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O comércio e a organização judiciária - Juiz Conselheiro Jubilado do STJ

 

 

 

Cardona Ferreira - Juiz Conselheiro Jubilado do STJ

 

 

 

 

 

DO PROCEDIMENTO JUDICIAL PARA A RESOLUÇÃO DOS LITÍGIOS COMERCIAIS


I.

Ainda que eu tenha deixado a judicatura activa, não deixei de ter os meus quadros mentais pró-prios, de quem decidiu ser Juiz com verdadeira devoção, e o foi durante dezenas de anos. E isto significa que tenho de começar por saber de que estou a falar ou a escrever.
Não que eu seja conceptualista , no sentido de pensar reduzido a conceitos.
Pelo contrário.
Mas, para discutir quaisquer matérias, creio que temos de principiar por saber quais são elas, ao menos em linhas gerais.
E, aqui, temos duas zonas fundamentais do saber : comércio e organização judiciária.
Só tendo isto bem presente, poderei chegar a alguma conclusão útil, se é o que conseguirei.
Mormente no que significa, na Vida mais que no Direito, comércio.

II.

Comércio – pese embora toda a discussão a respeito desse conceito é , decerto, uma actividade económica; em latim, "commutatio mercium" .
Isto, que parece simples, é bastante complicado. Lembremo – nos do malfadado art. 2 do C. Comércio português e dos rios de tinta que tem feito correr.
Para além de todas as discussões conceptualísticas a este respeito, em termos gerais o comércio é um sector fundamental na economia, ainda que seja terciário, aquele que abrange a distribuição ou intermediação nas trocas de bens e, "lato sensu", prestações de serviços.
Neste campo de intermediação, pode caber um sem número de bens, nunca findo, designadamente mercadorias, valores mobiliários (títulos) , dinheiro (instituições de crédito, câmbios) e, mesmo, actividades (transportes, etc.) .
De todo o modo, a noção de comércio tem sofrido evolução, dir-se-ia em harmonia com a própria ideia de movimento que comércio implica.
Da perspectiva romanista de quaisquer relações entre os homens, de certo modo repescada por Coquelin ("o conjunto das relações que os homens mantêm entre si para tudo o que se relacione com a satisfação das suas necessidades " ), acaba por ficar uma noção mais precisa que implica, sempre, uma troca ou, pelo menos, uma actividade tendente à troca. É assim que me parece justificar-se a inserção, numa noção lata de comércio, não só de actividades ditas industriais e de serviços, ainda que estas não percam as suas especificidades.
É claro que, neste sentido, me preocupo mais com a perspectiva económica do que com rigor jurídico – formal, como flui do que já reflecti.
Em verdade, o rigor jurídico conceptualista do Direito Comercial leva-nos a uma redutora amarra à legislação comercial, como simples sector especializado do direito privado quando, em verdade, a perspectiva económica parte de bases constitucionais e passa por outra normatividade do Direito público, como regras de carácter administrativo para, só depois, chegar ao Direito privado.
Os art.ºs. 80 e segs. da Constituição da República Portuguesa, são dedicados à Organização Económica do Estado e, assim constituem a base do respectivo sector terciário, o da actividade comercial. Aí se prescreve, entre o mais, a liberdade de iniciativa e de organização empresarial no âmbito de uma economia mista [art.º 80 c)] , o dever do Estado de assegurar o funcionamento equilibrado dos mercados [ art.º 81 e)] , bem como desenvolver as relações económicas com todos os Povos [ art.º 81 f)], garantir a defesa dos interesses e dos direitos dos consumidores [art.º 81 h)] e, especialmente, definir os objectivos da política "comercial" (art.º 99)e (industrial" (art.º 100) .
