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LIDE NO PROCESSO DE DÚVIDA DO REGISTRO IMOBILIÁRIO
BRUNO
MATTOS E SILVA
(Prof. de Direito Comercial do UniCEUB e autor do livro "Compra de Imóveis".)
Se o oficial do
registro imobiliário exigir do apresentante de um título
a registro o preenchimento de qualquer requisito atinente ao registro do
título, tem o apresentante três alternativas possíveis:
1) atender às exigências; 2) desistir do registro título;
3) requerer seja a dúvida suscitada, para ser dirimida pelo
juiz corregedor, ao qual está o oficial do registro imobiliário
hierarquicamente vinculado quanto ao mérito dos atos a praticar
na condição de agente público (delegado).
Na hipótese
1 o registro será efetuado; na hipótese 2, o apresentante
terá direito à restituição dos emolumentos
pagos por ocasião da apresentação do título
(art. 14, da LRP), exceção feita aos referentes à
busca e à prenotação (art. 206, da LRP), mas o título
não será registrado e ele não obterá os direitos
decorrentes do registro do título (ex. aquisição da
propriedade do imóvel, que é decorrente do registro da escritura
pública de compra e venda).
Na hipótese
3, o oficial do cartório suscitará um processo administrativo,
em razão do requerimento do apresentante do título, ao seu
juiz corregedor. Esse processo é chamado de processo de dúvida.
Dúvida,
em seu sentido técnico, é a exigência formulada pelo
oficial do registro imobiliário ao apresentante do título.
Embora o processo
de dúvida culmine com a declaração de procedência
ou de improcedência da dúvida, não tem ele a
natureza de processo judicial. Ademais, como se pode intuir, não
há conflito de interesses entre o oficial do cartório e o
apresentante do título, razão pela qual, a princípio,
esse processo administrativo não é litigioso.
Por outro lado,
não tem o processo de dúvida a natureza jurídica de
uma “promoção administrativa”, não sendo o meio cabível
para que o oficial do registro imobiliário esclareça suas
“dúvidas”, de caráter subjetivo. Muito ao revés, o
oficial de registro imobiliário deve apenas fazer as exigências
que entender cabíveis e não as que, por “dúvida” sua,
pense que, talvez, sejam adequadas ou exigíveis.
Se o juiz julgar que a exigência formulada pelo oficial não é devida, prolatará sentença pela improcedência da dúvida. Não tem direito o oficial do registro imobiliário a recorrer dessa decisão – exatamente por falta de interesse e de legitimidade, uma vez que ele não é titular de qualquer direito em julgamento – devendo apenas cumprir a decisão, registrando o título apresentado. Os efeitos desse registro retroagirão à data da prenotação (protocolo para registro) do título, com efeitos erga omnes.
Contudo, se entender
que é devida, prolatará sentença pela procedência
da dúvida. Evidentemente, tem interesse e direito o apresentante
a recorrer, por meio de apelação (art. 202, da LRP),
dessa decisão, que será apreciada pelo órgão
judicial que for, administrativamente, superior ao juiz corregedor, nos
termos da legislação local.
Importante notar
que, a despeito da decisão final, no processo de dúvida,
quanto ao cabimento (juridicidade) da exigência formulada pelo oficial
(dúvida) ser dada por um órgão do Poder Judiciário,
a natureza jurídica dessa decisão não é judicial,
mas sim administrativa. Com efeito, o que existe é um pedido administrativo
diretamente ao órgão do Estado (cartório imobiliário)
encarregado da prestação de um serviço público
(registro). Se o agente público (oficial do registro) se nega a
prestar esse serviço, de forma fundamentada (dúvida),
tem direito o apresentante do título, por meio do instituto de direito
administrativo denominado direito de petição (que,
no caso, se traduz no direito de requerer seja a dúvida suscitada),
a que seja o cabimento da dúvida apreciado pelo juiz corregedor.
Além disso, ainda terá o apresentante o direito à
apelação dessa decisão, conforme vimos acima. Tudo
isso, porém, está no âmbito administrativo, a despeito
dessas competências administrativas terem sido conferidas a órgãos
do Poder Judiciário.
E tanto é
assim que o art. 204, da LRP, não exclui a possibilidade da utilização
de processo judicial, ao estabelecer que “a decisão da dúvida
tem natureza administrativa e não impede o uso do processo contencioso
competente”.
Contudo, na hipótese
de existir um terceiro interessado do registro do título, isto é,
interessado em que o registro não seja feito, haverá um conflito
de interesses. Disso decorre que existirá lide no processo de dúvida?
Imaginemos que
duas pessoas procederam ao pedido de registro de duas hipotecas incidentes
sobre o mesmo imóvel. Qual será a prioritária? Se
a dúvida suscitada por ocasião do primeiro pedido de registro
for julgada improcedente, a segunda hipoteca não terá
prioridade: como se vê, o interesse do segundo apresentante
ficará prejudicado.
O processo de
dúvida não julgará, de forma direta, o conflito de
interesse entre os apresentantes dos títulos. Ele estará
latente no processo de dúvida, mas não será por ele
apreciado.
Tem interesse,
note-se, esse segundo apresentante a recorrer da decisão que julgar
improcedente a dúvida formulada pelo oficial do registro imobiliário
em face de título do primeiro apresentante, exatamente porque contraditório
com o seu. A Lei de Registros Públicos, inclusive, estabelece esse
direito de forma expressa, no art. 202.
No caso, se há
dois títulos apresentados por duas pessoas com interesses antagônicos,
no bojo de um processo (ainda que de natureza administrativa) que dará
uma decisão pela procedência, por via reflexa, de um pedido
contraditório com o de outro, há um manifesto conflito de
interesses entre dois particulares. Disso não decorre, contudo,
que o processo de dúvida tenha a natureza de um processo litigioso,
mesmo se latente o conflito de interesses entre os apresentantes dos títulos
contraditórios: esse conflito de interesses está fora do
âmbito do processo de dúvida.
É importante
observar que o objeto do processo judicial – cabível para dirimir
de forma direta o conflito de interesses entre as partes - é mais
amplo do que o de dúvida: com efeito, no processo judicial podem
ser discutidas questões relacionadas com o registro, mas também
com o título, com o ato jurídico gerador do título,
bem como com a causa ensejadora do ato jurídico em questão.
Já no processo de dúvida, apenas se discute questões
diretamente relacionadas com o registro do título de um dos apresentantes,
que se traduzem no cabimento ou descabimento das exigências formuladas
pelo oficial do cartório imobiliário.
Na verdade, a
ausência de litigiosidade do processo (administrativo) de dúvida,
mesmo na hipótese em que existe um terceiro com interesse conflitante,
com direito de recorrer, decorre da ausência de objetivo de ser o
conflito de interesses nele dirimido: visa apenas o processo de dúvida
afirmar se a exigência formulada pelo oficial é devida ou
não. O processo de dúvida não visa dirimir conflito
de interesse entre as partes: exatamente por isso ele não pode ser
considerado litigioso, a despeito de existir – fora do âmbito do
processo de dúvida – um latente conflito de interesses entre os
apresentantes dos títulos em confronto.