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Revisão de contratos ante a variação cambial

e a responsabilidade civil do Banco Central do Brasil.

SENOMAR TEIXEIRA JÚNIOR

Com o aumento do dólar verificado a partir da modificação do sistema cambial do Banco Central do Brasil, no mês de janeiro de 1999, inúmeras repercussões se operaram na realidade da economia brasileira, mormente com o descontrole das taxas de câmbio e a sua flutuação a níveis extratosféricos.

Um dos fatos que mais chamou a atenção foi a situação de extrema desvantagem em que se situaram alguns consumidores que celebraram contratos elegendo a variação cambial como indexadora do valor dos créditos contratados. Comumente, operações de financiamento de bens de consumo importados se arrimaram nesta prática.

Prima facie, acenaram diversos juristas com a possibilidade de que esses consumidores recorressem ao Diploma de Proteção ao Consumidor, a Lei 8.078/90, para rever tais contratos.

De fato, o inciso V, do artigo 6º, do referido Diploma, no capítulo que estipula os direitos básicos do consumidor, preceitua que:
 
 

ART.6 - São direitos básicos do consumidor:

I - Omissis;

II - Omissis;

III - Omissis

IV – Omissis

V - a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas;
 
 

Em verdade, essa norma vem a positivar a teoria da imprevisão, ou cláusula "rebus sic stantibus", que já vem sendo proclamada nos Tribunais como regra para a hipótese de alteração, entre o momento do contrato e o do seu cumprimento, das condições que fundamentaram o encontro de vontades dos contratantes, sempre que houver quebra do equilíbrio entre ambos.

É de se verificar que esse dispositivo é um avanço incomensurável do direito pátrio, já que na lembrança de Orozimbo Nonato (RF 142, p.513-7) "não se encontra no Código Civil qualquer texto, qualquer dispositivo legal específico que consagre como regra dominante o princípio expresso na fórmula da cláusula rebus sic stantibus, embora ele se vá insinuando, direta ou indiretamente, na lei e na jurisprudência, por imposição da própria necessidade de humanização e moralização do direito".

Tal cláusula é fruto da ontologia jurídica, onde diversos cientistas do direito já se debruçaram a estudar a fenomenologia do poder vinculante dos contratos. Em todo o mundo, juristas como Sailleles, Ripert e tantos outros, desenvolveram estudos neste sentido. Da doutrina pátria destacamos Orlando Gomes, quando pontificou o seguinte entendimento:

"Na Justificação moderna da relatividade do poder vinculante do contrato, a idéia da imprevisão predomina. Exige-se que a alteração das circunstâncias seja de tal ordem, que a excessiva onerosidade da prestação não tenha podido ser prevista" (in Contratos, Orlando Gomes – 2ª edição – Forense – pag. 39)

No presente, quando a desvalorização do Real frente ao dólar teve efeito devastador na realidade econômica dos contratos fixados na moeda norte-americana, em razão de se dar em um ambiente de inflação quase que inexistente, a revisão de tais pactos é inevitável, pois estão presentes os pressupostos de sua ocorrência. Senão vejamos: a)os contratos estipularam o cumprimento futuro de uma obrigação ajustada num determinado momento onde condições de estabilidade da moeda norte-americana era regra pelo sistema de banda cambial do Banco Central do Brasil; b) fato superveniente à contratação (abolição do sistema de bandas cambiais), que não poderia ser previsto, deu-se pela decisão política do Governo Federal/ BACEN de não mais intervir no sistema cambial do mercado financeiro; c) essa alteração do cenário econômico quebrou o equilíbrio entre as partes contratantes, tornando indubitavelmente oneroso para o consumidor a manutenção do dólar como indexador das suas obrigações futuras se comparado com qualquer outro índice de correção monetária aceito pelo direito brasileiro, a exemplo do IPC-FGV, UFIR, etc. .

Não há como negar que é a hipótese de aplicação do dispositivo legal em tela que permite ao consumidor a revisão da cláusula de indexação pelo dólar. Entretanto, a justiça de tal revisão reclama também a aplicação de outro indexador, para que não se dê o enriquecimento ilícito do consumidor com a ausência de correção monetária sobre as obrigações futuras. Em verdade, não se pode simplesmente rever tais cláusulas abolindo os mecanismos de manutenção do valor da obrigação, a providência cabível é a substituição de índices.

Mas o presente estudo busca ir mais além do alcance do entendimento cartesiano até aqui exposto. Sob duas teses, em princípio desenvolvidas nesse cenário. Quais sejam.