Tudo isto evidencia a importância que o Estado Português reconhece à actividade comercial, verdadeira seiva que percorre os caminhos da economia – como o sangue que percorre as artérias – sem a qual os estados paralisariam .
E, isto, tendo noção de que se impõe ter uma perspectiva clara de que há comércio interno e comércio internacional, e de que em tudo o que é societário, como o comércio, podem haver diferendos que têm de ser resolvidos. Sem procurarmos grande rigor, podemos dizer que o comércio interno se confina às fronteiras de cada Estado, e que o comércio internacional é cada vez mais significativo nesta era da globalização, abrangendo interesses que ultrapassam aquelas fronteiras.
Aliás, a globalização e o sector internacionalista do comércio são aspectos naturais da noção expansionista de comércio, tendente a satisfazer necessidades humanas e a cria riqueza , inclusive através dos empregos que pode e deve gerar .
E é algo que nada tem, hoje, de novo, salvo nas suas formas.
Caravanas no Oriente (lembremo – nos da Rota da seda, que ligou a China à Índia) , fenícios , cartagineses, gregos, cretenses, muçulmanos, histórica, lembremo-nos da Liga Hanseática. E, obviamente, os caminhos desvendados pelas aventuras marítimas de portugueses e espanhóis que revolucionaram os caminhos dos séculos XV, XVI e segs. e o subsequente predomínio nos mares, especialmente, da Inglaterra (v.g. Acto da Navegação de Cromwell) e da Holanda, como em parte da França, a que se seguiu a mais recente mundialização do comércio dos EUA ., tudo isto, que se diz em breves palavras, reflecte uma importância incontornável de séculos de história, ligando povos, com bons e maus aspectos, mas com um significado profundo que tem de ser reconhecido, a propósito da caminhada do Homem pelo tempo e pelo espaço.
Por isso quando os Estados procuraram mercados comuns, como aquele que veio a dar origem à União Europeia, ou ao Mercosul, ou que, ainda há pouco tempo, levou à criação da ALCA ( todos os países das Américas menos um ! ) , nada mais fazem que dar novas formas a velhas ideias . Quando aparecerá algo que seja conjugável, ao nível da Comunidade de Povos de Língua Oficial Portuguesa?
Fiquemos , pois , com uma ideia fundamental : para além de constituir a seiva movimentadora de muitas actividades, criando empregos, satisfazendo necessidades, desenvolvendo riqueza, o comércio é, também, factor de organização estadual e internacional, causa e consequência de política nacional e internacional. É , aliás, algo em permanente evolução de perspectivas ; repare-se, por exemplo, na protecção do segredo comercial a que se reporta o art.º 41 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia .
Mas – não há rosa sem espinhos – tudo isto, sendo actividade humana, dá origem a dúvidas e a litígios, como já aflorei.
E os Estados têm obrigação de possuir meios que previnam e resolvam quaisquer litígios.
Como se passam as coisas em Portugal ?
Este é o objecto do próximo apontamento.

