REFLEXÕES ACERCA
DA PENHORABILIDADE DAS COTAS SOCIAIS NA SOCIEDADE
POR COTAS DE RESPONSABILIDADE LIMITADA
Rodrigo de Carvalho
Questão eminentemente sutil e tormentosa é a que gira
em torno da permissibilidade ou não da
penhora das cotas sociais na sociedade por cotas de responsabilidade
limitada, justamente pelo
fato de não dispor a respeito o Código Comercial e sua
fonte primária, o Decreto n.º 3.708, de 1919.
A controvérsia é gravíssima, de dimensões
gigantescas, e envolve irreconciliavelmente juristas e
tribunais tupiniquins.
Urge, destarte, para a discussão de complicado tema, se tenha
a compreensão da nítida distinçãoentre o patrimônio
da sociedade e o de seus respectivos sócios, sem a qual tornar-se-ia
sem sentido o presente estudo. Sensível a esta distinção,
o eminente PROF. RUBENS REQUIÃO afirma
textualmente:
"entre o sócio e a sociedade ergue-se
a personalidade jurídica desta, com a sua
conseqüente autonomia patrimonial. Por
isso, pertencendo o patrimônio à sociedade,
não pode o credor particular de sócio
penhorá-lo para garantia do seu crédito".
O douto professor, com manifesta restrição, chega a admitir a penhora das cotas sociais, quando explica:
"a cota social somente será penhorável,
em nosso entender, se houver, no contrato
social, cláusula pela qual possa ela
ser cessível a terceiro, sem a anuência dos demais
companheiros. A sociedade demonstraria, com
isso, sua completa despreocupação e
alheamento em relação à
pessoa dos sócios, dando-lhe um nítido sabor de sociedade
de capital".
Diversa é, todavia, a doutrina sustentada por JOÃO EUNÁPIO BORGES e ALCINO PINTO FALCÃO,quando pregam:
"... pelas mesmas razões e com as mesmas
restrições, a quota pode ser penhorada em
execução contra o sócio.
O que é alienável, cessível, pode, em tese, ser objeto
de
penhora".
"... não havendo norma legal expressa,
proibindo a penhora aludida e estando a
sociedade por cotas de responsabilidade limitada
reguladas pela lei n.º 3.708, de 10 de
janeiro de 1919, cujo art. 18 manda supletivamente
aplicar as disposições da Lei de
Sociedade Anônima, não vejo como
se obstar tal penhora".
Meditando sobre a natureza personalística da sociedade, CUNHA
PEIXOTO brilhantemente
arremata:
"Ora, a impenhorabilidade da cota social funda-se
na formação 'intuitu personae' da
sociedade. A lei quer evitar que estranhos
participem da sociedade,
independentemente do consentimento dos demais
sócios, podendo o estranho vir a ser
um futuro elemento de discórdia, ou
não trazer os mesmos elementos que possuía o
proprietário da cota a ser penhorada.
Mas, se os sócios membros da sociedade abrem
mão desta garantia, possibilitando
a transferência da cota a estranho, já não há
razão
jurídica ou moral para impedir a venda
judicial da parte do sócio devedor. A solução
contrária viria apenas favorecer o
devedor relapso".
Como se vê, sobreleva-se na doutrina pátria ser a penhora das cotas sociais questão suscetível de inúmeras controvérsias. Porém, de modo imperante e sem maiores discussões, a penhora dos lucros líquidos afigura-se absolutamente lícita, desde que o devedor não possua outros bens livres e desembaraçados, tal, aliás, como dispõe o art. 292 do Código Comercial:
"O credor particular de um sócio só
pode executar os fundos líquidos que o devedor
possuir na companhia ou sociedade, não
tendo este outros bens desembaraçados, ou
se, depois de executados, os que tiver não
forem suficientes para o pagamento".
A jurisprudência, de modo lato, tem admitido a penhora das cotas (RT, 413:223, 418:210 e 520:159). O próprio Supremo Tribunal Federal, antes vacilante e agora sensível ao problema, vem admitindo a penhora da cota de sócio por dívidas particulares de cotista, em sociedade por cotas, desde que o contrato social permita a cessão e transferência das cotas a terceiros, sem a anuência dos demais sócios, pois a sociedade, assim constituída mais em atenção ao capital do que à pessoa dos sócios, deixaria de ser sociedade de pessoas para se assemelhar à sociedade de capital. Pensa o colendo tribunal que, neste caso, as cotas penhoradas seriam suscetíveis de arrematação em hasta pública, permitindo ao arrematante o livre ingresso na sociedade.
O problema caminha, a passos largos, para um fim. Começa a figurar
na doutrina e na
jurisprudência nacional a teoria de que, sem cláusula
contratual permissiva de cessão, o adquirente que houver, em hasta
pública, arrematado a cota social, não poderá ingressar
na sociedade, pois os demais sócios a isso poderão se opor
com base em cláusula contratual específica. Disso, resta-nos
concluir que a cota social não pode ser objeto de penhora para garantia
do pagamento em execução de dívida particular de sócio.