A primeira tese, de que se deve distinguir, para justa aplicação da cláusula rebus sic stantibus positivada no inciso V, do art. 6º, da Lei 8.078/90, os contratos que elegem o dólar como indexador ou fator de correção monetária sem relação direta com o seu objeto e aqueles que essencialmente têm o seu objeto relacionado com o câmbio, em razão de obrigação correlata assumida no exterior.

A segunda tese, de maior audácia, mas não menos arrimada no direito vigente, de que aos prejudicados pela liberação do câmbio, com a revisão das cláusulas de indexação, cabe a pretensão de buscar ressarcimento por dano material, contra o Banco Central do Brasil, em razão deste haver abolido o sistema de bandas cambiais que era um dos pilares da proposta da atual administração, no chamado Plano Real.

Em relação à distinção da natureza dos contratos que estamos sugerindo, cumpre-nos estabelecer melhor a dicotomia doutrinária que propomos. De um lado, existem os contratos que estabelecem a variação do dólar quantificada pela taxa de câmbio (ou qualquer outra moeda estrangeira), entre a data da contratação e o cumprimento da obrigação contratada, como fator de correção monetária ou indexação do valor da obrigação objeto do pacto contratual, mas que seu objeto não diz respeito diretamente a obrigações assumidas no exterior. Os contratos de financiamento de compra e venda de bens de consumo no mercado interno, por exemplo.

De outro lado, existem os contratos que elegem formalmente a moeda estrangeira como fator de indexação, mas que têm seu objeto diretamente relacionado com obrigações assumidas no exterior. São exemplos os contratos de adiantamento de câmbio (Lei 4.728/65), financiamento de exportação, captação de recursos do exterior (Lei 4.131/62 ou Resolução nº63, de 21.08.1967, do Banco Central do Brasil), de serviços de desembaraço aduaneiro (Decreto Lei 4.014/42), contratos de compra e venda de comércio exterior.

A distinção é essencial ao nosso ver para a aplicação do dispositivo legal em comento do Código de Defesa do Consumidor ( art. 6º, V, da Lei 8.078/90), ou ainda da cláusula rebus sic stantibus àqueles que não se caracterizem como consumidores.

Fundamenta nosso entendimento, o fato de que as obrigações que têm o dólar (ou qualquer outra moeda estrangeira) como indexador em razão da relação direta de seu objeto, ou seja, que se relacione ao cumprimento de obrigação assumida no exterior, está referendada pelo nosso sistema jurídico e é convenção do direito internacional privado.

É mister salientar, que desde os artigos 33, 431 e 698 da Lei 556, de 15.06.1850, já admitia o direito pátrio a validade das obrigações assumidas em moeda estrangeira por convenção da relação comercial que interagia com os mercados estrangeiros. Ou ainda, mais recentemente, o Decreto nº 57.663/66 que adotou o artigo 41 da Lei Uniforme de Genebra, estipulando a paridade cambial para o câmbio.

Diversos contratos dessa natureza estão respaldados no direito brasileiro ou no direito internacional reconhecido como vigente no Brasil pela adesão a Tratados e Convenções Internacionais.

A esses contratos, ao nosso ver, a onerosidade ocasionada pela imprevisão não pode impor revisão em detrimento da parte que tenha sua prestação erigida na realidade dos mercados estrangeiros, porque essa revisão implicaria em seu prejuízo, desequilibrando a relação contratual em seu desfavor. Não é isso que o direito busca, ao contrário, a imprevisão e o direito de revisão do dispositivo do C.D.C. preceituam a manutenção do equilíbrio entre os contratantes.

Dessarte, sob nossa ótica, a revisão dos contratos não pode dar-se ao talante de uma das partes em detrimento de outra, aos pactos acima relacionados, não socorre o direito pátrio e a cláusula "rebus sic stantibus", ante a onerosidade provocada pela variação cambial da maxidesvalorização do real frente ao dólar.

Todavia, uma outra repercussão que merece nossa atenção e estudo é a responsabilidade civil do Banco Central do Brasil para com aqueles que tenham prejuízo material pela abolição do sistema de bandas cambiais, em razão de haverem celebrado contratos (e somente estes) com arrimo na condição de estabilidade controlada da moeda estrangeira.

Antes de afirmar ou negar a responsabilidade do BACEN, preciso faz-se tecer algumas considerações a respeito.

O direito pátrio, a partir da Constituição de 1946, em seu art. 194, estabeleceu que "as pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis pelos danos que os seus funcionários , nessa qualidade, causem a terceiros", abolindo a teoria da culpa para a responsabilidade civil do Estado, até então predominante, e adotando a teoria da responsabilidade objetiva do Estado.

