O
RESTABELECIMENTO DO ALIENANTE APÓS A TRANSFERÊNCIA
DO ESTABELECIMENTO
Luiz Alberto Gurgel de Faria
1.INTRODUÇÃO
Nos
últimos tempos, o mundo vem atravessando um processo
que
se resolveu denominar "globalização", com importantes
conseqüências
para a economia dos países.
Um
dos seus principais efeitos foi a formação de grandes
blocos
econômicos, em face da associação das nações,
objetivando
a derrubada das barreiras alfandegárias e a
criação
de uma área comum de livre comércio, como já se
observa
na Europa e nos países signatários do Nafta e do
Mercosul.
Outro
resultado desse fenômeno foi uma onda de fusões,
incorporações
e vendas de empresas e de estabelecimentos
comerciais,
principalmente nos casos das firmas que chegam
para
se instalar em outros países, normalmente optando por
ingressar
no novo mercado através de empreendimentos já
estabelecidos.
Assim,
o momento é propício para se reestudar a questão do
restabelecimento
do alienante após a transferência do fundo
de
comércio. Pode haver o retorno ao exercício da mesma
atividade
em um curto espaço de tempo?
As
respostas a esta e a outras indagações constituem, pois,
a
finalidade
do presente trabalho.
Há
de se registrar que, não obstante dirigido de forma mais
específica
à análise da interdição da concorrência,
o ensaio
tem
início com algumas noções básicas acerca do
tema central
do
qual deriva - estabelecimento comercial -, de forma a
facilitar
a sua compreensão, destacando-se, ainda, institutos
por
vezes suscitados junto à questão do restabelecimento - o
aviamento
e a clientela -, o que justifica a explanação, ainda
que
célere.
2.ESTABELECIMENTO COMERCIAL
1.Conceito
Não
se pode começar a desenvolver um tema sem traçar os
seus
contornos, daí porque a preocupação inicial em elucidar
a
definição de estabelecimento comercial, também conhecido
pelas
expressões fundo de comércio, utilizada pelos franceses
(fonds
de commerce) ou azienda, esta última em face da
influência
do direito italiano no estudo do instituto.
Analisando
a posição dos doutrinadores acerca da matéria,
observa-se
que a mesma não comporta maiores
controvérsias.
Para
o Professor Alfredo de Assis Gonçalves Neto
(Estabelecimento
Comercial, divulgado no Curso de
Mestrado
em Direito ministrado na UFRN, Natal/RN,
março/98),
"o estabelecimento comercial é, assim, o conjunto
de
bens (elementos) de que se utiliza o empresário para o
exercício
de sua atividade ou, mais precisamente, o complexo
de
bens utilizados pelo empresário como instrumento de sua
atividade
empresarial; é, em resumo, sua ferramenta de
trabalho".
Já
Rubens Requião (Curso de Direito Comercial, 1º volume,
21ª
edição, São Paulo, Saraiva, 1993, p. 203/4), assim
leciona:
"O fundo de comércio ou estabelecimento comercial é
o
instrumento da atividade do empresário. Com ele o
empresário
comercial aparelha-se para exercer sua atividade.
Forma
o fundo de comércio a base física da empresa,
constituindo
um instrumento da atividade empresarial. O
Código
italiano o define como o complexo dos bens
organizados
pelo empresário, para o exercício da empresa".
Em
sua obra Teoria do Estabelecimento Comercial (2ª
edição,
São Paulo, Saraiva, 1988, p. 75), o Mestre Oscar
Barreto
Filho lança a seguinte definição: "complexo de bens,
materiais
e imateriais, que constituem o instrumento utilizado
pelo
comerciante para a exploração de determinada atividade
mercantil."
Em
resumo, o estabelecimento comercial constitui o conjunto
de
bens empregados pelo empresário no exercício de sua
atividade.
2.Natureza jurídica
Embora
a questão tenha suscitado polêmicas, com o
surgimento
de várias teorias, hoje em dia já se encontra
pacificada,
no sentido de que o estabelecimento comercial
deve
ser compreendido como uma universalidade de fato, ou
seja,
um conjunto de bens reunidos pela vontade de seu
proprietário,
para a consecução de um objetivo.
