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'SUBSTANTIAL PERFORMANCE' EM CONTRATO DE LEASING, NOTIFICAÇÃO E A PRESUNÇÃO (JURIS TANTUM) DA MORA.  FUNDAMENTOS QUE NÃO AUTORIZAM O DESAPOSSAMENTO DO BEM ARRENDADO

    João Antonio César da Motta

         Seguidamente se deparam operadores do direito com pretensões de resolução de contratos de longa duração, com gravíssimas conseqüências, postuladas por afoitos credores que buscam, através de liminares, expedito meio de chantagear a um pagamento sem maiores discussões.  Tal se dá, por exemplo, em contratos de leasing,onde os prazos normalmente não são menores do que 24 (vinte e quatro) meses.  Assim, cumprido o contrato por mais de 20 (vinte) meses e, até mesmo, em 23 das 24 parcelas, ante eventual inadimplemento (seja por que motivo for) a empresa Arrendadora se apressa em notificar a  Arrendatária e, de acordo com a construção jurisprudencial, caracterizada a mora e configurada a posse precária, busca a reintegração de posse do bem que, como explica a prática diuturna, vem a ser  deferida sem uma maior análise quanto ao que se  encerra no bojo do contrato.

                                                    E isso porque:
 Cabível é o interdito de reintegração de posse no
 caso de inadimplemento de contrato de
 arrendamento mercantil de coisa móvel.

 RT 603/212

 No contrato de leasing a via apropriada para recuperar a
 posse do bem arrendado, após a notificação para o
 pagamento do débito atrasado, é a ação de reintegração de
 posse.

 RT 653/188
 Ora, lançar mão de ação de reintegração de posse
 representa o uso anômalo de um direito e MIGUEL
 REALE, in Lições Preliminares de Direito, Saraiva,
 1985, p. 180, aponta que o abuso de poder negocial
 (v.g. processual) é manifesto quanto o detentor
 exerce-o além do necessário e razoável à satisfação
 de seu direito e, no caso aqui trazido a exame,
 verifica-se que a Arrendadora, por força da
 sorrateira liminar de reintegração de posse por ela
 querida, pretende obter o afastamento de garantias
 constitucionais e de ordem pública (judicialização
 dos pleitos).

 Colha-se as exatas palavras do eminente mestre:
 O abuso de poder, tanto como o desvio de poder, é
 causa de ineficácia ou anulabilidade das relações
 jurídicas, tanto privadas como públicas. No primeiro
 caso, o detentor do poder exerce-o além do
 necessário e razoável à satisfação de seu direito ou
 à realização da função pública, causando danos a
 terceiros; no segundo caso, o poder é desviado de
 sua finalidade específica, para servir de instrumento
 a fins diversos daqueles que constituíram a razão de
 ser do poder reconhecido ou outorgado.

 Em tais casos, não há que se indagar se houve culpa ou dolo
 por parte do agente: o poder que ultrapassa os limites que
 lhe consente a lei, ou que se desvia de seu escopo legítimo,
 torna, só por isso, anulável o ato ou negócio jurídico.
 Em verdade, há sim situação que autoriza seja
 vedado o uso abusivo de um direito, máxime
 quando este direito não existe em face da aplicação
 do princípio da substantial performance !!!

 É que se deve aplicar à espécie a chamada 'Teoria do
 Adimplemento Substancial da Obrigação'.

 Sobre tal princípio jurídico, tem-se que representa '... um
 adimplemento tão próximo ao resultado final, que,
 tendo-se em vista a conduta das partes, exclui-se o direito
 de resolução, permitindo tão somente o pedido de
 indenização' (cfe. CLÓVIS DO COUTO E SILVA, in O
 Princípio da Boa Fé no Direito Brasileiro e Português, Rev.
 Estudos de Dir. Civil e Português, pp. 56/57).

 No sistema da common law tal princípio é antigo e, tal
 como nas palavras do Prof. Clóvis acima transcritas,
 representa uma substancial performance do contrato,
 impedindo efeitos negativos a uma parte em benefício de
 outra.

 Basicamente, consiste em evitar-se a desproporção de
 meios para se exigir uma contraprestação, evitando-se os
 malefícios de uma resolução quando, do quadro geral da
 obrigação, se pode divisar um adimplemento suficiente a
 evitar-se a ruptura do pacto, entendendo tal adimplemento
 como se fosse o integral para manutenção do status quo
 contratual, podendo a parte exigir apenas o restante, sem
 sacrificar o todo.

