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Duplicata sem aceite: título de crédito que está perdendo seu valor

 

Eduardo Dorfmann Aranovich

 

Professor de Direito Comercial e advogado em Porto Alegre/RS

 

I

De há muito venho observando as atrocidades cometidas contra o instituto da duplicata, esse massacrado instituto de direito mercantil.

Preocupado em efetuar anotações mais aproximadas da realidade do mundo negocial e querendo perfectibilizar as observações, sempre fui adiando essa empreitada.

Com efeito, estamos vivendo a plena era da informatização e da virtualidade. A duplicata não poderia deixar de sofrer as agruras de tal evolução.

Nos dias de hoje, várias são as sociedades mercantis e mesmo civis (às quais é facultado também o saque desse título cambiariforme) que não sacam duplicatas de suas faturas na forma e cumprindo com os ditames da Lei de Duplicatas: inexiste duplicata.

O comerciante, via sistema informatizado, informa ao banco que certa pessoa jurídica ou física lhe deve determinada quantia, a qual deverá ser paga na(s) data(s) que menciona. O banco, por sua vez, através dos mesmos meios de informatização, ou por carta ou outro meio assemelhado, comunica ao sacado que deve pagar tal quantia ao banco que é detentor do título: é bom anotar que não se sabe a natureza do “endosso-virtual” ao banco, se a título pleno ou de mandato.

Emergem daí problemas cuja solução é dada por advogados, demonstrando-a aos julgadores, que, por sua vez, adotam uma forma de tratar casos dessa natureza.

Podemos resumir o problema da falta de executividade do título por não preencher as condições da Lei de Duplicatas: a impossibilidade do protesto por qualquer de suas formas, haja vista a inexistência do saque do título cambiariforme; a impossibilidade do pedido de falência em face da falta do aceite ficto, a que se refere Pontes de Miranda. E, dentre os casos que trazem embutidos a injustiça, é aquele que diz com a sustação do protesto promovida contra o apresentante do título, o banco. Com vigor, o banco, em tais situações, diz ser mero mandatário e parte ilegítima para residir no feito: o autor da demanda, injustiçado pelo saque irregular de título sem origem em negócio jurídico subjacente, vê-se condenando nas penas da sucumbência em favor do banco.

Em face da crescente falta de obediência à Lei Das Duplicatas, urge que ela seja revista para se adaptar aos novos tempos, mas não se abandonando o saque do título para circulação como efeito móvel, pois, como ensinou Vivante, “o título de crédito é o instrumento necessário ao exercício de direito literal e autônomo nele mencionado”.

Urge, portanto, expressar as observações que seguem, sem ter a pretensão de esgotar o tema.

II

Na conformidade do art. 2º da Lei n. 5.474, de 18 de julho de 1968, em todo contrato de compra e venda mercantil (art. 191 do Código Comercial), o único título que poderá ser sacado para permitir a circulação do crédito com efeito comercial é a duplicata. Trata-se de título cambiário, de criação do legislador brasileiro, que somente poderá ser sacado com base em uma fatura, que, por sua vez, é o instrumento a permitir-lhe o saque como fonte direta e imediata a sua criação.

A fatura, por sua vez, só poderá ser emitida com base em uma nota, que, ao nosso sentir, é a fiscal, originada esta, por sua vez, de um negócio jurídico de compra e venda mercantil.

Entendo, no que se refere a este ilustre e maltratado título de crédito, criado pelo legislador pátrio, que, quando aceito, nada existe a ser-lhe acrescentado além do que já se contém nos princípios que orientam, em sua generalidade, os títulos de crédito (muito embora entre ele em dissensão com a natureza do vero título de crédito, por sempre estar vinculado a um negócio jurídico subjacente).

A matéria toma vulto e cresce em interesse quando se trata de duplicata sem aceite.

III

Porém, antes de adentrar nos aspectos que envolvem a duplicata sem aceite, creio que é necessário retroceder no tempo para proceder ao exame sobre o nascedouro desse título cambiariforme.

Penso que, de um lado, esse título – duplicata sem aceite – ainda está preso aos dispositivos editados para a Letra de Câmbio no Código Napoleônico, de onde se extraem os princípios referentes à apresentação do título ao protesto e, em especial, ao hoje chamado aceite ficto.