Não
se pode, pois, confundir a azienda com uma universitas
juris,
como alguns já defenderam, tendo em vista que esta
apenas
se constitui, no direito brasileiro, por força de lei,
como
acontece com a herança, a massa falida etc.
No
estabelecimento comercial falta essa característica do
surgimento
por determinação legal, motivo pelo qual ele se
insere
no âmbito das universitas facti, assim como ocorre
com
o rebanho, a biblioteca, dentre outros, cujas unidades
são
reunidas pela vontade de seu proprietário, formando um
todo,
de modo a alcançar uma finalidade predefinida.
3.Aviamento
Diferentemente
do que acontece com relação aos dois tópicos
anteriormente
expostos, o aviamento ainda vem levantando
certos
questionamentos.
Fran
Martins (Curso de Direito Comercial, 8ª edição, Rio
de
Janeiro,
Forense, 1981, p. 513) o qualifica como um bem
imaterial:
"Também constitui elemento do fundo de comércio a
propriedade
imaterial, que se caracteriza pelo que se
costumou
chamar de aviamento e pela freguesia, elemento do
aviamento
que, pela sua importância na marcha dos negócios
do
comerciante, tem papel preponderante nos mesmos".
Inobstante,
como adverte Alfredo de Assis Gonçalves Neto
(ob.
cit.), a maioria dos doutrinadores repudia a tese de ser o
aviamento
um bem imaterial, pois nenhum texto legal daria
apoio
a essa concepção. No mesmo sentido, Oscar Barreto
Filho
(ob. cit., p. 171) afirma que seria "mera abstração falar
do
aviamento como coisa ou elemento existente por si
próprio,
independente do estabelecimento. O aviamento existe
no
estabelecimento, como a beleza, a saúde ou a honradez
existem
na pessoa humana, a velocidade no automóvel, a
fertilidade
no solo, constituindo qualidades incindíveis dos
entes
a que se referem. O aviamento não existe como
elemento
separado do estabelecimento, e, portanto, não pode
constituir
em si e por si objeto autônomo de direitos,
suscetível
de ser alienado, ou dado em garantia" (Grifos
originais).
Assim,
afastada a idéia de ser o aviamento um bem imaterial,
nem
tampouco uma entidade independente do
estabelecimento,
há de se concebê-lo como uma qualidade ou
atributo
do estabelecimento, definindo-o, com apoio nos
escólios
dos mestres paranaense e paulista supracitados,
como
"o resultado de um conjunto de variados fatores
pessoais,
materiais e imateriais, que conferem a dado
estabelecimento
in concreto a aptidão de produzir lucros"
(Oscar
Barreto Filho, ob. cit., p. 169).
Dessa
forma, em face do aviamento, o estabelecimento
comercial
tem um valor próprio, que varia de acordo com a
qualidade
e a harmonia dos fatores mencionados, sendo
superior
à somatória de todos os bens que integram o fundo
de
comércio.
4.Clientela
O
estudo da clientela muito se assemelha ao do aviamento,
pois
em ambos os institutos encontramos características
semelhantes
e controvérsias acerca de suas reais conotações.
Há
quem defenda a posição de que a clientela se confunde
com
o próprio fundo de comércio, como Rubens Requião
(ob.
cit., p. 205): "O direito sobre o fundo de comércio é,
como
todas as propriedades incorpóreas, um direito à
clientela,
que é assegurado por certos elementos de
exploração.
A clientela não é, como se diz, um elemento
do
fundo, é o próprio fundo. Essa clientela pode ser
conquistada
ou retida por elementos diversos: a situação do
local,
o nome comercial ou a insígnia, a qualidade do material
ou
das mercadorias. Eis porque seguidamente é um ou outro
desses
elementos que é o elemento do fundo". (Grifei).
Na
verdade, assim como o aviamento, a clientela não constitui
um
elemento do fundo de comércio, mas sim um atributo ou
qualidade
desse, podendo ser compreendida como um
conjunto
de pessoas que, eventualmente ou com
habitualidade,
realiza negócios no estabelecimento.
Com
propriedade, assevera Alfredo de Assis Gonçalves Neto
(ob.
cit.): "É certo que a clientela, sob o ponto de vista
econômico,
representa um valor que, em certos casos, pode
ser
até superior ao do resultante da somatória dos bens do
estabelecimento.