Sem dúvida, a cota social não constitui um direito de
crédito, ou um crédito contra a sociedade,
mas sim uma parte ideal do capital social, que gerará uma expectativa
de direito de seu
recebimento, quando da liquidação da sociedade, conferindo
ao seu titular o direito ou status de
sócio, o que implica num conjunto de direitos e obrigações.
Ora, se de um lado não se pode obrigar que a empresa aceite um sócio
que lhe é imposto por constrição judicial, substituindo-se
o que efetivamente existe, por outro, não conseguimos vislumbrar
as vantagens de um credor qualquer em aceitar o pagamento de seu crédito
na forma de um direito de participação societária,
que não só lhe acarretará direitos, mas também
inúmeras obrigações.
Como estímulo à reflexão e em atenção
ao que fora discorrido, cumpre-nos explicitar uma
imprópria, infeliz e lastimável decisão do STF,
preconizada em voto pelo eminente Ministro Relator NELSON HUNGRIA, onde,
a nosso ver, tem-se uma ofensa clara ao princípio da personalidade
jurídica, além de ignorar-se a questão da cessibilidade
das cotas sociais a terceiros, fato tão debatido atualmente:
"são penhoráveis as cotas de
sociedade limitada, substituindo-se à final o credor
exeqüente nas vantagens e ônus
do quotista-executado, independentemente de
assentimento dos demais". (grifo nosso). (RE
24.118, Rel. Min. Nelson Hungria).
Não é possível, realmente, aceitar tal julgado.
A sociedade por cotas constitui, antes e acima de
tudo, um contrato em que os sócios representam parte fundamental,
tanto que o art. 302, I do
CCom., soube tornar indispensável a assinatura dos sócios.
Desta forma, não subsistem dúvidas que a retirada de um sócio
e, por conseqüência, a entrada de um terceiro, constitui significativa
alteração no contrato social. Ora, nos termos do art.
15 do Decreto 3.708, de 1919, qualquer
modificação no contrato social exige o assentimento de,
pelo menos, a maioria dos sócios. Sendo necessário esse assentimento
para a perfeita transferência de uma cota, não há como
justificar sua alienação em hasta pública.
Enfim, nota-se que atualmente a questão já pode ser resolvida.
Havendo cláusula contratual que
permita a cessibilidade das cotas sociais a terceiros, não se
enxerga razão plausível para o
obstamento da penhora. O que se precisa ter em mente, no estudo em
exposição, é a certeza de que os fundos sociais não
pertencem ao sócio cotista, mas antes e acima de tudo à sociedade.
Sustentar o contrário (como ainda pregam alguns) é ignorar
toda a evolução da teoria da
personalidade jurídica, e negar a autonomia do seu patrimônio,
nome social, domicílio e
nacionalidade, em relação aos seus órgãos,
haja vista que a sociedade legalmente constituída
exerce direitos e assume obrigações com terceiros.
RUBENS REQUIÃO depara-nos com uma realidade jurídica quando diz que "preocupa a alguns juizes, pressionados pelas partes, o fato de que, não existindo outros bens do devedor-cotista, ficará ele imune ao processo de execução, apresentando-se como aparente devedor insolvente".
Cumpre-nos, com base em seus ensinamentos, dizer que a penhora deve recair sobre os créditos que o devedor possuir em conta corrente da sociedade, ou sobre os lucros que da sociedade resultar, após o balanço. Caso não haja lucros, a penhora somente poderá ser feita na liquidação da sociedade, sobre o produto líquido que couber em pagamento ao cotista-devedor. Se houver, todavia, o uso da mesma para a prática de atos fraudulentos ou com abuso de direito, como p.ex.:, a transferência de seus bens para a sociedade por cotas, restará ao juiz o recurso de, examinando a situação e constatando a fraude, aplicar a doutrina do Disregard of Legal Entity, ou seja, desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade, mandando penhorar os haveres do sócio na sociedade.
Como observamos, trata-se de matéria sensível e relevante.
O que não se pode conceber,
entretanto, é que a pretexto de saldar o débito com o
credor, com bens e ou valores da sociedade, se prejudique a empresa, a
quem se tem, atualmente, elevado como instrumento necessário ao
bem comum, como fonte de produção e de riquezas, em benefício
de toda a coletividade. Aliás, a nova Lei de Falências, em
tramitação no Congresso Nacional, surge como um remédio
jurídico de ajuda à empresas em situação financeira
delicada, de maneira a evitar, tanto quanto possível, a decretação
de sua quebra, pois, com este ato, agravaria-se o problema atual do desemprego,
além, é claro, de perder o próprio Estado, por deixar
de arrecadar os tributos necessários a sua auto-sustentação.
Admitir-se a penhora pura e simples de cotas do sócio na sociedade,
em execução por dívidas
particulares de sócio, além de um ato injurídico,
é conceber com aqueles que querem a completa destruição
de uma espécie em extinção: as empresas.
* retirado de: http://www.neofito.com.br/front.htm