A Desconsideração da Pessoa Jurídica como Instrumento de Combate à Fraude e ao Abuso de Direito
Josivaldo Félix de Oliveira
Sumário : 1. Introdução. 2. Origem do instituto. 3. Aplicação no Direito norte-americano. 4. Aplicação no Direito brasileiro. 5. Pressupostos fáticos de aplicabilidade do instituto pelo judiciário. 6. Conclusão.
"O espirito do comércio produz nos homens um acentuado sentido de justiça exata, oposto de um lado à rapinagem e de outro à negligência dos próprios interesses." (Monstesquieu).
1. INTRODUÇÃO
Desde
priscas eras que o mundo jurídico, e porque não dizer o
mundo dos negócios, vêm se preocupando com o crescente
número de fraudes perpetradas por inescrupulosos encobertos
sob o manto da incomunicabilidade da personalidade da pessoa
jurídica, com a do sócio ou diretor.
Não
são raros os casos em que uma pessoa abre uma firma fictícia
em nome de interposta pessoa - "laranja"-, ficando por trás
da empresa, munido de uma procuração Pública com
poderes amplos e ilimitados de gestão, passando então a
aplicar os mais variados golpes na praça, de modo que, uma vez
executada a empresa, descobre-se que a mesma só existe de
direito, mas de fato não passa do que se convencionou chamar
de "fantasma", desprovida de qualquer patrimônio
garantidor de suas dívidas, geralmente contraídas pelo
espertalhão gestor, mas que na verdade é o seu mentor e
proprietário, beneficiário maior das vultuosas quantias
desviadas em prol de seu patrimônio, inalcançado quando
do acionamento judicial da empresa "fantasma", por ser
defeso, ex-vi do comando normativo do artigo 20 do Códex
Civil.
Foi com essa preocupação e, ante à
necessidade de se encontrar mecanismos de defesa, que se inseriu no
mundo jurídico a teoria da "desconsideração
da pessoa jurídica", também conhecida como
"disregard doctrine", ou ainda, como chamam os argentinos,
"teoria de la penetración".
2. ORIGEM DO INSTITUTO
A
desconsideração da pessoa jurídica, é
indubitavelmente uma das mais revolucionárias e expressivas
tendências experimentadas pelo Direito, no século XX.
O
mundo jurídico rende homenagens à sistematização
do tema, aos estudos desenvolvidos pelo alemão Rolf Serick, em
monografia através da qual concorreu pela docência da
Universidade de Tubigem, na década de 1950. Todavia, foi
dentro dentro do sistema jurídico anglo-americano que exsurgiu
as primeiras manifestações que levaram à teoria
da "disregard of legal entity", ou como alguns preferem
chamá-la "disregard doctrine", através da
qual, o juiz pode, em casos concretos, desconsiderar a pessoa
jurídica em relação à pessoa de quem se
oculta sobre ela e que a utiliza fraudulentamente.
3. APLICAÇÃO NO DIREITO NORTE-AMERICANO
Nos
Estados Unidos da América do Norte, a "Disregard of legal
entity", se consolidou, ingressando na legislação
daquele povo de forma definida e esquematizada. Concedeu ela aos
juizes norte-americanos, a ferramenta necessária e suficiente
para atingir a responsabilidade pessoal de empresários
aventureiros, quando viessem a causar prejuizos a outrem em benefício
próprio, utilizando-se para tanto de uma pessoa jurídica
que lhe pertencia.
O Jurista norte-americano Wormser, no ano
de 1912, procurando externar um conceito para o instituto, já
professava com muita propriedade que, "quando o conceito de
pessoa jurídica (corporate entity) se emprega para defraudar
os credores, para subtrair-se a uma obrigação
existente, para desviar a aplicação da lei, para
constitui ou conservar monopólio ou para proteger velhacos ou
delinqüentes, os tribunais poderão prescindir da
personalidade jurídica e considerar que a sociedade é
um conjunto de homens que participam ativamente de tais atos e farão
justiça entre pessoas reais". Hodiernamente, os tribunais
norte-americanos, ampliaram o conceito, aplicando o instituto quando
a consideração da pessoa jurídica levar a um
desfecho injusto. Partindo, assim, do conceito de fraude, conforme a
concepção de Wormser, alargou-o, para alcançar
da mesma forma as situações em que porventura ocorrer
"abuso de direito".
4. A APLICAÇÃO NO DIREITO BRASILEIRO
Na
doutrina pátria, coube ao comercialista Rubens Requião
(1), pioneiramente abordar o tema entre nós, em conferência
realizada na Faculdade de Direito da Universidade do Paraná,
publicada, posteriormente na RT 410/12.