De outro lado, o legislador pátrio amalgamou do sistema francês as concepções oriundas da ordenança germânica de 1848, tendo estas sido introduzidas no sistema positivo brasileiro através do Decreto n. 2.044, de 31 de dezembro de 1908.

No período em que, em matéria cambiária, vigorou o sistema francês no direito brasileiro, o que chama a atenção do pesquisador é a figura do aceite virtual ou tácito de que nos fala José da Silva Lisboa – Visconde de Cayru: Ainda que por via de regra os aceites das letras devam ser expressos ou por escrito, contudo casos há em que por geral estilo são havidos por obrigatórios e do mesmo efeito certos atos do sacado, como se expressamente declarasse na letra o consentimento e admissão da mesma: tais atos se chamam “aceites virtuais”, presumidos, ou interpretativos; porque se considerarão subentendidos, ainda que o sacado não manifestasse explicitamente a sua intenção de cumprir o saque1.

Do sistema germânico, o que se nos apresenta de relevante diz com as figuras da incorporação e abstração. E mais, que a vinculação cambiária só acontece mediante o aceite no título correspondente. Neste passo, nunca é demais referir a lição de Vivante que, alterando o conceito anteriormente emitido por Brunner, afirmou ser o título de crédito o instrumento necessário ao exercício do direito literal e autônomo nele mencionado. Portanto, o direito só vale pelo que nele próprio se contém e não pelo que dele está fora. Daí o curioso da duplicata sem aceite.

Ora, quando o sacado não apõe no título seu aceite, a vinculação cambiária – entre sacado e sacador – é provada através de elementos que estão fora do título. Os elementos para configurar tal aceite ficto estão na Lei das Duplicatas em seu art. 15, alterado pela Lei n. 6.458, de 1º de novembro de 1977.

IV

Pouco após a edição da Lei n. 6.458/77, o Professor Lélio Candiota de Campos teve publicado no Jornal do Comércio2 trabalho a respeito de duplicata sem aceite, com vistas à interpretação da lei. No citado trabalho, encontramos os fundamentos necessários à exposição que mais adiante faremos sobre o tema em questão.

Assim, de forma destacada, trataremos a seguir das obrigações legais após o saque da duplicata.

Guarde-se, em primeiro lugar, que, para haver a literalidade, deverá a duplicata preencher os requisitos enumerados no § 1º do art. 2º da Lei n. 5.474/68. Segue-se que, logo após seu saque, deverá a duplicata ser apresentada, ao devedor, no prazo de 30 dias, podendo tal apresentação ser realizada diretamente pelo vendedor ou por seus representantes ou por intermédio de instituição financeira ou, ainda, por procuradores ou correspondentes. Frise-se, igualmente, que, se não feita pelo vendedor, as pessoas referidas terão o prazo de 10 dias, tão logo recebam o papel, para a realização do ato de apresentação.

Tudo isso, sem sombra de dúvida, como decorrência lógica do que está disposto no art. 6º e seus parágrafos, levando-se a afirmar que na duplicata só poderá constar uma praça de pagamento, e esta sempre será a do sacado (ao propósito da apresentação da letra de câmbio, veja-se o art. 21, Anexo I do Dec. n. 57.663, de 24 de janeiro de 1966). Recebida a cártula, deverá o sacado, dentro de 10 dias, contados da data da apresentação, devolver o título aceito ou remetê-lo até a data do vencimento, comunicando tal retenção e o aceite ao apresentante. Ou, por último, devolver o título com a declaração por escrito dos motivos da falta de aceite (art. 7º) que, de forma exemplificativa, vêm enumerados na lei (art. 8º).

Tenha-se, pois, que a apresentação do título é obrigatória. Porém, à primeira vista, parece que, em face do mandamento do art. 6º, só se está a permitir que a apresentação do título seja efetuada pelas pessoas nele mencionadas, descartada, assim, a possibilidade de o título ser endossado antes da apresentação. Essa idéia não é correta, especialmente ante a circunstância de ser a duplicata um título à ordem e de o instituto do endosso relativamente às letras de câmbio do Decreto n. 57.663, de 24 de janeiro de 1966, ser, em toda a sua extensão, aplicável às duplicatas por força do que se contém no art. 25 da Lei das Duplicatas.

