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O pseudo-fenômeno da duplicata virtual nos termos da legislação vigente
Fábio Antunes Gonçalves*
A duplicata é um
título de crédito causal [1],
tendo em vista a obrigatoriedade do seu lastro no contrato de compra e venda ou
de prestação de serviços. Cabe advertir que ela tem sua emissão de acordo com a
faculdade do credor. Assim, não configura obrigatória a sua extração. Pode-se
dizer, de maneira precisa e segura, que, no momento em que o credor não emite a
duplicata, mas sim o boleto bancário [2],
esse decide de forma bem objetiva que em vez de remeter a duplicata, que é um
título de crédito, estará enviando na verdade uma ficha de compensação de
crédito bancária – o boleto bancário – ao seu devedor.
Há também
situações em que o credor remete à instituição bancária, por meio da internet, on line, ou no final de cada expediente, as informações de suas
notas fiscais, para que o banco cuide de providenciar a impressão do boleto
bancário e sua remessa aos devedores (em alguns casos o banco também é
responsável pela cobrança). Assim sendo, os sacados teriam a facilidade de
pagar em qualquer banco no território nacional.
O que se percebe,
nesse caso, é a formação do boleto bancário e sua remessa, e não de uma
verdadeira duplicata. O credor e a instituição bancária possuem registros
informatizados dos boletos bancários enviados, ou seja, o registro de seus
futuros créditos ou não, como componente de controle de seus recebimentos.
Entretanto, para parte da doutrina [3],
essa escrituração cibernética do boleto bancário é o registro informatizado das
supostas duplicatas virtuais, o
que parece não ter bases firmes [4].
A Lei nº 5.474/68
dispõe sobre a obrigatoriedade do livro de registro das duplicatas [5], quando realmente emitidas,
podendo ser de forma escrita e mesmo por arquivos
magnéticos. Acontece que há apenas a escrituração do boleto bancário.
Como haveria, portanto, possibilidade de registro de uma duplicata, se ela nem
sequer foi criada e emitida?
Havendo o
pagamento do boleto bancário pelo devedor, finda-se a dívida constituída
através do recebimento das mercadorias, ou da prestação de serviço,
discriminadas na nota fiscal acusada pelo comprador, no canhoto fiscal ou no
conhecimento de transporte.
O não-pagamento da
obrigação desencadeia dificuldades jurídicas de recebimento dos créditos,
mormente, quando não é emitida a duplicata e ela conseqüentemente não é enviada
para aceite ao devedor.
É admitido
legalmente que, onde não houver a duplicata em posse do sacador, em virtude de
retenção desmotivada por parte do sacado, (apenas o comprovante de entrega das
mercadorias, ou comprovação de efetiva prestação de serviço, sem a recusa do
aceite nos termos legais e mais o instrumento de protesto), pode-se proceder à
execução da Duplicata não-aceita.
Isso se faz basicamente pelo seu protesto, através das indicações em face de a
duplicata estar retida, situação totalmente respaldada na lei [6].
Circunstância
adversa ocorre quando não se verifica a existência cartular da duplicata, em
razão da emissão apenas do boleto bancário em detrimento da duplicata [7]. E é por via dessa
instrumentalização no processo que o credor pode fazer uso do benefício da ação
de execução. A lei processual exige o protesto da duplicata não-aceita para
constituição válida do título executivo, além dos comprovantes já citados para
satisfazer a correta exigência legal quanto ao modus operandi desse rito executório [8].
A possibilidade da
execução nesse caso, ditada pela lei processual, é cabível, porquanto o mau
devedor retenha a duplicata ou recuse dar o aceite (salvo nos casos previstos
pela lei), para criar certas dificuldades ao credor. Isso basta à efetivação do
protesto cambial. Antes do vencimento, justifica-se pela falta de devolução ou
aceite. Após o vencimento, o correto seria por indicação, podendo ser feito no
próprio cartório pelo possuidor do título de crédito ou por meio magnético,
através do próprio credor, ou pelo seu representante [9], desde que comprovada a remessa da duplicata. Isso porque não
se pode constituir um crédito apenas por declarações unilaterais do apresentante.
Entretanto, nas
práticas empresariais, tem-se notado somente a emissão do boleto bancário, em
vez de sua conjunção com a duplicata. Diante de uma inverdade [10], ou seja, alegando que foi
remetida a duplicata para aceite e essa não retornou, credores inescrupulosos
têm utilizado o instituto do protesto a partir das simples indicações para que
assim obtenham a certidão de protesto. O tabelião deveria exigir antes da
lavratura [11] o comprovante de
remessa da duplicata para aceite, o que na prática costuma não ocorrer, o que
acaba por favorecer a ação ilícita.
