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Sociedades Comerciais:

Pode um gerente votar em benefício próprio ?

 

Joel Timóteo Ramos Pereira,

Juiz de Direito

 

 

Começa a ser cada vez mais frequente a instauração de acções judiciais para suspensão de deliberações sociais que têm por fundamento a votação que um gerente da sociedade faz em assembleia, com referência a projectos ou decisões que implicam a obtenção de benefícios pelo próprio sócio. Entre esses casos está a fixação da remuneração do próprio gerente que se tiver uma posição maioritária, acabará por ser o único voto determinável da mesma.

 

 

Dispõe o art.º 251.º, n.º 1 do Código das Sociedades Comerciais (CSC) que o sócio não pode votar, nem por si, nem por representante, nem em representação de outrem, quando, relativamente à matéria da deliberação, se encontre em situação de conflito de interesses com a sociedade. A jurisprudência tem entendido que existe situação de conflito quando se trate de deliberação que recaia sobre alguma das matérias mencionadas nas alíneas a) a g) do referido preceito, a saber, liberação de uma obrigação ou responsabilidade própria do sócio, quer nessa qualidade quer como gerente ou membro do órgão de fiscalização, litígio sobre pretensão da sociedade contra o sócio ou deste contra aquela, em qualquer das qualidades do ponto anterior, perda pelo sócio de parte da sua quota, na hipótese prevista no artigo 204.º , n.º 2 CSC, exclusão do sócio, consentimento, destituição por justa causa da gerência e qualquer relação, estabelecida ou a estabelecer, entre a sociedade e o sócio estranha ao contrato de sociedade.

 

 

Tem-se entendido, igualmente, que a fixação de remuneração pelo gerente a si próprio não constitui uma infracção directa ao disposto no art.º 251.º, n.º 1 do CSC, na justa medida em que nos termos do art.º 255.º, n.º 1, do mesmo Código, salvo disposição em contrário do contrato de sociedade, o gerente tem direito a uma remuneração, a fixar pelos sócios. Se o gerente for um dos sócios, necessariamente que ele, enquanto sócio, tem direito de voto quanto a essa questão.

 

 

O preceito do art.º 39.º, n.º 1 da antiga Lei das Sociedades por Quotas (que esteve na origem do art.º 251.º, n.º 1 do CSM) foi interpretado pelo assento do STJ de 26.05.1961 (BMJ, 107.º, p. 352), no sentido de que "o sócio está impedido de votar sobre os assuntos em que tenha um interesse imediatamente pessoal, individual, oposto ao da sociedade" (itálico nosso). VAZ SERRA (RLJ, 108.º, p.244) faz, a este propósito, apelo aos ditames da boa fé e aos bons costumes que, no caso concreto, impeçam o sócio de votar sempre que este tenha um interesse oposto ao da sociedade.

 

 

Todavia, o art.º 251.º, n.º 1 do CSC tem sido interpretado de forma diferente. RAUL VENTURA (Sociedade por Quotas, II, p. 296) entende que há situação de conflito de interesses, quando estes "são opostos, de tal modo que um deles não possa ser satisfeito sem o sacrifício do outro" ou que "quando existe possibilidade de a deliberação satisfazer o interesse particular do sócio em detrimento comum".

 

 

Assim, nomeadamente na votação sobre a sua remuneração, o sócio (também gerente) não está, em princípio, impedido de participar nela, uma vez que não existe conflito de interesses entre a sociedade e o sócio.

 

 

Entendemos, contudo, que pode suceder que o sócio-gerente, ao votar sobre a sua remuneração, se oriente não pelo interesse social (da sociedade), mas pelo seu próprio interesse, procurando obter vantagens em prejuízo da sociedade ou de outros sócios. Nesse caso, estaremos perante a figura do abuso de direito de voto. Esta nossa concepção tem por fundamento o disposto no art.º 58.º, n.º 1, al. b) do CSC, segundo o qual, são anuláveis as deliberações que sejam apropriadas para satisfazer o propósito de um dos sócios de conseguir, através do exercídio do direito de voto, vantagens especiais para si ou para terceiros, em prejuízo da sociedade ou de outros sócios ou simplesmente de prejudicar aquela ou estes, a menos que se prove que as deliberações teriam sido tomadas mesmo sem os votos abusivos. Convém, contudo, considerarmos a doutrina de PINTO FURTADO (Das Deliberações Sociais, p. 389), segundo o qual "não é, sem mais, abusiva a deliberação da maioria apenas susceptível de causar um dano à sociedade ou aos outros sócios na prossecução de vantagens especiais, mas somente aquela que traduza esta ideia na forma ou na dimensão de um excesso manifesto, abrindo margem à situação de clamorosa injustiça de que falam os autores e quanto à qual, só verificada ela, poderá fazer-se disparar a eficácia reparadora do abuso de direito". Por isso, a deliberação, para ser abusiva, tem de incluir, no seu contexto, as proporções de um excesso manifesto (art.º 334.º do Código Civil), caso em que não será admissível e anulável.

 

 

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