De mais a mais, se assim não fosse, o texto legal contém, pelo emprego da expressão poderá, uma faculdade, e não uma imposição, e, assim, além daqueles lá mencionados, outros poderão também recebê-la por endosso pleno, mas com a exigência de apresentá-la ao sacado (aqui se contém o germe do aceite ficto). Primeiramente, a obrigatoriedade se assentou em razões de ordem fiscal; com a transformação do IVC em ICM, desapareceu o interesse fiscal. A obrigatoriedade passou, então, a ser apenas no sentido de que é necessária para posterior configuração do aceite ficto. Veja-se que, a teor da lei cambiária, a apresentação ao aceite é facultativa, podendo até ser proibida (art. 22, Anexo I, do Dec. n. 57.663/66, portanto, não há outra razão de ser da acima mencionada).

Crie-se a hipótese de que a compra e venda que deu origem mediata ao título não tenha sido cumprida ou, se o foi, não atendeu aos prazos e condições ajustados, ou, ainda, a mercadoria remetida era defeituosa. A duplicata aí continua a ser um verdadeiro título de crédito a incorporar o direito?

As relações cambiárias emergentes do título entre endossante e endossatário, ou os possíveis avalistas existentes, ou demais coobrigados, subsistem. E isso mesmo que uma ou mais assinaturas contidas na cambial sejam falsas (ou porque o próprio título sacado não se originou de uma compra e venda mercantil), na conformidade com o art. 7º do Anexo I do Decreto n. 57.663/66, princípio que já constava, aliás, do art. 43 do Decreto n. 2.044, de 31 de dezembro de 1908.

Temos, pois, que em qualquer caso (endosso mandato, ou pleno): 1º) a duplicata, obrigatoriamente, deverá ser apresentada ao sacado e somente poderá ter como praça de pagamento a do sacado no título; 2º) a apresentação do título só poderá ser feita na praça do sacado; 3º) o sacador poderá aceitar, reter ou não aceitar o título, mesmo que este se encontre endossado; e 4º) a recusa do sacado em aceitar o título não prejudica as demais obrigações cambiárias dos demais signatários. Passemos ao exame da ocorrência de inadimplemento da obrigação.

V

O art. 15 da Lei em exame emprestou à duplicata ou triplicata sem aceite os mesmos efeitos de uma sentença judicial, ao considerá-la título executivo extrajudicial, desde que, cumulativamente, estiverem preenchidos certos requisitos, que, por sua vez, conduzem à execução aparelhada.

Antes de examinarmos os requisitos supra referidos, mister é que se explicite a respeito da necessidade, para ter-se a execução aparelhada, de instruir o pedido inicial com uma duplicata ou triplicata (além dos requisitos do inciso II do art. 15).

Diante do contido no § 2º do art. 15 – processar-se-á também da mesma maneira a execução de duplicata ou triplicata não aceita e não devolvida, desde que haja sido protestada mediante indicação do credor ou do apresentante do título nos termos do art. 14, preenchidas as condições do inciso II deste artigo –, é meridiano concluir que, para a execução aparelhada (art. 614, I, do CPC), não é necessário instruir o pedido inicial com a cártula, desde que o protesto tenha sido tirado por indicação do credor; caso contrário, como é lógico deduzir, a duplicata ou triplicata deverá acompanhar o pedido inicial, sob pena de o credor ver fulminada, apenas por esse motivo, sua pretensão.

Examinemos, pois, um a um os requisitos exigidos pelo art. 15, II, da Lei das Duplicatas para termos a execução aparelhada, porém não na ordem lá colocada, mas naquela que entendemos ser a melhor para o estudo proposto.

Iniciemos, portanto, a análise do contido na alínea b do inciso II do art. 15, assim enunciado: esteja acompanhada de documento hábil comprobatório da entrega e recebimento da mercadoria.

Ora, como já visto na exposição introdutória, a duplicata somente poderá ser sacada com base em uma compra e venda mercantil. Inexistindo esta, haverá a responsabilidade penal do sacador do título (art. 26) e impossibilidade de querer-se fazer vincular cambialmente o sacado: o título continua a gerar efeitos cambiais entre sacador e endossatário e os demais que se obrigaram, porventura, no título, mas, jamais, contra o sacado não aceitante.

Quis o legislador, pois, a prova não só da remessa da mercadoria (pelo vendedor ao comprador), como, também, a prova de que ela tenha, efetivamente, sido recebida.

