Trespasse
de dívidas comerciais:
Qual
o seu regime ?
Joel Timóteo Ramos Pereira,
Juiz de Direito
Considere o
trespasse de um estabelecimento comercial, que no momento da escritura pública,
tem diversas dívidas para pagar. Quem é o responsável pelas mesmas ? O vendedor
(trespassante) ou o adquirente (trespassário) ?
O caso, que
foi submetido ao Supremo Tribunal de Justiça, teve a particularidade de na
escritura de trespasse constar expressamente que o mesmo "incluía todo o
activo e passivo", mas logo de imediato o alienante assinou uma declaração
pela qual assumiu ser da sua inteira responsabilidade o pagamento dos débitos
do estabelecimento a fornecedores contraídos até uma determinada data.
O trespasse
é o negócio pelo qual é transmitido, definitivamente, inter vivos, um
estabelecimento comercial como unidade, mas o facto de se exigir no trespasse
essa transferência unitária dos elementos que o integram, não significa
necessariamente que sejam transmitidos o passivo e o activo da actividade
comercial que o suporta.
Todavia, é
doutrina dominante, nesta sede, que a transferência do activo ou do passivo com
o estabelecimento não implica a exoneração do trespassante do pagamento do
passivo, continuando o mesmo responsável pelo seu pagamento, salvo se for
exonerado desse pagamento pelo credor (cfr. Antunes Varela, RLJ, Ano 110, p.
304 a 306, Oliveira Ascensão, Dto. Comercial, I, 1988, p. 519,520).
Por
conseguinte, para efeitos das relações externas, mesmo que fique a constar na
escritura que é transmitido todo o activo e passivo, o trespassante continua
obrigado ao pagamento das dívidas, independentemente do consentimento expresso
dos credores respectivos, por isso se opor o disposto no nº 2 do artº 595º do
Código Civil.
Impõe-se
questionar, em consequência, qual o valor da declaração (por documento
particular) emitida pelo alienante, pela qual assume o pagamento das dívidas. Na
mesma linha de pensamento jurídico, essa declaração não tem qualquer efeito
jurídico externo, não constituindo uma "assunção de dívida", precisamente
porque ele já é devedor, não se podendo constituir de novo, devedor, como
exigem as alíneas do nº 1 do artº 595º do Código Civil. !
Todavia, a
jurisprudência e a doutrina têm amplamente considerado que embora a transmissão
do passivo faça parte do âmbito natural do estabelecimento, não faz parte do
seu núcleo essencial, como não faz parte desse mesmo núcleo o imóvel onde o
estabelecimento está instalado, arrendado ou não. Tanto assim é que pode haver
trespasse do estabelecimento sem a transferência do passivo e sem o local,
arrendado ou não (cfr. Orlando de Carvalho, RLJ, Ano 115, p. 167ss).
Deste modo,
a cláusula por que se transfere o passivo do estabelecimento é acessória, não
estando abrangida pelas razões de exigência de forma especial, pode essa
cláusula ser alterada por mero documento particular (isto é, sem nova escritura
pública), ou inclusive mesmo verbalmente, ao abrigo do disposto no artº 220º do
Código Civil.
Contudo,
uma simples declaração pela qual se assume ser da sua responsabilidade o
pagamento de determinados débitos não constitui, de per si, um contrato
susceptível de modificar a cláusula constante da escritura, por se tratar de
uma mera declaração unilateral não permitida pelo nº 2 do artº 595º C. Civil.
Sucede
porém que no caso que serviu de base à prolação do acórdão do STJ (de
28.3.2000, publicado in CJSTJ, I, p.148s), ficou provado que por acordo verbal,
foi estipulado que o trespassário (comprador) pagaria aos vendedores os stocks
de produtos inventariados no dia da escritura. Este facto, associado à
declaração emitida pelo trespassante permite concluir pela existência de uma
vontade real das partes de, na prática, repartirem entre si o pagamento do
passivo. Esse acordo é sinalagmático e válido, correspondendo a uma modificação
contratual, legalmente permitida (artº 220º Código Civil), em relação ao que
tinha sido outorgado pela escritura.
Neste
sentido escreveu também Rui Alarcão, defendendo que os pactos modificativos ou
extintivos não carecem de sujeitar-se à forma exigida para a constituição do
negócio quando as circunstâncias do caso os tornem verosímeis e a razão de
forma os não abranja (BMJ, nº 86, p. 192), tendo sido esta a regulamentação que
passou para o artº 221º do Código Civil.
Conclui-se:
mesmo que conste da escritura a transmissão das dívidas, nas suas relações
externas o trespassante continua obrigado a satisfazer as dívidas aos credores,
se estes não o exonerarem. Todavia, pode por documento simples, assinado por
trespassante e trespassário, ou mesmo por via verbal, ser acordado entre ambos
um regime que, no plano das relações internas, modifique ou extinga a cláusula
inserta na escritura pública de trespasse. Assim também decidiu o STJ.
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em http://www.verbojuridico.net/