compunham a teoria clássica do contrato exigiram revisão5.

Tendo em vista a impossibilidade material de execução de vários pactos

em virtude da miséria mundial, admitiu-se pequena intervenção do judiciário para

alterar os contratos e permitir o cumprimento por ambas as partes. Revitalizaram-se

nesse período com o dirigismo contratual6 as teorias da imprevisão, da excessiva

onerosidade da prestação e, por fim, a do desaparecimento da base do negócio jurídico7.

No Brasil, há pelo menos dez anos se reconhece por lei que o princípio

da intangibilidade contratual não é absoluto, tendo o art. 6o do Código de Defesa do

Consumidor garantido o direito à revisão quando houver modificação das cláusulas em

c) Abandono da própria liberdade – Todo homem teria uma esfera particular de direito, na qual poderia

impedir o ingresso de qualquer outro, mas, se livremente o permitisse, não haveria injustiça na

apropriação pelo credor de uma parte de sua liberdade.

d) Interesse – O homem deve manter, lealmente, as suas promessas, no próprio interesse, porque, de outro

modo, perderia a confiança pública e dificilmente encontraria com quem contratar.

e) Ahrens – A consciência e a razão mandam fazer o bem e, por conseguinte, respeitar as próprias

promessas. Acresce que, se as promessas pudessem ser violadas impunemente, a ordem social tornar-se-ia

impossível, a sociedade seria inútil e o homem ficaria reduzido às suas próprias e mesquinhas forças.

f) Neminem laedere – Não é tolerável que se faça mal a outrem, arrebatando-lhe o direito.

g) Veracidade – O homem deve manter as suas promessas, porque a lei da natureza o obriga a dizer a

verdade. Pode, certamente, calar ou falar, mas, se prefere falar e, falando, promete, o dever de ser

verdadeiro obrigá-lo-ia ao cumprimento do prometido”.

5 BITTAR. Direito... Op. cit. p. 37.

6 BITTAR, Carlos Alberto. Dirigismo econômico e direito contratual. Revista dos Tribunais, São Paulo,

v. 526, p. 20-32, ago. 1979.

7 OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de. A evolução do direito privado e os princípios contratuais.

3

razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas8. No mesmo

sentido é o projeto do novo Código Civil, em tramitação no Congresso Nacional.

Não obstante, parcela dos juristas ainda não recepcionou a já quase

secular mudança. Tribunais não aceitam a teoria da imprevisão, calcando suas decisões

no surrado princípio pacta sunt servanda. Juízes, em nome de uma inexistente

segurança jurídica9, temem aplicar o Código de Defesa do Consumidor e as legislações

mais sociais. Mesmo grandes estudiosos da Ciência Jurídica relutam em abandonar o

voluntarismo contratual, afirmando que, uma vez livre, a vontade exteriorizada somente

em circunstâncias excepcionalíssimas poderia ser revista pela autoridade judiciária. À

mente apavora o que ainda não é mesmo velho, como diria o autor de Sampa.

O princípio da intangibilidade, como se pode notar, vem sendo mitigado

tanto na doutrina quanto na jurisprudência em nítida resposta do dirigismo contratual

próprio do Estado Social aos desmandos privados. A cogência da legislação de proteção

ao consumidor aliada à percepção de sua hipossuficiência aponta para uma verdadeira

derrogação do princípio, pois, na ótica contemporânea, nenhum contrato contrário aos

postulados éticos, sociais e jurídicos é intangível.

Mas então, por que o contrato deve ser obedecido? Não há mais motivo

plausível para se exigir o cumprimento das obrigações acordadas? É o fim do contrato?

Em verdade, atualmente há um deslocamento do centro de preocupação do direito:

abandona-se a pura intenção da parte que a ninguém aproveitava e perquire-se os efeitos

dessa declaração de intenção na sociedade. Necessária nesse ponto, portanto, uma breve

explicação sobre a evolução do fundamento de vinculatividade do contrato.

3. Dos contratos sagrados até o princípio da boa-fé

Em tempos remotos o contrato deveria ser cumprido para que o

inadimplente não se sujeitasse à ira divina, pois se acreditava que algum ser divino

Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 328, p. 25-29, out./dez. 1994. p. 27.

8 Arnoldo Wald demonstra que há mais de sessenta anos a teoria da imprevisão é albergada pela

jurisprudência dos tribunais e da própria administração pelos pareceres da Consultoria Geral da

República. (WALD, Arnoldo. O princípio pacta sunt servanda, a teoria da imprevisão e a doutrina das

dívidas de valor e seus efeitos no caso dos planos monetários. Revista de Direito Renovar, Rio de Janeiro,

v. 2, p. 31, maio/ago. 1995).

