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Cesar Amendolara
Advogado militante na área de Direito
Empresarial no Escritório Velloza, Girotto e Lindenbojm em São Paulo, formado
pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, mestrando em direito comercial
pela mesma faculdade, membro da Comissão Jurídica do Instituto Brasileiro dos
Executivos de Finanças (IBEF/SP) e membro da Comissão dos Novos Advogados do
Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP).
A modernização
da CVM
Quando
adentramos na seara do direito comercial e, mais modernamente, do direito
empresarial e financeiro, observamos que a principal fonte da criação das
normas, senão a única, são os usos e costumes. As leis, sobretudo as de
conteúdo econômico, tendem a expressar as necessidades e anseios de sua época.
A Lei n. 6.385, de 7 de dezembro de 1976, que instituiu a Comissão de Valores
Mobiliários (CVM), surgiu num contexto histórico em que as atividades
produtivas do País eram, essencialmente, voltadas para o mercado interno, e os
investimentos no mercado de valores mobiliários estavam ainda se iniciando e
tinham papel secundário para o desenvolvimento e manutenção de uma empresa.
A conjuntura
econômica atual, entretanto, é outra. Com a abertura dos mercados e a expansão
do capitalismo, desenvolveu-se uma cultura de investimentos em que a captação
de recursos no mercado de valores mobiliários passou a ser fundamental para a
vida de muitas empresas. Por sua vez, o fortalecimento da atividade empresarial
tornou-se uma grande alavanca para o desenvolvimento econômico de um país.
Nesse contexto,
há muito se vinha defendendo a necessidade de reforma das Leis n. 6.404/76 (Lei
das Sociedades por Ações) e 6.385/76, a fim de adaptá-las à nova realidade
econômica. Pleiteava-se a introdução de mecanismos legais que estimulassem os
investimentos no Brasil, mediante o aumento das garantias e da proteção legal
conferida aos investidores, em especial aos minoritários.
Finalmente, as
referidas leis foram objeto de alterações, com a promulgação, em 10 de outubro
de 2001, da Lei n. 10.303, do Decreto n. 3.995 e da Medida Provisória n. 8, a
qual foi convertida na Lei n. 10.411, de 26 de fevereiro de 2002. As alterações
da Lei n. 6.385/76 visaram, primordialmente, garantir à CVM o exercício de uma
atividade disciplinar e fiscalizadora efetivamente autônoma e independente –
alterando sua natureza jurídica e ampliando a sua esfera de competência – bem
como assegurar o princípio da transparência no mercado de valores mobiliários.
Muitos dispositivos objetivaram, ainda, a regulamentação de situações de fatos
que já ocorrem atualmente no mercado, mas não existiam no momento da elaboração
da lei.
A nova redação
do art. 5º da Lei n. 6.385/76 passou a definir a CVM como uma entidade
autárquica em regime especial, estabelecendo expressamente que a
mesma terá as seguintes características: personalidade jurídica e patrimônio
próprios; autoridade administrativa independente; ausência de subordinação
hierárquica, mandato fixo e estabilidade de seus dirigentes; e autonomia
financeira e orçamentária. Podemos observar que a maioria dessas
características já se encontra inserida no próprio conceito de autarquia,
trazido pelo Decreto–Lei n. 200/67, e corroborado por grande parte da doutrina
moderna, qual seja: “serviço autônomo, criado por lei, com personalidade
jurídica, patrimônio e receita próprios, para executar atividades típicas da
Administração Pública, que requeiram, para seu melhor funcionamento, gestão
administrativa e financeira descentralizada”.
Por sua vez,
consideram-se autarquias de regime especial aquelas que possuem maiores
privilégios e autonomia em comparação às demais, dentro dos limites
constitucionais. Diante de tal conceito, consideramos que esse novo caráter da
CVM, de autarquia de regime especial, decorre da ausência de subordinação
hierárquica em relação a outros órgãos da administração pública e do mandato
fixo dos seus dirigentes, características estas diferenciadas em face das
autarquias de regime comum.
Embora continue
vinculada ao Ministério da Fazenda – vínculo este próprio das entidades
autárquicas, em razão do controle estatal exercido sobre as mesmas – a CVM
adquiriu autonomia em relação àquele órgão, passando a ter competência,
inclusive, para editar seu próprio regimento interno, sem necessidade de prévia
aprovação do Ministério da Fazenda.
Da mesma forma,
a CVM tornou-se autônoma em face do Conselho Monetário Nacional (CMN). Não mais
cabe a este órgão fixar os procedimentos referentes aos processos
administrativos instaurados pela CVM, os quais seguirão os critérios fixados
pela própria CVM, segundo as disposições dos novos parágrafos inseridos no art.
9º da Lei n. 6.385/76. A CVM adquiriu, ainda, autonomia para a edição de normas
gerais, não havendo mais necessidade de prévia aprovação do CMN. Outra
alteração que reflete essa autonomia é a supressão do antigo § 2º do
art. 6º, o qual previa que o Presidente da CVM deveria ter assento, com direito
de voto, no CMN.
Relevantes,
também, para a garantia da independência e autonomia da CVM foram as inovações
concernentes ao mandato dos seus dirigentes. Fixou-se um prazo determinado de 5
anos, vedada a recondução, sendo que 1/5 do colegiado deve ser renovado a cada
ano. A demissão, que antes podia ser realizada a exclusivo critério da
autoridade administrativa (ad nutum), agora deverá observar critérios
objetivos fixados na lei. Os dirigentes somente poderão ser demitidos em quatro
hipóteses: renúncia; condenação judicial transitada em julgado; processo
administrativo disciplinar, a ser instaurado pelo Ministro de Estado da Fazenda
e julgado pelo Presidente da República; e inobservância dos deveres e
proibições inerentes ao cargo de Presidente ou Diretor. Neste último caso,
entendemos que cabe a observância das disposições da Lei das Sociedades por
Ações, quanto aos deveres e responsabilidades dos administradores (dever de
diligência, de lealdade, de informar).