A Carta Política Federal de 1967 (art. 194) e a de 1969 (art.107) reproduziram esse entendimento, e a atual Constituição Federal de 1988 pontificou a teoria da responsabilidade objetiva do Estado, até ampliando-a e estendendo às pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos, conforme dispõe o parágrafo sexto do artigo 37, in verbis:
 
 

Art. 37 - Omissis

§ 6 - As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

A teoria da responsabilidade objetiva exige tão somente que hajam o dano efetivo, causado por ação ou omissão do Estado, através de seus órgãos ("latu sensu"), sem que necessite se provar dolo ou culpa do agente.

Celso Antônio Bandeira de Melo conceitua como responsabilidade patrimonial extracontratual do Estado, in verbis:

"...a obrigação que lhe incumbe de reparar economicamente os danos lesivos à esfera juridicamente garantida de outrem e que lhe sejam imputáveis em decorrência de comportamentos unilaterais, lícitos ou ilícitos, comissivos ou omissivos, materiais ou jurídicos".(in Responsabilidade extracontratual do Estado por comportamentos adminsitrativos. Revista da Procuradoria Geral do Estado de Mato Grosso do Sul, 1:11-25, 1979)

O magistério de Maria Helena Diniz pontifica o seguinte raciocínio:

"... a responsabilidade do Estado é objetiva. Há, portanto, uma relação causal entre o dano e seu produtor, pois o preceito constitucional fala em prejuízo causado pelo agente público. Na distinção entre " causa" e "condição" decorrem fundamentais consequências para o correto entendimento do referido dispositivo. Causa é o evento que produz um efeito, e condição, o acontecimento cuja ausência permite a produção do efeito, não gera o efeito, mas sua presença é impediente dele. Donde: sua ausência permite a produção do efeito. Em suma, condição é o evento que não ocorre, mas, se tivesse ocorrido, teria obstado o resultado.

Para o caso em tela - aumento do dólar pela modificação da intervenção estatal - essa decisão de modificar a condição de estabilidade em que se estabeleceram os contratos é o fato que imputa a responsabilidade objetiva do Estado.

Mas vamos adiante para montar a equação dessa tese.

O Banco Central do Brasil é autarquia Federal, com personalidade jurídica e patrimônio próprios, criado a partir da transformação da antiga Superintendência da Moeda e do Crédito, através do artigo 8º da Lei 4.595/64.

De seu turno, o inciso III do art. 11, da Lei 4.595/64, prevê:

ART.11 - Compete ao Banco Central do Brasil:

I – Omissis;

II – Omissis;

III - atuar no sentido de funcionamento regular do mercado cambial, da estabilidade relativa das taxas de câmbio e do equilíbrio no balanço de pagamentos, podendo para esse fim comprar e vender ouro e moeda estrangeira, bem como realizar operações de crédito no exterior, inclusive as referentes aos Direitos Especiais de Saque e separar os mercados de câmbio financeiro e comercial;

(com redação determinada pelo Decreto-lei número 581, de 14 de maio de 1969)

Está portanto na sua competência, não somente a função de regular o mercado cambial, como também manter a "estabilidade relativa das taxas de câmbio".

O que de fato se fez na medida em que foi estabelecido o regime de bandas cambiais ou faixa de flutuação. A saber, a fixação de tetos mínimos e máximos para um determinado período da cotação do dólar em real. Regulamentado por normas de intervenção do Banco Central do Brasil no mercado interbancário de câmbio.

Porém, a partir da mudança da política do Banco Central de intervenção no mercado interbancário, conhecida como "liberação da âncora cambial", o preço do dólar no mercado interbancário, o "dólar comercial", disparou, fazendo a ruína de muitos que assumiram compromissos na moeda norte-americana e que têm suas receitas fixas em real.

À nação foi exposto que a estabilidade da moeda norte-americana era premissa do "Plano Real". Criou-se uma condição de confiança na atuação constitucional do Estado, através de seus competentes órgãos, no cumprimento do ditame legal que preceitua a "estabilidade relativa das taxas cambiais" (art. 11, III, Lei 4.595/64).