9 A expressão “segurança jurídica” comumente designa duas idéias bastante diferentes: a primeira, a

suposta segurança que teriam as partes em um litígio de que, dada determinada situação, só haveria uma

possível solução ao caso. A segunda, intimamente ligada ao princípio da boa-fé, seria a segurança de que

o conteúdo das declarações surtiria o efeito almejado. Uma é a previsibilidade da interpretação a ser feita

pelo juiz; outra a previsibilidade de que as declarações serão cumpridas. Obviamente, o direito só tutela

essa última acepção.

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castigaria o indivíduo pela falta. Por isso os contratos tinham caráter sagrado e

intangível, vinculando as partes em quaisquer situações. Já na época do direito

canônico, com a grande reviravolta levada a cabo por Graciano em meados do século

XII – o Decretum Magister Graciani –, grande parte daquele formalismo sacro perdeu

razão de existir e o contrato passou a ser obrigatório por fundamento diverso. A parte

que empenhou sua palavra cairia no pecado da mentira se não cumprisse com o

prometido; Deus desejaria que os contratos fossem cumpridos porque a ninguém era

dado mentir.

Depois das revoluções liberais o motivo pelo qual os pactos deveriam ser

cumpridos mudou. Naquele período as livres declarações de vontade, por força da ética

kantiana, obrigariam os contratantes. E fundamentava esse argumento a teoria dos

imperativos categóricos do filósofo de Königsberg: Immanuel Kant. Para o pensador,

imperativos categóricos são leis morais, universais e necessárias. Imperativos porque

são obrigatórios e categóricos porque obrigam a vontade de forma absoluta e

incondicional. Seria imperativo categórico a máxima: comporta-te de modo que possas

querer que teu comportamento se torne lei universal. Todos os direitos se resumem a um

só: “que a ação de cada um se exerça numa esfera compatível com a mesma liberdade

de ação conferida aos demais”10.

Desse modo, as obrigações contratuais deveriam ser adimplidas porque

não era desejável que o impune descumprimento dos contratos se tornasse lei universal;

não era desejável que todos pudessem descumprir os contratos; e, se alguém

descumprisse, estaria abrindo espaço ao descumprimento de todos.

Entretanto, conjugando esse princípio do liberalismo clássico com o fato

de que a burguesia recentemente conquistara o poder, o verdadeiro motivo pelo qual

adquire tanta força o dogma da intangibilidade é mais complexo.

A alta burguesia acabara de tomar os bens da nobreza e precisava

negociá-los para aumentar seu próprio patrimônio e assim manter-se no poder. Para

tanto era necessário um instrumento eficaz, de fácil utilização e que mantivesse a

hegemonia daquela classe. Criou-se, assim, o moderno contrato.

Atualmente não se pode mais pretender dar ao princípio da

intangibilidade a mesma conotação da época do liberalismo clássico, tampouco mantê-

10 MENEZES, Djacir. Introdução à ciência do direito. 3. ed. Rio de Janeiro : Editora Aurora, 1952. p.

203. Vide também FRANÇA, Rubens Limongi. Direito natural e direito positivo. Revista dos Tribunais,

São Paulo, v. 315, p. 545, jan. 1962.

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lo absolutamente intocável. O direito modificou seu centro de atenções da propriedade

para a o indivíduo dentro da sociedade e o direito contratual não pode seguir lastreado

nos mesmos princípios de duzentos anos atrás. Urge buscar um contrato mais humano e

empregar todos os esforços para que este importante direito se torne instrumento para

alcançar o exercício pleno dos direitos sociais e individuais, do bem-estar, do

desenvolvimento, da igualdade e da justiça, como proclama o preâmbulo da

Constituição de 1988.

4. O princípio da boa-fé objetiva

Surge então um dos mais importantes princípios do direito contratual

contemporâneo: o princípio da boa-fé objetiva11. A largueza de seu conceito e de sua

aplicação aumenta ainda mais seu relevo jurídico, tendo Cláudia Lima Marques

afirmado ser princípio máximo do Código de Defesa do Consumidor12.

Surgido no direito alemão, com a teoria da confiança nas declarações,

pelas quais necessário se fazia presumir a boa-fé dos contratantes, fixou-se naquele país,

pela primeira vez, um conceito objetivo para a boa-fé. A partir de então, e de forma

mais acentuada nos últimos tempos, o princípio vem sendo consideravelmente

enfatizado, mormente por emprestar conteúdo ético ao direito contratual13.

A boa-fé objetiva é princípio e, portanto, tem normatividade14. Provém

da interpretação do §242 do Código Civil alemão, difundido por quase todos os

ordenamentos jurídicos, com maior ênfase nos de common law15. Traduz a expressão

alemã Treu und Glauben, pela qual o primeiro elemento significa lealdade e o segundo,

crença.