III

Encontramo-nos , socialmente, na era digital, mas o sistema comum de Justiça ainda não chegou lá . Há que reconhecê-lo .
Esta circunstância é, especialmente , evidente no mundo do comércio que nunca está parado, exactamente porque , por natureza, pressupõe movimento.
Em verdade, o tempo do comércio não confere com o tempo judicial comum actual.
Substantiva e formalmente, o comércio é, hoje, um dos sectores sociais em que se encontra mais actividade.
Pensemos que a rede mundial informática é como um conjunto, não de atalhos, mas de auto-estradas da informação, por onde galopa o mercado da economia digital à escala global, em que as ciberempresas desenvolvem a sua imaginação e a sua actividade.
Isto cria problemas de ambiente e de confiança jurídica a exigir regras novas e especializações. E, sem dúvida, os meios tradicionais de solução de litígios são, normalmente, incompatíveis com o tempo comercial, enquanto não sobrevier uma verdadeira refundação, que tanto tenho defendido .
Mas voltemos à questão referenciada : que temos em Portugal ?
Também aqui, tudo parte da Constituição da República.
Retenhamos o art.º 20 n.º4 da C.R., "familiar" do célebre art.º 6 n.º 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem do art.º 47 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia:
"Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo".
E interessa, entre o mais, para o caso sob análise, considerar a possibilidade assumida pelo art.º 207, n.º 3 da C.R. :
" A lei poderá estabelecer (...) a participação de assessores tecnicamente qualificados para o julgamento de determinadas matérias "
Em sintonia com essa norma, encontra-se o art.º 649 n.º 1 do C.P.C. , prevendo que :
"Quando a matéria de facto suscite dificuldades de natureza técnica cuja solução depende de conhecimentos especiais que o Tribunal não possua, pode o Juiz designar pessoa competente que assista à audiência final e aí preste os esclarecimentos necessários bem como, em qualquer estado da causa, requisitar os pareceres técnicos indispensáveis ao apuramento da verdade dos factos " .
Trata-se de normas com significativo interesse mas que julgo que não têm tido a aplicação concreta que poderia ser útil em causas mais complexas e menos comuns de índole comercial. Mas isto talvez se explique pelo facto de as causas mais complexas e mais inovadoras tenderem a fugir do sistema tradicional de Justiça, burocrático e, ainda, pouco inovado, ou seja, dessintonizado com a actividade comercial mais significativa. Aliás, valha a verdade que se diga que, para que um Juiz consiga chamar um técnico que o assessorie, deve possuir uma formação que lhe permita assumir, com naturalidade, que não pode ser omnisciente, e tem de dispor, em concreto, de conhecimento de quem chamar e, isto, não resulta da simples abstracção das leis .
Há, ainda, mais duas regras constitucionais, entre outras, com particular significado : o n.º 2 do art.º 211 da C.R. permite que, na 1ªinatância, haja Tribunais especializados para o julgamento de certas matérias; e o n.º 2 do art.º 209 da Lei Fundamental diz-nos que podem existir, designadamente, Tribunais Arbitrais e Julgados de Paz.
Tudo isto é importante para o mundo comercial
Relativamente à especialização de Tribunais, ela é demasiado restrita.
Começa por abranger só a 1ª instância.
Ao contrário do que acontece em outros Países, nos Tribunais Superiores (quer nas Relações, quer no S.T.J.) , todas as causas comerciais são da competência de secções cíveis "lato sensu" , cujos os Juizes têm – teoricamente – de saber tudo, ou quase tudo deste vastíssimo mundo (art.ºs.
27 n.º 1 e 51 m.º 1 da lei 3/99. de 13/01 ).
Mesmo na 1ª instância, os chamados Tribunais de Comércio , em que foram transformados os anteriores Tribunais ditos de recuperação de empresa e de falência, têm competência taxativa e não abrangente da generalidade dos actos de comércio, e áreas definidas com sedes, apenas, em Lisboa e Gaia (art.ºs. 89, 137 n.º 1 e mapa VI anexo ao DL 186-A/99 , de 31/05, ( já alterados pelo DL 290/99, de 30/07 e 17-B-2000, de 3/03). O que ultrapassa as respectivas áreas, cai nos Tribunais generalistas da 1ª instância. "Mutatis mutantis", pensemos na hipótese de haver cardiologistas, apenas, em Lisboa e em Gaia .
Além da insuficiência de Tribunais comerciais, o processado português continua a ser, como aflorei, burocratizado e excessivamente complexo, facilitando o espírito da litigância – apesar dos nossos brandos costumes ou exactamente por isso ... – e , portanto, afastando o tempo processual do tempo comercial .
É matéria a carecer de ampla reforma, mormente nos campos da formação, da orgânica e do processado.
E, porque o comércio não se compadece com a tradicional delonga das reformas (sectoriais) dos Tribunais tradicionais, há que pensar em alternativas.