Mas, assim como ocorre no aviamento, esse
valor
não existe sozinho, senão agregado ao próprio
estabelecimento.
Esse paralelo da clientela com o aviamento
fez
com que surgissem opiniões identificando-os. Todavia,
embora
ambos possam ser considerados como qualidades ou
atributos
do estabelecimento, não há como confundi-los. O
aviamento
advém de vários fatores, dentre eles o movimento
dos
negócios causado pelas pessoas que acorrem ao
estabelecimento.
Do mesmo modo, a clientela surge pela
combinação
de fatores semelhantes, podendo ser um deles o
aviamento.
Assim, ora prepondera um, ora outro: a clientela
pode
ser resultado do aviamento, da mesma forma que o
aviamento
pode resultar da clientela... não é possível falar
em
tutela jurídica do aviamento ou da clientela; eles são
protegidos
não em si mesmos, mas através das normas
que
incidem sobre o estabelecimento - isto é, sobre o
bem
que, em expressão proposital, enaltecem ou
qualificam".
(Grifei).
3.O RESTABELECIMENTO DO ALIENANTE
APÓS O TRESPASSE DO FUNDO DE
COMÉRCIO
3.1.
A alienação do fundo de comércio da Fábrica
de Juta
de
Santana
O
tema pertinente ao restabelecimento do alienante de um
fundo
de comércio ganhou relevo a partir de uma questão
judicial
envolvendo a Companhia Nacional de Tecidos de
Juta,
de um lado, como autora, e, do outro, o Conde Álvares
Penteado
e a Companhia Paulista de Aniagem, aforada em
São
Paulo, no ano de 1913.
Os
advogados das partes, por si sós, já garantiam a
excelência
dos debates, pois a ação foi patrocinada por José
Xavier
Carvalho de Mendonça, sendo que Rui Barbosa
assumiu
a defesa dos réus junto ao Pretório Excelso.
À
época, o Conde Álvares Penteado havia constituído
a
Companhia
Nacional de Tecidos de Juta, proprietária da
Fábrica
de Juta Santana, transferindo, em seguida, o fundo de
comércio.
Cerca de um ano depois, o Conde fundou nova
fábrica
no mesmo bairro em que funcionava a anterior. Assim,
sob
o argumento de que a venda do estabelecimento
comercial
importava em considerar implícita a transferência da
clientela,
a ação foi promovida requerendo a condenação
em
indenização.
A
defesa concentrou-se na tese de que a renúncia ao direito
ao
exercício de certo ramo de negócio teria que ser expressa,
o
que não ocorrera, restando vencedora, em sede de
embargos,
no Supremo Tribunal Federal.
As
teses defendidas pelos notáveis causídicos, pelas suas
importâncias,
merecem, ainda que de forma sintética, ser
elucidadas
em tópicos destacados.
2.A tese de Rui Barbosa
As
lições de Rui Barbosa acerca da matéria se encontram
esboçadas
no memorial que apresentou na Corte Suprema,
intitulado
As cessões de Clientela e a Interdição de
Concorrência
nas Alienações de Estabelecimentos
Comerciais
e Industriais, publicado na coleção "Obras
Completas
de Rui Barbosa", Vol. XL, Tomo I, Rio de
Janeiro,
Ministério da Educação e Saúde, 1948.
Dentre
os vários argumentos que formaram a doutrina
defendida,
constata-se que o principal deles se concentra no
fato
de que a vedação ao restabelecimento do alienante é
conseqüência
da cláusula expressa da cessão de clientela, de
maneira
que, inexistindo tal convenção, permite-se o retorno
ao
mesmo ramo do negócio. Do extenso e minucioso texto
acerca
do assunto, pode-se extrair a seguinte passagem, que
bem
revela tal ilação: "124. Discutindo, na parte antecedente
destas
razões, a jurisprudência indicada como favorável à
teoria
que combatemos, deixamos evidenciado que a
interdição,
ao cedente, de se reestabelecer, nas
alienações
de casas de comércio, não se verifica, onde
não
existir cessão da clientela. Outrossim, pari passu,
mostramos
que a cessão da clientela, expressão habitual
da
renúncia ao direito de se reestabelecer o cedente num
comércio
igual ao cedido, não emana ipso jure da natureza
destas
cessões, pela regra da obrigação geral da garantia
na
compra
e venda, mas de uma convenção especial entre o
negociante,
que aliena o seu negócio, e o que o adquire."