11 Há quem diga, entretanto, que a remissão à boa-fé é recurso retórico, por ser princípio de extrema

generalidade. (ASCENSÃO, José de Oliveira. Cláusulas contratuais gerais, cláusulas abusivas e boa-fé.

Revista de direito privado, São Paulo, v. 4, p. 18, out./dez. 2000; AZEVEDO, Antônio Junqueira. O

princípio da boa-fé nos contratos. Revista CEJ, Brasília, n. 9, p. 43, set./dez. 1999).

12 MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor. 2. ed. São Paulo : Revista

dos Tribunais, 1995. p. 257.

13 OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de. A evolução do direito privado e os princípios contratuais.

Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 328, p. 28, out./dez. 1994.

14 Adota-se aqui o conceito de normas, princípios e regras de Ronald Dworkin e Robert Alexy. Para esses

autores as normas podem ser regras ou princípios. As regras seriam mandados determinados;

determinações para até certo ponto, como por exemplo a regra de proibição de fumar em certo recinto. Já

os princípios são mandados de otimização, determinando a atuação sempre da melhor forma possível,

dentro de um ótimo. O princípio da boa-fé, por exemplo, determinaria que as partes procedessem com a

maior lealdade possível, sempre. Vide ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Tradução

de Ernesto Garzón Valdés. Madrid : Centro de Estudios Constitucionales, 1993. pp. 86 e segs.

15 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional.

São Paulo : Revista dos Tribunais, 1999. p. 411.

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Não requer qualquer elemento psicológico ou interno. Invoca um dever,

uma obrigação socialmente recomendada. É regra de conduta fundada na lealdade

(Treu), na confiança, na lisura, na retidão e principalmente “na consideração para com

os interesses do ‘alter’, visto como um membro do conjunto social que é juridicamente

tutelado”16. Em outras palavras, é o dever de conduta de não frustrar a confiança

alheia.

Por isso também é designada boa-fé confiança, pois tutela a confiança

“de quem acreditou que a outra parte procederia de acordo com os padrões de conduta

exigíveis”17. É conceito originado da ética cristã18, que se confunde com a eqüidade das

relações negociais, estando presente em todas as etapas do contrato – da fase précontratual

ao período posterior à extinção da obrigação19.

Os “padrões de conduta” são determinados pelo comportamento exigível

do bom cidadão, do bom pai de família. Uma atuação desconforme com esses padrões

configura violação à boa-fé objetiva20.

O princípio está inserido na maioria das legislações civis mais atuais,

podendo-se citar o art. 7o, I do Código Civil espanhol, de 1974: “os direitos deverão

exercitar-se conforme as exigências da boa-fé”; o art. 1.337 do Código Civil italiano de

1942: “as partes, no desenvolvimento das tratativas na formação do contrato, devem

comportar-se segundo a boa-fé”; o art. 227 do Código Civil português: “quem negocia

com outrem para conclusão de um contrato deve, tanto nas preliminares como na

formação dele, proceder segundo as regras da boa-fé”.

Entre nós, embora apenas topicamente, o princípio é reconhecido no

artigo 131, I, do Código Comercial, nos artigos 4o, III e 51, IV, do Código de Defesa do

Consumidor; 112, 1.002, 1.073, 1.404, 1.405, 1.438, 1.443 e 1.444 e principalmente

155, todos do Código Civil. Também nos artigos 14, 17 e 630 do Código de Processo

16 Idem, p. 412.

17 NORONHA, Fernando. O direito dos contratos e seus princípios fundamentais: autonomia privada,

boa-fé, justiça contratual. São Paulo : Saraiva, 1994. p. 136.

18 BITTAR. Direito... Op. cit. p. 39.

19 Antônio Junqueira de Azevedo traz dois excelentes exemplos de infração ao dever de boa-fé pré e póscontratual.

No primeiro caso, uma montadora de automóveis teria negociado durante dois anos com o

Estado do Rio Grande do Sul a instalação de uma filial, vendo ao final, frustrada sua expectativa.

Conforme o autor, em caso de ter sido gerada uma falsa expectativa de conclusão do contrato, haveria

infringência do dever de boa-fé antes de celebrado o pacto.

No segundo caso, a dona de uma butique encomenda vários casacos de pele a uma confecção e, depois

de pago o preço e recebida a mercadoria (extinção das obrigações), vem a saber que a mesma confecção

vendeu casacos idênticos a uma loja vizinha. Nessa hipótese, a infringência do dever de boa-fé (lealdade),

foi posterior ao pacto. (AZEVEDO, Antônio Junqueira. O princípio da boa-fé nos contratos. Revista CEJ,

Brasília, n. 9, p. 40-44, set./dez. 1999. p. 42).