No que tange
aos novos poderes atribuídos à CVM, podemos verificar que, em alguns casos, não
havia previsão legal para os mesmos, em razão da própria inexistência da
situação de fato quando da elaboração da Lei n. 6.385/76. Neste caso, podemos
destacar: (i) a ampliação, ainda que não taxativa, do rol dos valores
mobiliários; (ii) a regulamentação das Bolsas de Mercadorias e Futuros,
do mercado de derivativos, das entidades do mercado de balcão organizado e
entidades de compensação e liquidação de operações com valores mobiliários; (iii)
o exame de programas eletrônicos e arquivos magnéticos, ópticos e os papéis de
trabalho de auditores independentes; e (iv) a autorização por parte da
CVM das atividades de compensação e liquidação de operações com valores
mobiliários.
Em outros
casos, a CVM passou a ter atribuições que antes eram reservadas ao CMN. Caberá
à CVM, e não mais àquele órgão, definir os tipos de instituição financeira que
poderão exercer atividades no mercado de valores mobiliários. Além disso, com a
alteração do § 2º do art. 22, ficou estabelecido que as normas editadas pela
CVM, relativas ao relatório de administração e demonstrações financeiras, aos
padrões de contabilidade e relatórios e pareceres de auditores independentes,
serão aplicadas às instituições financeiras, no que não forem conflitantes com
as normas do Banco Central do Brasil. Entendemos que realmente não haveria
justificativa para a manutenção de tais atribuições ao CMN, visto que a CVM tem
maior conhecimento das particularidades do mercado de valores mobiliários.
Outro aspecto
importante, dentre as alterações sofridas pela Lei n. 6.385/76, é a sua
adequação ao princípio da transparência no mercado de capitais. Anteriormente a
CVM devia guardar sigilo das informações obtidas no exercício de seu poder de
fiscalização. Com a nova redação do § 2º do art. 8º, ficou estabelecido que
todos os documentos e autos de processos administrativos instaurados pela CVM
serão de acesso público, ressalvados aqueles cujo sigilo seja imprescindível
para a defesa da intimidade ou do interesse social, ou cujo sigilo esteja
assegurado por expressa disposição legal.
Da mesma forma,
com a introdução do § 5º no art. 9º, ficou estipulado que serão públicas as
sessões de julgamento do colegiado, nos processos administrativos relativos a
atos ilegais e práticas não eqüitativas de administradores, membros do conselho
fiscal e acionistas das companhias abertas, dos intermediários e dos demais
participantes do mercado, podendo, contudo, ser restringido o acesso de
terceiros em razão do interesse público envolvido.
As ressalvas
constantes dos dispositivos acima mencionados, que restringem a publicidade em
razão da “defesa da intimidade”, “interesse social” e “interesse público”, não
trazem requisitos objetivos. Esse caráter subjetivo pode dar margem a limites
ao acesso público muitas vezes maior do que o devido.
Ainda no campo
da ampliação dos poderes fiscalizatórios da CVM, no âmbito do mercado de
valores mobiliários destacamos a norma introduzida no § 4º do art. 9 da Lei n.
6.385/76. Ao estabelecer que, na apuração de infrações da legislação do mercado
de valores mobiliários, a CVM deverá dar prioridade às infrações de natureza
grave, cuja apenação proporcione maior efeito educativo e preventivo para os
participantes do mercado, mais uma vez a lei estabeleceu critérios eivados de
um perverso subjetivismo.
Quero crer que
o espírito do legislador, ao estipular o referido dever de prioridade – que em
princípio se me apresenta benéfico, não seja utilizado para que interesses
contrários ao sentido da norma se sobreponham para definir quais são as
infrações de “natureza grave”.
Entendo que a
falta de objetivismo da regra enseja uma discricionariedade aos dirigentes da
CVM, aumentando-lhes a responsabilidade na tarefa de efetivamente termos um
mercado de valores mobiliários fiscalizado de forma transparente. Esperemos,
pois, que os homens, falíveis por essência, não subvertam o espírito do
legislador através da lacuna subjetiva por este último deixada.
Finalmente, a
Lei n. 6.385/76 passou a definir como crime a manipulação do mercado, o uso
indevido de informação privilegiada e o exercício irregular de cargo,
profissão, atividade ou função. Embora tais condutas já pudessem se inserir em
tipos penais gerais existentes, como, por exemplo, o estelionato (art. 171 do
Código Penal) e o exercício ilegal de profissão (art. 47 da Lei das
Contravenções Penais), a criminalização específica das condutas, apesar de
válida, por si só, não seria a fonte inibidora de práticas irregulares, mas sim
a fiscalização efetiva a ser realizada pela “nova” e mais poderosa CVM.
Podemos dizer
que, embora não tenha abrangido todas as alterações reivindicadas, e, ainda,
tenha carecido de objetividade em alguns pontos, a reforma da Lei n. 6.385/76,
de uma maneira geral, foi positiva. Um órgão fiscalizador mais efetivo sempre
será um passo para o fortalecimento do mercado. Tal fato tende a desencadear o
crescimento de investimentos, da atividade empresarial, da produção, dos
empregos, e, enfim, do próprio País.
Retirado de: www.saraivajur.com.br