IV

Para este efeito e além do mais, há, a meu ver, que retomar dos tipos de distinções : por um lado o comércio nacional e, por outro, o comercio internacional.
E, no âmbito do comercio nacional, temos os pequenos litígios de índole mais geral e simples e, por outro lado, os litígios mais significativos, complexos e inovadores.
A propósito dos litígios de índole estritamente nacional relativamente simples e localizados, creio que os Julgados, Juizados ou Juizes de Paz po dem e devem ser uma solução útil.
No art.º 5 do respectivo Projecto de lei pendente na Assembleia da República (ao escrever estas linhas) encontram-se 3 primeiras hipóteses ditas cíveis (dever-se-ia explicar autonomia comercialística ), onde pode caber competência para a problemática do tipo da que nos ocupa (cumprimento de obrigações pecuniárias ; indemnizações por dano; entrega de coisas móveis ) .
Este projecto legislativo marca uma etapa substancialmente inovadora no âmbito orgânico e processual português, com imensas virtualidades. Não escondo que sou um entusiasta deste tipo de solução, desde que vi os similares Juizados Especiais a funcionarem no Brasil, como ali são chamados os Juízos ou Julgados de Paz .
Mas , como disse, trata-se de soluções de reduzido alcance, quer pelo valor (alçada da 1ª instância), quer pela não complexidade, quer pela proximidade geográfica. Mas existe, nessas instituições, uma especial vocação para a conciliação das partes, que pode ser útil .
De certo modo, embora com certas diferenças , os objectivos são similares aos do chamado Centro dito de Arbitragem de Conflitos de Consumo da Cidade de Lisboa, com provas dadas, e que tem tido tendência para se expandir para outros âmbitos citadinos .
Mas não podemos ficar por aqui.
Face a altos valores e a significativa complexidade, os litígios comerciais têm hoje tendência para encontrar mais adequada solução pela via dois Tribunais Arbitrais.
O Comité de Ministros do Conselho da Europa , em 16 de Setembro de 1986, adoptou a Recomendação n.º R (86) 12 e, preocupado com os sistemas de Justiça estaduais, defendeu, além do mais : não só o encorajamento da resolução amigável de conflitos ; como a existência de Órgãos, fora da ordem jurisdicional , para a resolução de litígios de pequena importância ; como – é aqui que quero, agora, chegar – disposições adequadas para que, com casos apropriados, a Arbitragem possa constituir uma alternativa mais acessível e mais eficaz do que a acção judiciária comum.
Assim , a existência de Tribunais Arbitrais por der – e já está a ser – a via , por excelência, para a resolução de causas comerciais, quer nacionais quer, especialmente , internacionais .