 Para que fique mais nítido:
 The performance of all essential terms of a contract
 so that the purpose of the contract is
 accomplieshed; however, un important omissions
 and technical defects may exist in the strict
 performance of the contract, see 272 S.W. 616,
 619; "that performance of a contract which, while
 not full performance, is so nearly equivalent to what
 was bargained for that it would be unreasonable to
 deny the promisee the full contract price subject to
 the promisor's right to recover whatever damages
 may have been occasioned him by the promisee's
 failure to render full performance." 247 So. 2d 72,
 75.

 Substantial Performance (compliance), in LAW DICTIONARY,
 3d. Edition, Barron's, 1991.
 Nesta ordem de idéias, igualmente por tal motivo
 haveria de se ter como abusiva a utilização da
 resolução do contrato quando, em verdade, foi ele
 substancialmente cumprido.

 Seguindo esta orientação, se pode ver decisão do então
 Desembargador RUY ROSADO, hoje Ministro da 4ª Turma
 do egrégio SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA que,
 quando componente da colenda 5ª Câmara Cível do
 egrégio TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO
 SUL, negando resolução contratual e reintegração de
 posse em contrato de compra e venda, assestou o
 seguinte:
 A ação de rescisão de contrato improcede porque a
 compradora cumpriu substancialmente a sua
 obrigação, não podendo ser o atraso na última
 prestação causa justificadora para a resolução do
 negócio, assim como pretendido na inicial. O
 desfazimento caracterizaria gravíssima injustiça,
 desatendendo a uma exigência do moderno Direito
 das Obrigações, onde pontifica o princípio do
 adimplemento substancial, segundo o qual o
 cumprimento próximo do resultado final exclui o
 direito de resolução, facultando apenas o pedido de
 adimplemento e o de perdas e danos; 'mas não se
 permitiria o pedido de resolução, se essa pretensão
 viesse ferir o princípio da boa-fé' (Prof. Clóvis do
 Couto e Silva, 'Estudos de Direito Civil e Português',
 p. 56-57).

 Portanto, ainda que a compradora efetivamente tivesse
 voluntariamente deixado de pagar a última prestação, assim
 como alegado na petição inicial, e estivesse em mora, ainda
 nesse caso a ação improcederia cabendo apenas à
 vendedora haver a reparação dos danos porventura
 sofridos. É preciso ficar bem claro que a parêmia 'dura lex,
 sed lex' cedeu lugar à necessidade de decidir-se com
 razoabilidade as situações em concreto, pois o compromisso
 maior do Estado de Direito é com a justiça. A mim parece
 profundamente injusto, e até imoral, alguém receber
 inúmeras prestações de um contrato de execução
 prolongada e depois, pelo simples atraso da última parcela,
 vir em juízo brandir a cláusula de pacto comissório,
 pretendendo desfazer o negócio e recuperar a propriedade
 do imóvel, que, por força de política econômica, então
 vigente, valorizou-se muito acima de outros bens.

 Apel.Cível nº 588.012.666 (no mesmo sentido TJRGS,
 Apel.Cível nº 592.026.751, Rel. Osvaldo Stefanello)
 Nesta ordem de idéias, o pleito de reintegração de
 posse será manifestamente viciado, posto que
 restando uma única, ou mesmo poucas parcelas de
 um contrato de longa duração, é evidente que pelo
 princípio do adimplemento substancial da obrigação
 (substancial performance), não pode a
 Arrendadora em hipótese alguma postular a
 resolução do contrato, mas apenas e unicamente o
 valor alegadamente faltante.

 No mais, a conseqüência do abuso da Arrendadora poderá
 traduzir, inapelavelmente, a bancarrota da empresa. Seja
 pelo desapossamento do bem, no mais das vezes vital a
 atividade econômica do empreendimento, seja pela
 alocação imediata de capital, muitas vezes obtido a custo
 altíssimo na rede bancária, para obstaculizar a chantagem
 liminar efetivada.

 E se diz chantagem liminar porque a utilização de pleito
 liminar em reintegração de posse em contrato de leasing,
 do qual foram cumpridas quase em sua integralidade as
 contraprestações ...
 Constitui perigosa arma de dois gumes nas mãos do
 magistrado, que poderá cercear injustamente o
 exercício de direitos legítimos, envolvido pela
 cavilação do embuste ou pela falaciosa aparência do
 direito alegado por quem carece, na verdade, de
 razão. E assim há o risco, para desprestígio da
 Justiça, de que uma liminar, dada por inadvertência,
 se transforme em instrumento iníquo de pressão,
 para extorquir do adversário vantagens e
 transações indevidas.

 GALENO LACERDA, in Comentários ao CPC, Vol. VIII, T. I,
 Forense, 1993, p. 89.
 Em verdade, há sim situação que autoriza seja
 vedado o uso abusivo de um direito, máxime
 quando este direito não existe em face da aplicação
 do princípio da substantial performance !!!