O próprio presidente do Banco Central do Brasil à época, em depoimento prestado à Comissão de Assuntos Econômicos do Senado Federal, em 17.06.1998, disse o seguinte:

"O regime cambial brasileiro comprovou sua solidez, bem como o acerto de se escolher um meio termo entre os regimes de taxa fixa, e aqueles de taxas inteiramente flexíveis. As políticas de câmbio e juros, vale dizer, as políticas cambial e monetária seguiram firmes e coordenadas, cumprindo seus objetivos de assegurar a estabilidade macroeconômica e o equilíbrio externo. As desvalorizações do Real têm contribuído para melhorar nossa competitividade, sem pressionar a inflação e provocar arbitragens e geradoras de fugas de capital, em grande medida porque são moderadas e da mesma ordem de grandeza dos ganhos de produtividade da economia."

A mudar repentinamente a política de intervenção no mercado interbancário, houve por parte do Estado uma quebra do compromisso de estabilidade, pactuado no âmbito da Lei.

A revogação do Comunicado BACEN 6002, de 20.1.1998, através do Comunicado BACEN 6562, de 13.01.1999, que dispõe sobre a sistemática de intervenção do Banco Central do Brasil no mercado interbancário de câmbio, pode ser considerado o ato nodal que provocou os danos em comento. Tal ato foi praticado pelo Diretor de Assuntos Internacionais do Banco Central do Brasil, é lógico que com a concordância expressa em público de diversas autoridades nacionais (do Presidente interino do BACEN ao Presidente da República).

Doutro turno, vai amiúde uma crítica à fórmula que foi adotada pelo mencionado ato, em seu item V, in verbis:
 

"V - o aumento em Reais do limite superior ao final de
cada período de três dias úteis, que definira o limite superior que
vigorara no período seguinte de três dias úteis, será determinado
pela formula:
 

DT = (0,000857 * (T-X) + 0,000428 * (X-P)) / (T-P)

sendo:
DT: aumento em Reais do limite superior

T : limite superior em vigor no período corrente

P : limite inferior em vigor no período corrente

X : media aritmética das taxas PTAX de venda observadas nos três dias úteis do período corrente"
 
 

Tal fórmula é a mudança essencial do regime anteriormente e do ponto de vista técnico já provoca a quebra do regime de faixas de flutuação, vez que impõe imediata relação proporcionalmente invertida, entre a medida da intervenção no mercado e o peso ponderado da flutuação do câmbio. Foi a máscara da liberação quase que total, pois não se prestou à função de estabilizar o mercado como a fórmula anterior o vinha fazendo.

Mas, em verdade o que importa para que se caracterize a responsabilidade objetiva do Estado no caso, é a sua atuação comissiva, que de fato houve, conforme acima é identificada, e o dano que provocou, também acima exposto.

Em razão cartesiana existem conjuntamente: a) a obrigação legal de manter a estabilidade da variação cambial (art.11, III, Lei 4.595/67); b) a atuação eficaz neste sentido (âncora cambial); c) a atuação dos particulares fundada nesta condição de estabilidade; d) a mudança de política cambial ; e) o dano material a diversas instituições financeiras e pessoas físicas.

As pessoas fisícas e jurídicas que estejam na condição de consumidores ou de não consumidores obrigados por contrato, cuja imprevisão do aumento do dólar tenha impossibilitado o cumprimento da obrigação, estão protegidos seja pelo Diploma de Defesa do Consumidor, seja pela Teoria da Imprevisão. Mas, àquelas pessoas que não se enquadram em tal situação, ou seja, os credores, vão ser alcançados pelo dano da atuação comissiva do Banco Central do Brasil.

A conclusão de nossos estudos, ainda que em sede preliminar de investigação, é que as pessoas físicas e jurídicas que tenham tido prejuízo financeiro(material) comprovado pela mudança das regras de intervenção estatal no mercado interbancário de câmbio, em contratos assinados pela vinculação da vontade no momento pretérito a tal alteração, e que tenham manifestado essa vontade em razão da política cambial do Estado, podem pretender ser indenizadas pelo próprio Estado, através da autarquia cujo agente praticou o ato de mudança das condições.

A competência para apreciar tais postulações de responsabilidade civil objetiva do Banco Central do Brasil é da Justiça Federal, com a razão do artigo 100, inciso IV, alíneas "a" e "b".

Com certeza, esse assunto ainda recente de nossa história pública, irá aos tribunais pátrios, donde a sabedoria de nossos juízes, deverá em casos como tais, esposar desse mesmo entendimento, evidentemente, abrilhantado pelas mentes notáveis de nossos juristas.
 
 
 
 
 
 
 

* parte integrante do livro " A Defesa do Consumidor contra os Bancos"

Retirado de: http://www.infojus.com.br/area2/senomar1.htm