Assim, constata-se
a criação de um instrumento de protesto eivado de ilegalidade. Verifica-se que
o credor remeteu sim o boleto bancário, contudo, na execução, esse possui a
certidão de protesto, ainda que constituída de forma ilícita. Tem-se, dessa
maneira, um procedimento de protesto e um processo executório, em que a
duplicata não existe. Daí resulta a supressão cartular, ou melhor, a
inexistência da duplicata caracteriza-se por ser uma duplicata virtual.
Como já destacado,
isso não resulta de licitude, pois a Lei de duplicatas somente privilegia a
não-cartularidade [12] nas
ocorrências da efetiva remessa do título para aceite. O chamado fenômeno da desmaterialização ou duplicata virtual, na verdade nada mais é do
que a opção facultativa do credor de não mais se valer do título de crédito: a
duplicata, e sim fazer uso de uma alternativa mais rápida e barata de um papel
atípico, o dito boleto bancário.
A partir do
momento em que o credor passa a preterir a duplicata e escolhe o boleto
bancário em seu lugar, espera-se haver boa-fé por parte do devedor, haja vista
que, como já foi exposto, o boleto bancário é apenas uma ficha de compensação
de crédito e não um título de crédito típico. Entende-se que seria mais
plausível a remessa da duplicata para aceite do devedor, juntamente com o
boleto bancário. Desse modo, estaria o empresário vendedor, ou o prestador de
serviços, percorrendo o caminho legal para se garantir, numa eventual
inadimplência do devedor, que poderia ser combatida pelo rito executório. Ademais, poderia ter a duplicata aceita e devolvida, ou indicá-la para
protesto no caso de sua retenção pelo devedor.
O grande entrave
do boleto bancário é a perspectiva que o credor há de ter na boa-fé de seu
devedor, já que, não ocorrendo o pagamento no vencimento do boleto, referente à
nota fiscal de venda ou prestação de serviço, esse deverá percorrer as vias
ordinárias, em vez da execução direta, tendo em vista que não foi remetida a
duplicata para aceite, ou melhor, não houve nem sequer a sua emissão.
O controle dos
créditos a partir dos meros boletos bancários, através dos mecanismos da
informática, e a possibilidade
de protesto via simples indicação de tais papéis, ou por meios magnéticos,
ainda que de forma a agredir a prescrição legal, não se configura numa
duplicata virtual, porquanto a
lei não abraçou tal hipótese.
Quanto às novas
disposições trazidas pelo Código Civil (§ 3º do art. 889), em relação à
possibilidade da emissão de títulos de crédito a partir de caracteres criados
em computador ou em meio técnico equivalente, são esclarecedoras as ponderações
do Professor Wille Duarte Costa [13]:
"[...] o § 3º introduz uma grande bobagem pois, mandando observar
os requisitos mínimos previstos no artigo, admite que possa ser o título
emitido a partir de caracteres criados por computador. Ora, entre os requisitos
mínimos estabelecidos neste artigo está a assinatura do emitente. O que se
entende então, é que o teor do título pode ser digitado em um computador ou
meio técnico equivalente. Neste caso, pode ser criado em máquina de escrever,
em impressora gráfica, computador e até de forma manuscrita.
A emissão é ato de criar o título e entregá-lo a terceiros, já com a
assinatura. Então, não podemos admitir que o título de crédito possa ser criado
e enviado a terceiro pelo computador. Para tanto, precisaria estar
regulamentada a assinatura criptografada, o que não está. Seria preciso também
regular a chave privada e a chave pública, coisa que, certamente, quem redigiu
o artigo desconhece completamente."
Parece haver um
entendimento majoritário na doutrina de que as disposições do Novo Código Civil
não atingem as Leis especiais. Dessa forma, acredita-se que não se justifica a
necessidade de maiores delongas quanto ao assunto. Ainda que o legislador se
mostrasse inclinado à recepção dos ditos títulos de crédito eletrônicos, no
ordenamento civil, perdeu-se a oportunidade de regulamentar pontos importantes
para que, no futuro próximo, a atividade empresarial tenha tais títulos como
opção.
NOTAS:
[1] Cf. arts. 1º e 2º da Lei de Duplicatas (5.474/68).