Essa prova poderá ser feita através de documento hábil, tal como o rodapé destacável da nota fiscal (ou nota fiscal-fatura), ou do conhecimento de transporte (não só o que a transportadora emite ao receber a mercadoria, mas, também, aquele que é assinado pelo comprador, ao recebê-la).

Com isso, entendeu o legislador, ficam provados o mandamento do art. 1º da Lei das Duplicatas (existência de uma real compra e venda de mercadorias) e a presunção de inexistência de vícios ou defeitos na mercadoria, o que oportunizaria a sua devolução dentro de 10 dias a contar de seu recebimento, conforme o art. 211 do Código Comercial.

Esta última assertiva abre-nos o caminho para o exame do conteúdo da alínea c do inciso II do art. 15 em comentário, que está assim redigido: O sacado não tenha, comprovadamente, recusado o aceite, no prazo, nas condições e pelos motivos previstos nos arts. 7º e 8º desta Lei.

Assente ficou, também, na parte introdutória, que o vendedor ou endossatário tem a obrigação de apresentar o título, ao comprador, nos 30 dias seguintes a sua criação (art. 6º e seus parágrafos) e que este último poderá recusá-lo no prazo de 10 dias (art. 7º).

Com efeito, no ato de apresentação da cártula, oportuniza-se ao comprador a recusa do aceite, tendo em vista que, no prazo do art. 211 do Código Comercial, devolveu a mercadoria por vício, defeitos e diferenças na qualidade ou na quantidade (art. 8º, II). Também, no prazo de dez dias, poderá recusar o aceite no título, pelos motivos constantes dos incisos I e II do art. 8º, o primeiro dizendo respeito ao negócio jurídico subjacente, em si, e o segundo, ao propósito da liquidez e exigibilidade do documento cartular (diferença nos preços e prazos ajustados).

“Daí – diz o Professor Lélio Candiota de Campos – a importância, agora irrecusável, de exigir do sacado recibo da tempestiva devolução do título ao apresentante da duplicata contra ele irregularmente sacada, nela fazendo mencionar expressamente o fato da recusa do aceite, para futuramente poder estar em condições de comprovar a inexistência do terceiro requisito da execução judicial, e poder assim livrar-se dela, se acaso lhe for movida”3.

E prossegue o ilustre comercialista: “Relevante também é o cuidado que, à sua vez, deve ter o apresentante ao fazer entrega da duplicata para aceite do sacado, a fim de ficar em condições de comprovar a correta apresentação do título e o dia em que isso ocorreu”4.

Eis, pois, mais uma prova que incumbe ao credor realizar, no aparelhamento de sua ação de execução, ou seja, deverá provar que apresentou a duplicata para aceite e que este não foi recusado.

Das maneiras de comprovar-se a apresentação do título sobressaem-se aquelas traduzidas pelo "protocolo bancário" ou qualquer outro documento utilizado pelo credor (livro de protocolo, recibo ou segunda via de carta etc.).

A prova da recusa do aceite é matéria a ser apreciada no exame que segue sobre a alínea a do inciso II do art. 15: “...haja sido protestada”.

As formas de protesto da duplicata sem aceite estão mencionadas no art. 13 e seus parágrafos e são elas: por falta de aceite e de devolução (propositadamente deixamos de mencionar o protesto por falta de pagamento, matéria que examinaremos em tópico à parte).

Uma vez apresentado o título, e devolvido sem justa causa pela falta de aceite, cumpre ao portador da cambial mandar tirar o protesto por falta de aceite, posto que, assim, estará concretizando não só o preenchimento de mais um requisito da alínea anteriormente sob comentário, ou seja, que o aceite não foi recusado.

De outro lado, se o título apresentado não for devolvido, não se extrairá outro (observe o parágrafo abaixo), mas, isso sim, indicar-se-á, em requerimento ao Oficial do Ofício de Protestos de Títulos Cambiários, todos os elementos mencionados no § 1º do art. 2º, solicitando o protesto por falta de devolução da duplicata, conforme o caso, bem como o protesto pela falta de aceite (este último para configurar a existência do requisito de inexistência de recusa do aceite).

A triplicata somente poderá e deverá ser sacada ocorrendo as hipóteses de perda ou extravio da duplicata. Havendo o saque da triplicata, deverá obedecer às mesmas formalidades da duplicata, isto é, percorrer os caminhos que venho apresentando, até o parágrafo supra: é contrário aos ditames da Lei efetuar o saque de uma triplicata e fazê-la circular sem que se tenha percorrido os mesmos caminhos obrigatórios à duplicata.