Curiosamente, as Convenções de Bruxelas (1968) e de Lugano (1988, acerca de cooperação jurídica e judiciária em matéria dita civil, excluíram a Arbitragem do seu âmbito de aplicação . Mas, marcando um salto cheio de significado, a Proposta da Directiva do Parlamento Europeu e do Concelho da União Europeia, acerca do comércio electrónico, previu, explicitamente, a "utilização efectiva de mecanismos de resolução extrajudicial, inclusive pelas vias electrónicas apropriadas " (art. 17).
No âmbito interno português, a Arbitragem foi considerada, e muito bem, uma "justiça de proximidade" pelo Relatório Breve do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa Sobre Bloqueios Ao Andamento Dos Processos E Propostas De Solução. Até a propósito do contencioso administrativo, já se previu que os Cidadãos optem por via arbitral, nos seus litígios com o Estado.
Isto significa que, como resulta do exposto, a Arbitragem é meio mais adequado de resolução de litígios comerciais significativos, quer de âmbito nacional, quer de âmbito internacional, que o Estado deve apoiar.
E, isto, nem constitui uma ideia nova, embora tenha sofrido perspectivas diferentes ao longo dos séculos. Lembremo-nos, aliás , de que a Arbitragem abrange, historicamente, o próprio Direito Internacional Público. Basta recordar, no que diz respeito a nós, portugueses, por exemplo, o próprio nascimento da independência nacional, com a intervenção papal e, muito mais tarde, a decisão quanto à ilha de Bolama (Presidente dos EUA, Grant) e a decisão relativa à baía da, então Lourenço Marques (Presidente da França, Mac-Mahon ) .
Mas voltemos ao âmbito privatístico (ainda que o Estado e outros Entes públicos possam ser sujeitos destas relações ) .
A Arbitragem é , efectivamente, um meio muito antigo de solução deste tipo de litígios, com desejável garantia de celeridade, comodidade, competência, diálogo, sem quebra da imparcialidade decisória. Aliás, vem de caminho frisar que um Tribunal Arbitral voluntário pressupõe acordo dos interessados para decidir, mas a decisão impões-se-lhes como qualquer uma de Tribunal comum ou judicial .
Conforme descreveu, em pormenor , Francisco Cortez , na revista "O Direito" (1992, III e IV ) , " o actual regime jurídico português da Arbitragem voluntária é, antes de tudo o mais , herdeiro de uma sólida e, a todos os níveis, fascinante tradição, cuja origem ultrapassa a própria fundação da nossa nacionalidade ".
Desde o tempo da atribuição decisória aos " ricos homens e bons e honestos varões " ou aos " Juizes Alvidros ", vai toda uma história constante até chegarmos à actual lei 31/86, de 29/08 .
E, naturalmente, não se tratou, nem trata, de algo exclusivamente português. A Arbitragem comercial, ao que se crê, e por exemplo, foi usada, em Inglaterra, desde o século XIII, como decorre da referência no "Year Book" de meados do século seguinte (1347).
Lembremo-nos das Guildas do Norte europeu e, saltando no tempo, da Bolsa de Algodão de Bremen (1871), do Marcado de Cereais de Hamburgo (1868), da Liverpool Cotton Association (1841) ,etc., etc...
V