[2] FERNANDES, Jean Carlos. Ilegitimidade
do boleto bancário: protesto, execução e falência, p. 13: "Os
boletos bancários, portanto, como comumente são conhecidos, não passam de
simples papéis de cobrança, não caracterizados como títulos de crédito pela
legislação vigente".
[3] Nesse sentido: COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial, 2003; MALTA, Nancy Raquel Felipetto.
A legitimidade do protesto e da
execução do boleto bancário: protesto, assinatura digital e ação de
execução de duplicata virtual. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Ed., 2005.
[4] DWORKIN, Ronald. O Império do
Direito. Tradução Jéferson Luiz Camargo. 1. ed. 2. tir. São Paulo:
Martins Fontes, 2003. p. 111: "Podemos obter uma visão mais ampla de nossa
cultura jurídica observando de que modo ela se desenvolve e como seu caráter
geral muda através dos tempos. Certas soluções interpretativas, incluindo
pontos de vista sobre a natureza e a força da legislação e do precedente, são
muito populares em determinada época, e sua popularidade, ajudada pela inércia intelectual normal, estimula
os juízes a considerá-las estabelecidas para todos os propósitos práticos." (Grifo nosso).
[5] Cf. artigo 19 da Lei de Duplicatas (5.474/68).
[6] Cf. artigo 15 da Lei de Duplicatas (5.474/68).
[7] Referir-se a não-existência
da duplicata significa dizer que em momento algum ela foi emitida ou criada, e
não no sentido de retenção por parte do devedor, destarte inexiste no processo
de execução.
[8] Cf. processo aplicável aos títulos executivos extrajudiciais, de que
cogita o Livro II, do Código de Processo Civil.
[9] Cf. prescrevem os artigos 13 e 14 Lei de Duplicatas (5.474/68).
[10] Nesse mesmo sentido, Jean Carlos Fernandes: "É totalmente
censurável admitir a efetivação do protesto por simples indicações com base em
dados colhidos de meros boletos de cobranças apresentados aos tabeliães,
principalmente quando se faz referência falsa à emissão e à remessa de
duplicatas para os supostos sacados" (FERNANDES, Jean Carlos. Ilegitimidade do boleto bancário:
protesto, execução e falência, p. 102).
[11] Cf. prescreve o artigo 9º da Lei nº 9.492/97.
[12] "Em el plano del ejercicio de los derechos, la
incorporación significa que los derechos no pueden ejercitarse sin la posesión
del título. Esta circunstancia permite establecer ciertas reglas o principios
que fortalecem la posición del adquirente [...]". PAZ-ARES, Candido.
La desincorporacion de los titulos-valor. Colegios
notariales de España. Revista de Derecho Mercantil, n. 219, 1996. p.
85. Disponível em:
<http://www.estig.ipbeja.pt/~ac_direito/dcomoperarevistastc.html>. Acesso
em 12 mar. 2008. Tradução livre: "No plano do exercício dos direitos, a
incorporação significa que os direitos não podem ser exercitados sem a posse do
título. Essa circunstância permite estabelecer certos princípios que fortalecem
a posição do portador [...]".
[13] COSTA, Wille Duarte. Títulos
de crédito: de acordo com o novo Código Civil, p. 43.
REFERÊNCIAS:
COELHO, Fábio
Ulhoa. Curso de direito comercial.
4. ed. rev. e atual. de acordo com o novo Código Civil e alterações da LSA. São
Paulo: Saraiva, 2003. v. 1.
COSTA, Wille
Duarte. Títulos de crédito: de acordo
com o novo Código Civil. Belo Horizonte:
Del Rey, 2003
DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Tradução
Jéferson Luiz Camargo. 1. ed. 2. tir. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
FERNANDES, Jean
Carlos. Ilegitimidade do boleto
bancário: protesto, execução e falência. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.
MALTA, Nancy
Raquel Felipetto. A legitimidade do
protesto e da execução do boleto bancário: protesto, assinatura digital
e ação de execução de duplicata virtual. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris
Ed., 2005.
PAZ-ARES, Candido.
La desincorporacion de los titulos-valor. Colegios
notariales de España. Revista de Derecho Mercantil, n. 219, p.
81-106, 1996. Disponível em:
<http://www.estig.ipbeja.pt/~ac_direito/dcomoperarevistastc.html>. Acesso
em 12 mar. 2008.
* Advogado. Mestre em Direito Empresarial.
Pós-graduando em Direito Privado.
Disponível em:
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11842
Acesso em: 08 out.
2008.