 De mais a mais, há de se ver que a posse precária
 traduzida pela notificação premonitória é 'formalizada' sob
 a exclusiva responsabilidade da empresa arrendadora,
 tratando-se, na espécie, de documento unilateral.

 E dispõe o art. 368 do Código de Processo Civil:
 Art. 368. As declarações constantes do documento
 particular, escrito e assinado, ou somente assinado,
 presumem-se verdadeiras em relação ao signatário.

 Parágrafo Único - Quando, todavia, contiver declaração de
 ciência, relativa a determinado fato, o documento particular
 prova a declaração, mas não o fato declarado, competindo
 ao interessado em sua verdade, o ônus de provar o fato.
 Por isso, a declaração de ciência retratada no
 parágrafo único do dispositivo legal acima transcrito
 não tem o condão de provar (caracterizar) a
 mora, sendo uma presunção relativa ('...mas não o
 fato declarado'). Máxime se os valores expressos
 na declaração não retratarem a legalidade.

 Através deste raciocínio lógico se pode concluir - em última
 análise - que para prova da mora é necessário bem mais
 que a notificação extrajudicial, mas sim instrução
 processual (ainda que em cognição sumária), sem a qual
 não se pode estabelecer que valores são devidos, e se é
 que são devidos.

 Só assim seria possível debitar mora à arrendatária.

 Aliás, não há se confundir inexecução de obrigação com
 mora; porquanto, a primeira pode resultar de inequívoco
 direito do 'devedor' em reter o pagamento até ver
 expurgadas da obrigação a ser solvida as ilegalidades que
 carrega.

 Como decorrência das corriqueiras ilegalidades praticadas
 (juros sobre valor residual, juros capitalizados, etc.),
 evidencia-se que a inexecução contratutal, em tais
 hipóteses, decorre da exigência, por parte da instituição
 financeira, de encargos ilegais com o aumento artificial e
 abusivo do débito.

 Em decorrência disso, a recusa de pagamento dos valores
 exigidos e contratualmente dispostos de forma unilateral é
 justa (não se olvide o caráter adesivo do contrato).

 Com efeito, uma vez caracterizadas as práticas ilegais que
 resultaram no indevido aumento da dívida, então, os
 valores exigidos pela instituição financeira não eram
 devidos (ao menos, na sua inteireza). A cobrança de
 encargos indevidos descaracteriza a mora debitoris.

 Dispõe o art. 955 do Código Civil:
 Art. 955 Considera-se em mora o devedor que não
 efetuar o pagamento e o credor que não o receber
 no tempo lugar e forma convencionados.
 Da norma legal, extrai-se que a mora não decorre,
 exclusivamente, do não pagamento, porquanto a
 obrigação do devedor é a de pagar o devido. Se o
 credor está a exigir o que não é devido, por óbvio,
 não surge para o devedor o dever jurídico de pagar.

 Poder-se-ia alegar que, se o credor está a exigir mais do
 que o devido, impunha-se a consignação. Em primeiro,
 diga-se que o raciocínio é equivocado, eis que:
 PROCESSO CIVIL. CONSIGNAÇÃO EM PAGAMENTO.
 FACULDADE DO DEVEDOR, MESMO QUE SE
 ENCONTRE EM MORA.

 O devedor não está obrigado a consignar a quantia devida,
 podendo ajuizar ou não a ação.
 ...

 STJ - 2ª TURMA, REsp. nº 38.204-RJ, rel. Min. HÉLIO
 MOSIMANN, DJU 27/05/1996, Seção 1, p. 17.844
 Em segundo, os direitos subjetivos de natureza
 material, de regra, armam o seu titular de duplo
 instrumento, qual seja: a ação e a exceção. A
 ação, sabidamente, é a faculdade que tem o titular
 de um direito subjetivo de exigir em juízo; já as
 exceções de direito material correspondem à forma
 reativa do direito subjetivo.

 Ao titular de um direito subjetivo, armado de ação, pode
 não convir o exercício desta faculdade. Sendo este mesmo
 direito dotado de exceção de direito material, pode ela ser
 utilizada como matéria de defesa em contestação.

 É o caso do devedor de quem se exige mais do que o
 devido. Tanto pode ele acionar o credor para obter a
 devida quitação (consignação em pagamento), como pode
 reter o pagamento, até que o credor se disponha a
 fornecer a quitação regular. Esta segunda faculdade, que
 se constitui em exceção de direito material, pode ser
 oposta como matéria de defesa na ação em que se lhe
 exigir o pagamento.