Importa , agora, fazer uma breve alusão às regras sobre Arbitragem voluntária, já que a arbitragem necessária tem pouca expressão entre nós (por mim , apenas tenho notícia das Condições Gerais da Venda de Energia Eléctrica em Alta Tensão – DL 296/82, de 28/07 – e , aliás, o regime da Arbitragem voluntária é supletivo na hipótese de arbitragem necessária – art.º 1528 do CPC ).
Vejamos, pois, a relevante lei 31/86, aliás referindo só os aspectos mais importantes.
Desde que a ordem jurídica não o impeça e se trate de direitos disponíveis, os interessados podem optar por um Tribunal Arbitral para a resolução de diferendos , através de convenção de arbitragem (expressão hábil que abrange quer o compromisso Arbitral depois de nascer o litígio, quer a cláusula compromissória que antecede um litígio – o que tem reflexo mo art.º 494 j) do CPC (art.º 1 da lei 31/86 ).
Os Árbitros devem ser designados pelos interessados, ressalvado um sistema supletivo , que pode ir até à designação pelo Presidente do Tribunal da Relação do Distrito Judicial da Arbitragem (artºs. 7, 12, 14 ).
As partes podem acordar nas regras processuais, observados certos princípios (art.ºs. 15/16 ) ; como podem autorizar o tribunal Arbitral a julgar segundo a equidade, o que acarreta irrecorribilidade (art.ºs. 22 e 29 n.º 2).
A causa deve estar julgada dentro de 6 meses, salvo acordo das partes (art.º.19). Há quem entenda que, após esse prazo, o Tribunal Arbitral se tornou incompetente na linha dos princípios do art.º 27 n.º 1 b) (v.g. Francisco Cortez , estudo citado, referindo a opinião Raúl Ventura ) . Tenho dúvida sobre esta conclusão, que tende a criar ainda, porventura, mais atrasos, o que é contrário à razão de ser Tribunal Arbitral. Por mim, mais facilmente propondo a considerar se há motivo de justificação, ou não, de atraso , tanto mais se puder haver recurso e porque a execução não compete ao Tribunal Arbitral, o que tudo demonstra que o prazo de 6 meses, aliás dependente de acordo, é tendencial ainda que importante e desejável e deve ser objecto de esforço para cumprimento; admito, mesmo que, em caso de injustificação por parte de algum Arbitro, tal possa levar à sua substituição.
Como se referenciou, o Tribunal Arbitral não tem competência executiva, remetida para o Tribunal comum da 1ª instância (art.º 30) , à semelhança do que se prevê relativamente ao Projecto dos Juízos ou Julgados de Paz (art.º 5 n.º 2 ) . É, a meu ver, matéria a justificar reponderação, para maior harmonia e eficácia. Aliás, quando se pensa, e bem, em desjudicializar-se a execução, creio que não tem sentido "empurrar" para os Tribunais comuns acções executivas decorrentes de decisões que lhes são alheias.
Identicamente, a matéria de recursos tem um ponto que considero correcto e, outro, que alteraria . Por um lado, considero certo que, a haver recurso de um Tribunal Arbitral, ele seja interposto para a Relação porque o Tribunal Arbitral equi-vale a Tribunal de 1ª instância. Mas, face aos princípios da confiança e da celeridade, por regra, não deveria haver recurso, ou seja, lógica não é a regra do art.º 29 n.º1 mas, sim, a do art.º 34: "Tratando-se de arbitragem internacional, a decisão os árbitros não é recorrível, salvo se as partes tiverem acordado a possibilidade de recurso e regulado os seus termos ".
Ainda sobre a Arbitragem nacional, o art.º 29 n.º1 não exclui recurso da Relação para o STJ, o que tenho por manifestamente exagerado.
Voltando à Arbitragem internacional, ela é, que não se confinam às fronteiras nacionais (art.º32) ; e, nesse caso, as partes podem escolher o direito a aplicar pelos Árbitros, se os não tiverem autorizado a julgar segundo a equidade ; salvo o que o Tribunal Arbitrar aplicará " o Direito mais apropriado ao litígio " (art.º 33).
Deve, ainda, acentuar-se neste simples apontamento das regras mais significativas, que existem Arbitragens voluntárias através de Tribunais criados "ad hoc" e através de Tribunais Arbitrais institucionalizados (art.º38, ainda da lei 31/86 ) ; DL 425/86, de 27/12 ), estes localizados em várias Entidades Públicas (como, v.g., Câmaras Municipais) ou com funções públicas (é o caso, em Portugal, do Centro de Arbitragem Voluntária do Conselho Nacional de Profissões Liberais ) ou Privadas (como Associações de Comerciantes ou significativos Escritórios de Advogados). O caso daquele Centro é uma situação curiosa; em 1993, foi criado um Centro de Arbitragem na Ordem dos Advogados; em 2000, a pedido desta mesma Ordem e do Conselho Nacional de Profissões Liberais, aquele Centro deu lugar ao actual Centro de Arbitragens Voluntárias do Conselho Nacional de Profissões Liberais, de âmbito muito lato, com os seus Estatutos, o seu Regulamento de Processo e o seu regulamento de Custas – como, aliás, é normal em casos similares.
Por outro lado, acontece, mormente, em contratos comerciais internacionais, haver atribuição de competência decisória de diferendos a conceituados Tribunais Arbitrais estrangeiros, o que é perfeitamente coerente com a voluntariedade que está na base da legislação arbitral, mormente tendo em atenção o prestígio de várias Instituições estrangeiras como as opções de nacionais dos respectivos Estados. Isto acontece com alguma frequência , designadamente quanto a Instituições do Reino Unido, face às suas tradições no que concerne ao respectivo comércio internacional, mormente a propósito de questões de transportes e não só.