(p.
135 - grifei).
Com
base em tais considerações, verifica-se que o grande
mestre
considerava o fundo de comércio e a clientela como
coisas
distintas, que podiam, pois, cindir-se, conforme
ressaltou:
"125. Se a clientela fôsse parte inseparável do fonds
de
commerce, claro está que da cessão da casa de comércio
resultaria,
necessàriamente, a da clientela. Esta seria, então,
cláusula
inerente e subentendida nesses contratos... Acontece,
porém,
que a clientela não constitui parte inseparável da
exploração
comercial". (p. 136).
3.A Doutrina de Carvalho de Mendonça
A
corrente capitaneada por Carvalho de Mendonça é
formulada
no sentido de que o alienante tem a obrigação legal
de
fazer boa ao adquirente a coisa vendida, o que acarreta a
proibição
de se restabelecer no mesmo ramo.
Tal
posição se encontra demonstrada em sua obra Tratado de
Direito
Commercial Brasileiro, Volume VI, Livro IV, 2ª
edição,
Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1934, p. 157/8: "Uma
das
garantias devidas pelo vendedor é fazer boa ao
comprador
a cousa vendida, e não inquietá-lo na sua posse e
domínio
(Cod. Commercial, arts. 214 e 215).
Conseguintemente,
ao vendedor não é lícito, sem
autorização
do comprador, fundar estabelecimento em
que
lhe possa retirar toda ou parte da clientela. Esta
turbação
por parte do vendedor importaria privar o
comprador,
no todo ou em parte, da cousa vendida." (Grifei).
4.A Teoria atualmente aceita
No
ordenamento jurídico brasileiro, não há norma expressa
e
específica
disciplinando o restabelecimento do alienante após
a
transferência do fundo de comércio, razão pela qual
a
matéria
ficou completamente entregue ao estudo dos
doutrinadores
e à construção jurisprudencial.
Apesar
da conotação que a ação envolvendo a venda
do
fundo
de comércio da Companhia Nacional de Tecidos de
Juta
teve para o tema, no longínquo ano de 1913, com a
vitória
da tese defendida por Rui Barbosa, não se pode deixar
de
considerar que logo depois a corrente abraçada por
Carvalho
de Mendonça foi ganhando força nos Tribunais, de
modo
que, nos dias atuais, vem prevalecendo.
A
questão é mais simples quando há cláusula expressa
tratando
da interdição da concorrência. Na verdade, tal
disposição
é plenamente válida, não violando o princípio
da
liberdade
do comércio, devendo, inobstante, ser analisado o
período
da interdição e a sua abrangência quanto ao local e
ao
ramo de atividade.
Com
efeito, os fatores acima elencados são por demais
importantes
para se apurar a regularidade da avença. In casu,
o
princípio da razoabilidade tem que ser corretamente
aplicado,
investigando-se se as restrições foram
moderadamente
impostas. A jurisprudência vem se
posicionando
na direção de fixar o lapso de cinco anos como
tempo
adequado para o não restabelecimento, bem como em
que
as demais limitações sejam compatíveis com a extensão
dos
lugares e do ramo em que havia a atuação do
estabelecimento
comercial.
Ajustes
em que tais parâmetros não sejam respeitados, de
modo
a impedir por completo a possibilidade do alienante
voltar,
um dia, a comerciar, podem, destarte, serem
invalidados.
Por
sua vez, ainda quando não haja acordo explícito,
igualmente
há de se vedar o retorno do alienante ao mesmo
tipo
de negócio, nos locais em que havia a atuação do
comerciante
e durante um certo tempo - um quinquênio -,
podendo
o adquirente promover ações, nos casos de violação
da
regra, que visem à interdição do novo comércio
e à
indenização
por perdas e danos, diante da perda da clientela e
da
redução do aviamento.
O
restabelecimento indireto, ou seja, aquele realizado através
de
pessoas interpostas ou ainda como sócio ou empregado de
empresa
concorrente também é proibido.