 É o que dispõe o art. 939 do Código Civil:
 Art. 939 O devedor, que paga, tem o direito de
 exigir a quitação regular (art. 940) e pode reter o
 pagamento, enquanto não lhe for dada.
 Poder-se-ia alegar, ainda, que o devedor não pagou
 e, portanto, em tal hipótese, ocorreria a previsão
 fática do artigo 939 do C.C.

 Também aqui tal raciocínio é equivocado. A retenção do
 pagamento serve tanto para a hipótese de recusa pura e
 simples de fornecimento de quitação, como para a
 hipótese em que a recusa é ínsita à conduta do credor. É
 logicamente dedutível que o credor que exige mais do que
 o devido recusará quitação se o devedor pretender pagar
 apenas o que deve realmente. A prova da recusa em
 receber o devido é a própria exigência do indevido.

 Para verificar a incidência do art. 939 do Código Civil à
 hipótese de recusa de pagamento de obrigação ilicitamente
 majorada, basta que se responda à seguinte indagação:
 Se a empresa devedora pretendesse pagar o seu
 débito, expungidas todas as ilegalidades já
 apontadas, a credora aceitaria o pagamento,
 fornecendo quitação ?
 A pergunta contém tal obviedade que prescinde de
 resposta.

 É por esta razão que o direito de reter o pagamento se
 verifica, também, nas hipóteses em que o credor insiste na
 cobrança de encargos indevidos ou ilegais, como
 usualmente é o caso.

 Em resumo, e em conclusão, não se caracteriza a mora
 quando o credor exige do devedor o indevido, não surgindo
 para o devedor, nem o dever jurídico de pagar o indébito,
 nem o dever jurídico de ajuizar consignatória, posto que
 ação é faculdade e não dever.

 Aliás, a recusa ao pagamento, como é conseqüência
 irrefutável, no mais das vezes resta amplamente
 justificada, consoante o comando do art. 963 do Código
 Civil.

 Segundo o escólio de CARVALHO SANTOS (in Código
 Civil Brasileiro Interpretado, vol. XII, p. 310), a mora
 pressupõe o retardamento injusto, imputável ao devedor,
 sendo certo que:
 Ainda mais: é essencial que o devedor saiba o que
 deve, o quanto deve, a quem deve fazer a
 prestação. Desses requisitos resultam estas
 conseqüências geralmente aceitas: a) quem é
 protegido por uma exceção não entra em mora até
 que haja decisão sobre o que alega ...

 Ob.Cit., p. 317
 Ora, se se excluí da pretensão de crédito da
 arrendadora parcelas ilegais e abusivas, reduzindo
 substancialmente o valor originariamente pretendido
 no vencimento, é evidente que estava ela a cobrar
 mais do que a arrendatária devia, sendo injusto
 debitar ou entender em mora quando a mesma
 estava coberta pela exceção de não saber o quanto
 deve e, como acima explicitado, '... quem é
 protegido por uma exceção não entra em mora até
 que haja decisão sobre o que alega'.

 Neste exato sentido a jurisprudência:
 Se se exclui da execução várias parcelas, por serem
 exorbitantes, é óbvio que o credor estava a cobrar
 mais do que podia e mais do que o devedor devia.
 Logo, é injusto debitar mora aos
 apelantes-embargantes, com a conseqüente
 imposição da pena convencional. Exclui-se-a,
 portanto.

 TARGS, 9ª Câmara Cível julgando em 09 de fevereiro de 1993
 a apelação nº 192.249.282
 E, em igual sentido é o escólio de decisão da Corte
 de Justiça que, constitucionalmente, tem a função
 de zelar e preservar a inteireza positiva do
 ordenamento jurídico pátrio, assestando quanto a
 interpretação do citado artigo de Lei Federal o
 seguinte:
 MORA. CULPA DO DEVEDOR.

 Não há mora do devedor quando inexistente culpa sua,
 elemento exigido pelo artigo 963 do CC para sua
 caracterização.

 Inexistindo mora, descabe condenar em juros moratórios e
 em multa.

 STJ - 4ª TURMA, REsp. nº 82.560-SP, rel. Min. RUY ROSADO,
 DJU 20/05/1996, Seção 1, p. 16.717
 Como demonstrado, nada justifica imputar mora a
 quem está ao abrigo de uma exceção, bem como
 não se justifica, apenas com a notificação
 premonitória, sem análise de seu conteúdo e das
 obrigações defluentes do contrato (substantial
 performance), conceder liminar de reintegração de
 posse como, comumente, se observa no dia-a-dia
 forense.

 João Antonio César da Motta