Merece também
ser referenciados os trabalhos doutrinários publicados por
Lamartine Corrêa de Oliveira (2), e por Fábio Ulhoa
Coelho (3) .
O instituto em comento foi recepcionado pela
legislação especifica, em diferentes.
A antiga
Lei das Sociedades Anônimas (DL 2.627 de 1940), individualiza a
responsabilidade dos seus administradores quando agem com dolo, culpa
ou com violação da lei ou dos estatutos (art. 121). Por
outro lado, o comando do artigo 158 da atual Lei das Sociedades
Anônimas (Lei Nº 6.404 de 15.12.76), igualmente estabelece
que o administrador responde civilmente pelos prejuizos que causar na
gestão da empresa, quando proceder com culpa ou dolo, ou com
violação da lei ou estatuto.
No Código
Tributário Nacional, (Lei Nº 5.172/66), encontramos no
comando do artigo 134, VII, que " os sócios em casos de
liquidação da sociedade de pessoas, respondem
solidariamente pelos débitos fiscais da empresa".
Igualmente, os gerentes, diretores ou representantes das pessoas
jurídicas de direito privado são pessoalmente
responsáveis pelos créditos correspondentes a
obrigações tributárias, resultantes de atos
praticados com excesso de poderes ou infração de lei,
contrato social ou estatuto (cf. art. 135, II).
Igualmente,
recepcionou-se a teoria, na Lei 6.024, de 13.3.74, que, em seus arts.
36 e 40, declara a indisponibilidade dos bens pessoais dos
administradores das instituições financeiras em
liquidação extrajudicial ou falência, criando
responsabilidade solidária para tais administradores, até
que se cumpram as obrigações por eles assumidas em nome
da pessoa jurídica.
Esxurge, forte, ainda, no artigo 18
da Lei do Abuso do Poder Econômico (Lei Nº 8.884/94),
sendo também recepcionada pelo Código de Defesa do
Consumidor ao comandar em seu artigo 28 "verbis":
"Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração."
A
jurisprudência nacional, inobstante ainda ser escassa sobre o
tema, mas, forçoso é reconhecer-se, que, paulatinamente
vem se firmando na recepção do instituto. Tanto é
assim, que o Supremo Tribunal Federal, ao dirimir querela sobre o
poder da "holding" em relação à
alienação de ações da subsidiária,
invocou a doutrina americana da desconsideração da
pessoa jurídica (cf. RE 88.591, RTJ 93/320).
Também,
julgando o RHC 54.411, reconheceu a responsabilidade do diretor de
fato que se oculta atrás da nomeação de
"homem-de-palha" para o cargo de diretor, o que,
evidentemente, nada tem a ver com a "disregard doctrine",
mas que serve para demonstrar que mesmo no Brasil a disposição
prevista no artigo 20, caput, do Códex Civil, atualmente, não
é absoluta, principalmente quando ocorrer fraude, tanto que o
Pretório Excelso, nesse caso, transferiu a responsabilidade
para o autor da fraude (RTJ 78/752) (4).
Indubitavelmente, na
hipótese, o STF, aplicou, ao caso, a teoria norte-americana da
"dummy corporation".
Outro caso interessante citado
por João Casillo em artigo publicado na RT - 528, foi julgado
pelo Tribunal de Alçada Civil de São Paulo (RT
418/213), tem a sua ementa assim redigida: "Sociedade comercial
- Marido e mulher - Nulidade - Embargos de terceiro - improcedência
- Recurso improvido".
A embargante recorrente alegou que
seus bens não poderiam ser penhorados por dívida da
sociedade. E o acórdão entendeu que sim, porque a
sociedade limitada entre marido e mulher seria nula. Seria nula
"porque tal sociedade visa à modificação do
estado, que a lei estabelece para a própria sociedade
conjugal, com o objetivo de não envolver todo o patrimônio
do casal nos azares do comércio". Este entendimento nada
mais está querendo dizer do que: a sociedade entre marido e
mulher caracterizaria uma fraude à lei (modificação
de um regime de bens, por via travessa que a lei não permite).
E, neste caso, a sociedade não é levada em
consideração, podendo o credor agir contra os bens dos
sócios (5).
5. PESSUPOSTOS DE APLICABILIDADE DA DOUTRINA PELO JUDICIÁRIO.
"A
disregard doctrine", como já se disse linhas supra,
surgiu da necessidade de se encontrar mecanismos de proteção,
contra o mau uso da sociedade mercantil.
A autonomia
patrimonial decorrente do comando do artigo 20 do Código
Civil, ou seja, a dualidade da personalidade jurídica da
sociedade mercantil e de seu sócio tem sido exploradas para a
manipulação de fraudes várias ou abuso de
direito. Quando tal acontece, outro caminho não há, que
não seja a desconsideração da pessoa jurídica
para se alcançar o fraudador ou abusador do direito.