As
opiniões dos doutos confirmam a correção das
considerações
supra destacadas:
Alfredo
de Assis Gonçalves Neto (ob. cit.): "Todavia, mesmo
na
falta de estipulação expressa, deve-se entender que o
vendedor,
ao celebrar o negócio de venda do
estabelecimento,
assume a obrigação de não se restabelecer,
salvo
se a alienação foi para diverso ramo de atividade."
Carlos
Alberto Bittar (Teoria e Prática da Concorrência
Desleal,
São Paulo, Saraiva, 1989, p. 64/5): "Em função do
princípio
da boa fé, a melhor doutrina tem assentado, no
entanto,
que a cláusula de cessão de clientela está implícita
na
alienação
do estabelecimento, razão pela qual, com o
trespasse,
não pode o vendedor montar negócio que venha a
absorver
a antiga clientela."
Fábio
Ulhoa Coelho (Manual de Direito Comercial, 9ª
edição,
São Paulo, Saraiva, 1997, p. 51): "Finalmente,
lembre-se
de que a cláusula de não-restabelecimento é
implícita
em qualquer contrato de alienação de
estabelecimento
comercial. O alienante não poderá, na mesma
praça,
em lapso temporal breve, restabelecer-se em idêntico
ramo
de atividade comercial, salvo devida autorização do
contrato."
Raúl
Aníbal Etchverry (Derecho Comercial y Económico -
Parte
General, Buenos Aires, Editorial Astrea de Alfredo y
Ricardo
Depalma, 1987, p. 539), Professor Titular de Direito
Comercial
da Universidade de Buenos Aires, após lançar
críticas
à legislação de seu país, conclui: "En efecto,
la ley
actual
no incluye el pacto de no volver a establecerse, por
parte
del vendedor, haciendo competencia desleal com el
nuevo
titular del fondo. En tal sentido, deblen establecerse en
el
contrato cláusulas expresas, para que esta obligación, que
debiera
entenderse incluida - sea operativa". (Grifei).
O
magistério do Professor Oscar Barreto Filho (ob. cit., p.
252)
reflete, em poucas e precisas palavras, a posição
atualmente
acatada : "Para atingir esse objetivo normal e
desejado
pelas partes, entende-se que, implicitamente, o
alienante
se obriga a não abrir concorrência ao adquirente, em
circunstâncias
que ensejem o desvio da clientela do
estabelecimento
transferido. Não se argumente que a
liberdade
do exercício profissional obsta à interdição
de
concorrência,
pois o exercício dos direitos individuais pode
perfeitamente
ser condicionado e admite as limitações
impostas
pela lei. A proibição absoluta de restabelecimento
do
alienante do fundo, sem quaisquer restrições, seria, à
evidência,
incompatível com a Constituição e, por
conseguinte,
nula... Cremos, portanto que o trespasse do
estabelecimento
comercial implica, virtualmente, para o
alienante
a proibição de se restabelecer com o mesmo
gênero
de negócio, em circunstâncias de tempo e de
lugar
que possibilitem o desvio da clientela do fundo
objeto
da alienação." (Grifei).
Embora
existam vozes abalizadas em contrário, como a do
Professor
Rubens Requião (ob. cit., p. 254), pugnando pela
necessidade
de cláusula expressa, o Direito Brasileiro vem,
pois,
trilhando o caminho do reconhecimento implícito do
ajuste
do não restabelecimento.
O
Projeto de lei do Código Civil, em tramitação no
Congresso
Nacional, prevê, em seu art. 1.337, que "salvo
convenção
expressa a respeito, o alienante do
estabelecimento
não pode fazer concorrência ao adquirente
durante
o período dos cinco anos subseqüentes à
transferência".
Caso
o novo Estatuto venha a ser aprovado com tal
dispositivo,
haverá não só o suprimento da omissão legislativa,
o
que ocorre há décadas, como também a matéria
deixará de
suscitar
maiores controvérsias, passando a se adotar, sem
maiores
problemas, a solução atualmente mais aceita pela
doutrina
e jurisprudência.
5.O restabelecimento do alienante e a
responsabilidade tributária
Em
seu art. 133, o Código Tributário Nacional disciplina a
situação
da responsabilidade tributária no caso da alienação
do
estabelecimento comercial, prevendo, no inciso II, a
possibilidade
do alienante arcar com os tributos devidos até a
data
do trespasse, se continuar na exploração do ramo ou
iniciar,
no prazo de seis meses, nova atividade.