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Civil. O princípio se faz presente no Projeto de Código Civil, em seu art. 422: “os

contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua

execução, os princípios de probidade e boa-fé”21.

Obviamente, o fato de não haver no direito brasileiro, como em outros

sistemas, menção expressa ao princípio da boa-fé22 não quer dizer que seja inaplicável.

Se é princípio, tem normatividade. É da mesma opinião Clóvis do Couto e Silva: “no

Direito brasileiro poder-se-ia afirmar que, se não existe o dispositivo legislativo que o

consagre, não vigora o princípio da boa-fé no Direito das Obrigações. Observa-se

contudo ser o aludido princípio considerado fundamental, ou essencial, cuja presença

independe de sua recepção legislativa”23.

5. O dever de confiança

Uma das decorrências mais importantes do princípio da boa-fé objetiva é

o dever de confiança pois, como exposto, o princípio se materializa num dever de

lealdade para com o outro contratante. Em virtude da boa-fé, o contratante deve

proceder de modo que o outro confie em suas declarações – em suma, que não se frustre

a confiança e as expectativas da outra parte quanto ao resultado objetivado.

E a confiança, segundo Menezes Cordeiro, “exprime a situação em que

uma pessoa adere, em termos de actividade ou de crença, a certas representações,

passadas, presentes ou futuras, que tenha por efectivas. O princípio da confiança

explicitaria o reconhecimento dessa situação e a sua tutela”24.

Assim, na esteira do que ensina este autor, na sociedade massificada a

confiança significa a segurança de resultado final, de um comportamento regular. Em

outras palavras, o princípio da confiança tutela com maior veemência a segurança de

que o pacto entabulado terá um percurso certo, pré-determinado25. De acordo com o

princípio da boa-fé, tutela-se a confiança da contraparte na efetivação do resultado final

almejado, reduzindo a complexidade social, haja vista que “as eventualidades

susceptíveis de, na sociedade, interferirem nas decisões que desencadeiam

20 NORONHA. Op. cit. p. 140.

21 Consultou-se AGUIAR Jr., Ruy Rosado. Extinção dos contratos por incumprimento do devedor. Rio de

Janeiro : Aide, 1991. pp. 240-241 e NORONHA. p. 137.

22 MARTINS-COSTA. Op. cit. pp. 343 e 517-518.

23 COUTO e SILVA, Clóvis. O princípio da boa-fé no direito brasileiro e português: estudos de direito

civil brasileiro e português. São Paulo : Revista dos Tribunais, 1980. p. 43-61.

24 CORDEIRO, António Manuel da Rocha e Menezes. Da boa fé no direito civil. Coimbra : Almedina,

1997. p. 1234.

25 CORDEIRO. Op. cit. p. 1243.

8

comportamentos humanos, são inúmeras; a confiança permitiria, nesse cenário, excluir

algumas possibilidades de desenvolvimento, afastando perigos cuja concretização

comprometeria a actuação”26.

6. Conclusão

Em suma, a boa-fé objetiva fundamenta a vinculatividade dos contratos

porque é necessário que se tutele a confiança da contraparte de que a declaração será

cumprida. O contrato não é intangível por respeito à intenção das partes ou ao direito

adquirido a um resultado predeterminado pelo contrato. À sociedade interessa que os

pactos sejam observados não porque deve-se observar a vontade das partes, não pela

palavra em si, mas porque é imprescindível que se protejam as expectativas criadas

pelas declarações de vontade27.

E a maior implicação dessa teoria é a de que, diferentemente do que

previam as teorias tradicionais, o contrato não deve ser obedecido quando seja

desconforme com os preceitos da boa-fé objetiva. Vale dizer, quando o pacto deixar de

atentar para deveres éticos como a lealdade, a lisura, a transparência e a confiança. O

contrato que não obedeça minimamente a esses requisitos não tem razão para ser

intangível, não tem razão para ser mantido e não pode gerar todos os efeitos previstos.

7. Bibliografia

AGUIAR Jr., Ruy Rosado. Extinção dos contratos por incumprimento do devedor. Rio

de Janeiro : Aide, 1991.

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BITTAR, Carlos Alberto. Direito dos contratos e dos atos unilaterais. Rio de Janeiro :

Forense Universitária, 1990.

26 Idem, p. p. 1242, com base no pensamento de Niklas Luhmann.

27 NORONHA. O direito... Op. cit. pp. 86-90.

9

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Tribunais, São Paulo, v. 526, p. 20-32, ago. 1979.

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das dívidas de valor e seus efeitos no caso dos planos monetários. Revista de Direito

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