Os
casos de aplicação do instituto são ainda
ampliados, na hipótese de falências, estado de
insolvência, encerramento ou inatividade da sociedade
mercantil, tudo provocado por má administração.
É bem verdade, que a legislação pertinente ao
instituto, mas precisamente o comando normativo do artigo 28 do
Código de Defesa do Consumidor, refere-se apenas à
situação em que a vítima seja um consumidor, ou
quando se cuidar de crime contra a ordem econômica. Todavia, o
aplicador do direito, pelo princípio da analogia e, obedecido
o Due Process of law, pode estender a desconsideração
da personalidade jurídica para outras áreas similares,
e até mesmo em situações falimentares.
De
bom alvitre lembrar, que a aplicação da "disregard
doctrine", não é regra absoluta, pois encontra
limites quando do exercício da atividade jurisdicional. É
o que leciona Fábio Ulhoa Coelho, ao discorrer que, "somente
quando a pessoa jurídica for utilizada para a realização
de uma fraude ou abuso de direito é que o juiz está
autorizado a ignorá-la. O simples prejuízo de terceiros
em razão da limitação da responsabilidade dos
sócios pelas obrigações sociais nunca será,
por si só, fundamento para a desconsideração.
Sem elemento subjetivo, intencional, destinado a ocultar a ilicitude
atrás da pessoa jurídica, não há como
superar a autonomia patrimonial que a caracterize. Se inexiste fraude
ou abuso de direito, a personalização da sociedade,
associação ou fundação deve ser
amplamente prestigiada. (6)
Não é diferente o
pensamento de Rubens Requião, para quem, "diante do abuso
de direito e da fraude no uso da personalidade jurídica, o
juiz brasileiro tem o direito de indagar, em seu livre convencimento,
se há de consagrar a fraude ou abuso de direito, ou se deve
desprezar a personalidade jurídica, para, penetrando em seu
âmago, alcançar as pessoas e bens que dentro dela se
escondem para fins ilícitos e abusivos". (7)
Outro
pressuposto a ser observado na aplicação do instituto,
é o fato de que, no caso concreto, não há
supressão da sociedade, nem tão pouco se considera ela
nula. Apenas, em casos especiais, declara-se ineficaz determinado
ato, ou se regula a questão de modo diverso das regras
habituais, dando mais realce à pessoa do sócio ou
gestor do que à sociedade.
Analogamente, demonstrada a
contradição entre o Códex Civil e a legislação
que lhe é subseqüente, impõe-se a modificação
daquele, de maneira que, mantendo-se a personalidade própria e
autônoma da pessoa jurídica, se introduza, todavia, uma
exceção à regra, quando presente se fizer a
fraude ou abuso do direito, para, então, se desconsiderá-la,
inquestionavelmente, em relação a quem dela se serve
fraudulentamente ou abusivamente.
6. CONCLUSÃO
De
acordo com os ensinamentos doutrinários, a legislação
pátria e o acervo jurisprudencial, aplicáveis ao tema
em comento, podemos concluir que:
a) A "disregard of legal entity" é de grande alcance e eficiência para impedir o abuso e as fraudes lato sensu;
b) O instituto deve ser aplicado apenas nos casos concretos;
c) Só deve ser invocada quando os sócios e/ou gestores utilizarem a sociedade com má-fé, comprovando-se a fraude ou abuso de direito ou ainda afronta à lei;
d) A responsabilidade do sócio na aplicação do instituto é ilimitada.
(1) REQUIÃO,
Rubens. - Aspectos Modernos de Direito Comercial - Saraiva -, São
Paulo, 1977.
(2) OLIVEIRA, Lamartine Corrêa. - A dupla face
da pessoa jurídica - Saraiva -, São Paulo.
(3)
COELHO, Fábio Ulhoa. - A desconsideração da
Personalidade Jurídica - Revista dos Tribunais -, Forense, São
Paulo, 1989.
(4) LIMBORÇO, Lauro - "DISREGARD OF LEGAL
ENTITY" - Artigo publicado na RT - 579 , p. 27.
(5) CASILLO,
João - A DESCONSIDERAÇÃO DA PESSOA JURIDICA -,
Artigo publicado na RT 528, p. 39 - São Paulo, 1979.
(6)
COELHO, Fábio Ulhoa - A desconsideração da
Personalidade Jurídica - Forense - São Paulo, 1989.
(7)
REQUIÃO, Rubens - Aspectos Modernos de Direito Comercial, p.
70 - Saraiva -, São Paulo, 1977.
Josivaldo
Félix de Oliveira
Juiz de direito e professor da ESMA
Retirado de :http://www.ufsm.br/direito/artigos/comercial/desconsideracao.htm