VI

E, daqui parto para uma ideia que pretendo reflectir e que tem a ver com o problema da chamada "lex mercatoria". A noção de lex mercatoria" deve incluir, segundo a dogmática mais generalizada, regras de índole processual, de conflitos de leis e de direito material. Mas, no estádio actual, apresenta um aspecto muito lacunar e disperso, como saliente, por exemplo, o Doutor Moura Vicente, na sua obra " Arbitragem Comercial Internacional".
Tenho, para mim, porém, que um caracter regulamentarista da chamada "lex mercatoria" seria antinómico de uma verdadeira perspectiva de Arbitragem voluntária, que deve dar, às partes e, daí, aos Árbitros, uma larga margem de actuação, conforme cada caso concreto, face à mutação constante do comércio , mormente internacional .
A ideia que defendo é muito mais de índole institucional, que de conteúdo formal.
Creio que nos encontramos numa época em que a Justiça, seja quais forem as formas que siga, deixou de respeitar fronteiras como tabus. Isto é, particularmente, conatural ao mundo do comércio.
Ao nível da União Europeia, ou da nova criação, a ALCA, ou entre ambas as organizações ou, desejavelmente, no âmbito da Comunidade dos Países de Língua Oficial Portuguesa, as Instituições adequadas à resolução dos litígios ultrapassaram as fronteiras, símbolos de identidades po líticas culturais integrantes de soberanias nacionais, mas conceptualmente compatíveis com a ideia de conjunto desde que todos respeitem, igualmente, todos e haja sectores estaduais inalienáveis.
Por exemplo, no que concerne à jurisdição tradicional, e só para falar em casos mais conhecidos, lá estão, por exemplo, o Tribunal das Nações Unidas em Haia, os tribunais das Comunidades Europeias no Luxemburgo, o tribunal dos Direitos Humanos decorrente do Concelho da Europa, o Tribunal "ad hoc" para a ex-Jugoslávia (e vem a caminho o Tribunal Criminal Penal Internacional Permanente), e lembrar que a Justiça é, hoje e cada vez mais, uma questão internacional. Se o litígio se internacionalizou, a respectiva solução também tem de internacionalizar-se.
Donde ser indispensável que os múltiplos acordos internacionais que já existem venham a institucionalizar Tribunais Arbitrais Internacionais, ao dispor dos interessados com uma "lex mercatoria" susceptível de ser aceite, ou não, pelas partes, respeitados que sejam princípios insusceptíveis de afastamento, como, por exemplo, o da boa fé.
Sabe-se que já foram desencadeados afloramentos desta ideia. Só a título de exemplos, são os casos do CIRDI (Centro Internacional para a Resolução de Diferendos Relativos a Investimentos ) instituído pela Convenção de Washington de 1956, sob inspiração do Banco Mundial; ou
O United States – Iran Claims Tribunal, em Haia, decorrentes de Acordos de Argel de 1981.
E, entre outros casos interessantes e dispersos, deve referir-se que, ao próprio Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, pode ser atribuída competência para julgar diferendos resultantes de contratos de direito privado (além de casos de direito público) com base em cláusula compromissória. Mas aquele Tribunal das Comunidades Europeias já está afogado em causas e carecer de urgente repensamento, especialmente antes do próximo alargamento da União Europeia ; é matéria que está , neste momento , em estudo.
E é importante aludir que, por força da Convenção de 1899, revista em 1907, foi criado o Tribunal Permanente de Arbitragem de Haia mas, ao contrário do que o nome suscitaria, não se trata de Instituição julgadora mas, sim, de Instituição tendente a facilitar a constituição de Tribunais Arbitrais "ad hoc", estes com funções de julgar, normalmente, questões entre Estados, dispondo, para tanto, de lista de Árbitros indicados por cada País.

VII

De todos estes elementos dispersos e na decorrência da conduta concreta que as partes assumem, penso que seria conveniente uma análise global das opções e das Instituições, em ordem a ser definida e institucionalizada, no âmbito das várias globalizações (volto a lembrar, por exemplo, a CPLP ! ), uma rede sustentada de Tribunais Arbitrais internacionais, ao dispor dos cidadãos e dos Estados, porventura "lex mercatoria " aplicável na falta de outra opção dos interessados, incluindo instância, também arbitral de recurso, e meios exequíveis em qualquer Estado, mediante simples verificação formal. Note-se que não falo de Instituições nacionais que fazem Arbitragem internacional mas, sim, de uma rede de Tribunais Arbitrais, por natureza, internacionais, em paralelo com os tradicionais, desenvolvendo as bases que já existem.
Será muito difícil ?
Não o Creio.
É a Vida que deve empurrar o Direito, e não necessariamente ou apenas o contrário.
Só que tudo isto não poderia fazer perder de vista que haveria que Não trazer para os Tribunais Arbitrais os pecadilhos da Justiça tradicional; e, SIM, assumir e vivificar o acerto, a celeridade, a confiança, a competência dos Tribunais Arbitrais, passíveis, no seu desenvolvimento, de especializações, de proximidade, de competência, de celeridade.