Obviamente
que tal preceito regula questão de ordem
tributária,
não tendo o condão de autorizar o
restabelecimento,
devendo ser compreendido em consonância
com
a tese acolhida no Direito Comercial, de modo que terá
aplicação
nas hipóteses daqueles que desrespeitarem a
proibição
de interdição, como também nos casos em que as
partes
expressamente convencionarem a possibilidade da
concorrência.
3.6. Jurisprudência
Conforme
já mencionado, a tese da impossibilidade do
restabelecimento
do alienante não logrou aceitação apenas na
doutrina,
mas também junto às Cortes de Justiça.
Ainda
na década do famoso caso da Companhia Nacional de
Tecidos
de Juta, foram proferidas decisões contrárias à
corrente
abraçada pelo Pretório Excelso, o que se multiplicou
nos
anos seguintes. Em fevereiro de 1929, a "Revista dos
Tribunaes",
publicação oficial dos trabalhos do Tribunal de
Justiça
de São Paulo, divulgou um aresto que bem revela a
nova
posição que se formava:
"CONCORRENCIA
DESLEAL - Venda de
pharmacia
- Reestabelecimento do vendedor
-
Perdas e damnos.
Faz
concorrencia desleal o pharmaceutico que,
vendendo
o seu estabelecimento em pequena
cidade
do interior, embora sem a obrigação ou o
compromisso
de se não estabelecer, adquire, não
longe,
novo estabelecimento, explorando o
mesmo
ramo de comercio." (RT 69/70). (Grifos
originais).
Os
julgados em destaque bem demonstram a
sedimentação
do entendimento exposto:
"CONCORRÊNCIA
DESLEAL. CLÁUSULA DE NÃO
CONCORRÊNCIA.
-
A cláusula de proibição, segundo a qual o
alienante
de estabelecimento comercial se obriga
a
não se estabelecer com o mesmo ramo de
comércio,
impede também que êle se associe a
terceiro
para exercer a antiga profissão no local.
-
A sociedade comercial, embora diversa, na sua
constituição
original da que adquiriu o
estabelecimento
comercial, pode demandar, de
quem
lhe vendeu o fundo de comércio, qualquer
direito
decorrente da cláusula proibitiva de
estabelecimento
com o mesmo ramo, porque a
garantia
é instituída em favor do negócio
comercial,
que não se alterou nos seus elementos
constitutivos,
a despeito de serem outros os
sócios
componentes da firma.
-
Não há transgressão ao princípio da liberdade
de
comércio
na cláusula proibitiva de concorrência,
restrita
quanto ao espaço e ao objeto, não
obstante
a falta de limitação no tempo, pois essa
falta
não traduz prazo indefinido.
-
É desnecessária a cláusula expressa da
não-concorrência,
pois tal obrigação decorre
do
próprio dever que ao vendedor incumbe de
não
perturbar o uso e gôzo do
estabelecimento
comercial pelo comprador."
(RT
151/280-1). (Grifei).
"CONCORRENCIA
DESLEAL - PEQUENA
INDÚSTRIA.
-
Em regra, quem vende estabelecimento
comercial
não está proibido de instalar ou adquirir
outro.
Mas, se se trata de pequena indústria, há
concorrência
desleal se depois de alienar o
estabelecimento,
instale outro a pequena
distância"
(RT 157/190).
"CONCORRÊNCIA
DESLEAL - VENDA DE
ESTABELECIMENTO
COMERCIAL - ABERTURA DE
NOVO
NEGÓCIO - COMPROMISSO EXPRESSO DO
VENDEDOR.
-
Ao vendedor não é lícito, sem autorização
do
comprador,
fundar estabelecimento em que lhe
fôsse
retirar tôda ou parte da clientela Essa
turbação
por parte do vendedor importaria privar
o
comprador no todo ou em parte da coisa
vendida.
-
Não há, em face do que determina o art.
214
do Cód. Comercial, necessidade de
estipulação
formal, expressa, pela qual o
vendedor
se obrigue a não se estabelecer."
(RT
167/ 237).
"CONCORRÊNCIA
DESLEAL - Oficina gráfica em
pequena
cidade - Sociedade formada por dois
sócios
- Desavença entre êstes - