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Dissolução da sociedade por acordo:

Uma forma de fuga à declaração de falência ?

 

 

Joel Timóteo Ramos Pereira,

Juiz de Direito

 

 

I. Enquadramento

O processo de falência visa pôr termo a uma situação de insolvência de uma empresa (ou pessoa individual). Nesse processo, procuram-se atingir outros objectivos, nomeadamente a salvaguarda dos direitos dos credores, a apreensão, para imediata entrega ao liquidatário judicial, dos elementos da contabilidade da falida e de todos os seus bens, ainda que arrestados, penhorados ou de qualquer forma apreendidos ou detidos e a aferição da conduta fraudulenta dos sócios, gerentes ou administradores.

Por outro lado, a declaração de falência implica, imediatamente, a inibição do falido ou dos seus gerentes para o exercício do comércio, incluindo a possibilidade de ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa ou cooperativa (art.º 148.º do Código de Processos Especiais de Recuperação de Empresa e Falência = CPEREF).

 

2. Pressupostos da falência

A declaração de falência tem por pressuposto a insolvência do devedor (art.º 8.º do CPEREF), nomeadamente pela falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações, pela fuga do titular da empresa ou dos titulares do seu órgão de gestão, relacionada com a falta de solvabilidade do devedor e sem designação de substituto idóneo, ou abandono do local em que a empresa tem a sede ou exerce a sua principal actividade ou pela dissipação ou extravio de bens, constituição fictícia de créditos ou qualquer outro procedimento anómalo que revele o propósito de o devedor se colocar em situação que o impossibilite de cumprir pontualmente as suas obrigações.

A lei permite que no caso de o devedor ter falecido ou cessado a sua actividade, a falência pode ainda ser requerida por qualquer credor interessado ou pelo Ministério Público, dentro do ano posterior a qualquer dos factos referidos nas alíneas a), b) e c) do n.º 1 do art.º 8.º do CPEREF, quer a situação de insolvência se tenha revelado antes, quer depois da morte ou da cessação de actividade do devedor [art.º 9.º do referido Código].

 

3. A dissolução da sociedade por acordo

Sucede porém que, o art.º 141.º do Código das Sociedades Comerciais permite a dissolução da sociedade por mútuo acordo, podendo os sócios da mesma declarar nesse acto que "nada há para liquidar ou partilhar", mesmo que, efectivamente, existam dívidas a particulares ou ao Estado.

A este propósito, referem Carvalho Fernandes e João Labareda, CPEREF, Lisboa, Quid Juris, 3.ª ed., p.89, "prevendo a morte e a cessação da actividade do devedor, a lei é, no entanto, omissa quanto à relevância da extinção da pessoa colectiva, no que respeita à manutenção do direito de requerer a falência. A circunstância de tal acontecimento implicar também a atribuição dos seus bens a outras pessoas, criando um fenómeno análogo ao que se verifica na sucessão mortis causa, poderia tornar sugestivo um alargamento do regime do preceito. A letra da lei, porém, exclui-o, em definitivo, entendimento que, aliás, só sai reforçado pela natureza excepcional da norma".

 

4. Consequências da dissolução

Nos termos do art.º 141.º, al. b) do CSC, a sociedade dissolve-se nos casos previstos no contrato e ainda por deliberação dos sócios. Mas, por outro lado, segundo dispõe o art.º 146.º do mesmo Código, "salvo quando a lei disponha diferentemente, a sociedade dissolvida entra imediatamente em liquidação, que obedece aos termos dos artigos seguintes (...) 2. A sociedade em liquidação mantém a personalidade jurídica e, salvo quando outra coisa resulte das disposições subsequentes ou da modalidade da liquidação, continuam a ser-lhe aplicáveis, com as necessárias adaptações, as disposições que regem as sociedades não dissolvidas".

Ou seja, a dissolução da referida sociedade, em si mesma, não obsta à instauração nem à prossecução de processo de falência contra a mesma, na medida em que na falência também se procede à liquidação (judicial) dos bens, nem por esse motivo a requerida deixa de ter personalidade jurídica e, consequentemente, atento o disposto no art.º 5.º do CPC, personalidade judiciária, ou seja, susceptibilidade de ser parte e estar em juízo.

 

5. A possibilidade de fuga à declaração de falência

Porém, se aquando a dissolução da sociedade por mútuo acordo for igualmente efectuada (pelos sócios da mesma) a liquidação e partilha dos bens (assim fazendo constar do acto de dissolução, a empresa fica, no próprio acto de dissolução, liquidada e os seus bens (a existir) partilhados.

Sabendo que os autos de falência consubstanciam, igualmente, uma liquidação do património da falida, não pode haver uma liquidação judicial quando já houve uma liquidação extrajudicial, com a respectiva partilha dos bens, configurando assim, se outro não fosse o fundamento, um acto completamente inútil.

Além disso, o art.º 146.º, n.º 2 do Código das Sociedades Comerciais preceitua que "a sociedade em liquidação mantém a personalidade jurídica", o que significa, a contrario, que a sociedade dissolvida e liquidada deixa de ter personalidade jurídica e judiciária.

Deste modo, já não pode ser instaurada acção especial de falência e, sendo instaurada, deve ser conhecida a falta de personalidade judiciária da sociedade dissolvida, o que constitui uma excepção dilatória (art.º 494.º, al. c) do CPC), insuprível, de conhecimento oficioso (art.º 495.º do CPC) e que conduz à absolvição da instância (art.º 493.º, n.º 2 do CPC e 288.º, n.º 1, al. c) do CPC).

 

6. A consequência.

Nestas circunstâncias, de "fuga legal" à declaração de falência, não prevista pelo legislador, tal como sucedeu num caso concreto que tivemos de apreciar, ficam preteridos os direitos dos credores - que apenas podem exigir responsabilidade pessoal aos sócios da sociedade dissolvida, quando se verifiquem os respectivos pressupostos, geralmente de difícil prova -, assim como os mesmos sócios, gerentes ou administradores escapam à inibição prevista no art.º 148.º do CPEREF (assim podendo constituir novas sociedades e prosseguir normalmente a sua actividade) e contra os mesmos não pode ser instaurado processo de falência fraudulenta.

Neste momento em que tanto se fala dos direitos sociais dos trabalhadores e dos credores, é conveniente que o legislador consagre uma situação de excepção para que, nos casos de dissolução da sociedade, por acordo dos seus sócios, com o intuito de fuga à declaração de falência, seja passível de apreciação, contra os mesmos, dos fundamentos da dissolução e a aplicação das sanções que sejam devidas.

 

 

 

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