Assim, diante do que acima ficou assentado, em outras palavras, diante da prova de existência de recusa do aceite, o protesto por falta de aceite, relativamente à duplicata sem aceite, tornou-se, em qualquer caso, obrigatório.

Além das conseqüências legais para os efeitos da execução do ato jurídico “protesto”, não servirá ele para mais nada, salvo para garantir o direito de regresso. Assim dizemos para não surgirem confusões quanto ao ato jurídico “protesto”, especificamente por falta de aceite, criar a presunção de que o título tivesse sido apresentado e, dessa forma, cumprido o requisito primeiro da alínea c antes comentado. A apresentação do título deve ser feita nos 30 dias seguintes ao seu saque e o devedor terá 10 dias para eficazmente o recusar. Isso é cogente. É essa a prova que a lei determina seja feita. Não se diga, jamais, que o simples aponte para ulterior protesto por falta de aceite (cuja resposta deverá ser apresentada dentro de três dias), poderá sobrepor-se ao decêndio ofertado em lei.

O fato de não ter sido exercida a faculdade de protestar o título, por falta de aceite ou de devolução, não elide a possibilidade de protesto por falta de pagamento, é o que dispõe o § 2º do art. 13 da Lei das Duplicatas.

Dessa forma, o protesto por falta de pagamento será, sempre, um complemento.

De outro lado, tal protesto poderá ser tomado como irregular, podendo causar sérias penalidades ao apresentante do título, como veremos mais adiante no exame da ação de execução e do pedido de falência.

Em conclusão, podemos afirmar que, preenchidos todos os requisitos antes apontados, o título de crédito, duplicata sem aceite, passará a contar com um aceite ficto (virtual ou tácito, como o chamou José da Silva Lisboa). O aceite, é verdade, materialmente pode inexistir, mas unindo-se à duplicata os documentos comprobatórios do preenchimento dos requisitos do inciso II do art. 15, tem-se como verificado.

VI

O aceite ficto, porém, somente se concretizará no mundo jurídico no momento em que o portador da duplicata (com execução aparelhada) promover a competente ação de execução.

Em juízo serão apresentados todos os documentos a configurar a certeza, liquidez e exigibilidade (art. 586 do CPC) da obrigação contra o devedor direto, posto que, antes, por si só, no mundo jurídico não tinham esse valor.

Faltando o preenchimento de qualquer um dos requisitos apontados (repita-se, faltando a comprovação da remessa e recebimento da mercadoria ou a prova de apresentação para aceite do título e que este não foi recusado, ou o protesto por falta de aceite ou devolução), inexiste aceite ficto, e, por conseqüência, ação de execução.

Eis o momento oportuno para falar da duplicata sem aceite, protestada por falta de pagamento, com vistas à ação de execução. Em realidade, tirado o protesto por falta de pagamento e promovendo o portador a ação de execução, presentes todos os requisitos legais, o protesto, aí, tornar-se-á eficaz; embora não demonstrada a vinculação cambiária no momento do aponte para protesto, este, se tirado por falta de pagamento será ineficaz.

Agora, se, no momento da execução, faltar qualquer dos requisitos a emprestar o aceite ficto ao título, o protesto continuará irregular e o promovente da ação expõe-se a ser condenado como litigante de má-fé (art. 17, I, do CPC), se restar provado ter o executado devolvido a mercadoria ou, justificadamente, recusado o aceite.

Outro aspecto de virtual importância é o pedido de falência por duplicata não aceita. A mesma Lei n. 6.458/77, que alterou o art. 15 da Lei n. 5.474/68, acrescentou ao art. 1º da Lei de Falências o § 3º, assim redigido: “Para os efeitos desta Lei, considera-se obrigação líquida, legitimando o pedido de falência, a constante dos títulos executivos extrajudiciais mencionados no art. 15 da Lei n. 5.474, de 18 de julho de 1968”.

Data venia, embora princípio de hermenêutica diga que inexiste na lei texto supérfluo ou inoperante5, isso, neste particular, é insustentável. De outra parte é retornar ao sistema vigente até a Lei n. 5.746, de 9 de dezembro de 1929, em que, no parágrafo único do art. 1º, eram enumerados os títulos que aquela lei considerava como executivos.