VIII

RESUMINDO PARA CONCLUÍR

O comércio é a seiva que percorre os caminhos da economia e concorre, significativamente, para a qualidade de vida das pessoas e para o equilíbrio sustentado dos Estados.
Consequentemente , os Estados têm de prestar atenção à actividade comercial, procurando que o tempo jurisdicional não se afaste muito do tempo comercial, e na certeza de que este não se compadece com delongas, burocracias e formalismos injustificados.
Os meios tradicionais jurisdicionais são, normalmente, incompatíveis com o tempo comercial.
A intervenção de técnicos, que assessoriem os Juizes, em certas causas comerciais mais complexas, pode ser um caminho útil.
É positiva a existência de Tribunais especializados comerciais, mas é muito restrita a sua instalação actual, em Portugal.
Para efeito de soluções alternativas aos Tribunais tradicionais, há que distinguir, por um lado, causas simples e causas complexas e, por outro lado, comércio nacional e comércio cujos interesses se prendam com mais de um Estado. No que concerne a questões mormente nacionais e simples pode pensar-se na utilidade de informais Tribunais ou Julgados de Paz.
De todo o modo, a mais importante tendência para a solução de litígios comerciais tem estado em Tribunais de Arbitragem de cariz voluntário, quer quanto a questões de âmbito nacional, quer a propósito de causas de cariz internacional.
Trata-se de verdadeiros Órgãos jurisdicionais, constituídos "ad hoc" ou institucionalizados, em que a iniciativa das partes é fundamental, na escolha dos Árbitros e do Direito processual e substantivo.
Estes Tribunais de Justiça de proximidade, primam pela eficiência, ou seja, pela isenção, competência, celeridade, buscando, sempre, o entendimento que pode ir ao ponto de se prescindir de recurso.
Em termos nacionais, a lei 31/86 justifica que se reponderem algumas regras, ainda que constitua uma genérica lei positiva.
Quando à Arbitragem internacional, para além de se poder recorrer a um Tribunal Arbitral estrangeiro para se decidir qualquer questão (assim haja convenção de arbitragem), há que pensar se esta ideia é, ainda, passível de desenvolvimento.
Tem sido a prática concreta a fazer desenvolver meios de solução adequados ao tempo comercial. Assim terá de continuar a ser. É um caso típico acerca do qual a legislação anda atrás da vida.

IX

DONDE, CONCLUÍNDO

1. Relativamente aos Tribunais tradicionais, há que simplificar o processado, para mais oportuna solução dos diferente comerciais.
2. Há que dinamizar a possibilidade de os tribunais tradicionais disporem de técnicos especializados em matéria comercial complexa, possibilitando que os Tribunais conheçam um elenco de especialistas requisitáveis.
3. Deveria ser mais desenvolvida a instalação de Tribunais comerciais especializados, tendo em vista a criatividade permanente do mundo comercial, mormente na era digital em que nos encontramos.
4. È desejável que a experiência dos Julgados de Paz permita alargar a sua competência no mundo comercial, ainda que em causas de valor não muito significativo e de pouca complexidade.
5. No âmbito da Arbitragem, a regra deve ser a inexistência de recursos e, quando haja, nunca além da Relação; e deve encontrar-se um sistema legal que não atribua a execução de decisões de Tribunal Arbitral aos Tribunais comuns, como aliás no que concerne a decisões dos Tribunais ou Julgados de Paz.
6. Creio que seria desejável uma rede transfronteiriça institucionalizada de Tribunais Arbitrais.
Não se trataria de Tribunais, simplesmente, Arbitrais nacionais utilizáveis por estrangeiros mas, sim, de uma verdadeira institucionalização de Órgãos especializados Internacionais Arbitrais, aproveitando, desenvolvendo e articulando meios já existentes, pelo menos a propósito das globalizações já estruturadas, ou em vias de o ser , como a União Europeia, a Comunidade de Povos de Língua Oficial Portuguesa, a ALCA, etc.

X

NOTA FINAL

Como nota final, enfatizo que a criatividade do mundo comercial pode fazer parafrasear a célebre "lei Murphy" . Segundo esta, se algo pode correr mal, mais tarde ou mais cedo correrá. Ora, o dinâmico mundo do comércio tem demonstrado que, apesar da sua dissonância quanto ao tradicional mundo judicial, se algo pode correr bem, mais cedo ou mais tarde correrá.


Justiça e Cidadania, Suplemento do Primeiro de Janeiro, 25-Jun-2001