Ora, o art. 1º da Lei de Quebras diz que todos os títulos líquidos que viabilizam ação de execução legitimam o pedido de falência. Daí, desde que a lei conferiu executibilidade à duplicata não aceita (acompanhada dos documentos necessários ao aceite ficto) conferiu, também, legitimação ao pedido de falência que nela tenha fulcro.

Porém, aqui, um pressuposto a viabilizar o pedido de falência deve ser levado em primordial atenção, qual seja, a demonstração da impontualidade do devedor, para que se presuma sua insolvência, e essa impontualidade, como se sabe, materializa-se através do protesto por falta de pagamento (art. 10 do Decreto-Lei n. 7.661/45).

Podemos, portanto, tomar tudo o que antes foi dito para a ação de execução, acrescentando o protesto por falta de pagamento e, sobre este último ato jurídico, assentar que, se não apresentado no momento do pedido de falência o título acompanhado dos requisitos do inciso II do art. 15, o protesto continuará sendo ineficaz, a justificar a condenação do requerente às penas do art. 20 da Lei de Falências, dada a violência que se encerra em tal pedido.

Por último, cumpre referir que a duplicata não aceita protestada por falta de pagamento não é fato impeditivo do pedido de concordata preventiva, embora a existência da regra expressa do art. 158, IV, da Lei de Falências: “não ocorrendo os impedimentos enumerados no art. 140, cumpre ao devedor satisfazer as seguintes condições: IV – não ter título protestado por falta de pagamento”.

O motivo é simples. Para o título conter aceite ficto, necessário é que a ação de execução tenha sido proposta e que se a instrua com todos os requisitos enumerados no inciso II do art. 15 da Lei das Duplicatas. Como disse antes, o protesto é ineficaz, não existe por si só, somente vindo a existir quando a execução aparelhada contiver o cite-se do Juízo competente.

Certo, pois, se a hipótese supra não aconteceu, não está demonstrada, para os fins e efeitos da falência, vera impontualidade do devedor, a presumir a falência. Antes do ajuizamento da ação inexistem certeza, liquidez e exigibilidade. Sem aceite, repita-se, não há vinculação cambiária a permitir a validade de tal espécie de protesto para qualquer efeito.

Contudo, maneiras existem de tornar o protesto regular, tanto para a ação de execução, para o pedido de falência, como, também, para impedir a impetração de concordata preventiva. Para isso, basta que, ao apresentar o título (ou o requerimento de indicação) para posterior protesto, faça-o acompanhar da prova de remessa e recebimento da mercadoria mais a comprovação da apresentação do título para aceite, aliás, dois dos documentos imprescindíveis e mais fortes a emperrar o aceite ficto ao título.

VII

Em face do até aqui exposto, cumpre, mais uma vez, chamar a atenção para o que está ocorrendo nos dias de hoje: a desobediência aos termos da lei vigente.

Como é sabido, a maioria das duplicatas são apresentadas por intermédio dos bancos, seja por terem recebido endosso mandato, seja por qualquer outra forma que tomam os contratos bancários.

Os bancos, todavia, não se dão mais ao trabalho de encaminhar as cártulas aos sacados; enviam um documento eletrônico que, de forma nenhuma, supre a apresentação da duplicata segundo os ditames da Lei. Isso equivale a dizer que inexistirá ação de execução para  tal duplicata.

Mas não são só os bancos que estão praticando esse ato contrário à lei; quase a totalidade daqueles a quem é dado o direito de sacar duplicatas assim estão procedendo.

Nesse passo, não cabe modificação na Lei autorizando a apresentação da cártula através de documento eletrônico, pois isso é macular todos os princípios que orientam os títulos de crédito; é reduzir a duplicata a um título sem valor, como já está acontecendo com o cheque.


1. José da Silva Lisboa. Princípios de Direito Mercantil e Leis de Marinha. 6. ed., Rio de Janeiro: Tipografia Acadêmica, 1874, t. II, Tratado Quarto. p. 382.

2. Jornal do Comércio, RS, edição de 1º de março de 1978, p.18.

3. Op. et loc. cits.

4. Op. loc. et cits.

5. Carlos Maximiliano. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 9. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1979. p. 250/251, n.307.

 

 

Retirado de: www.saraivajur.com.br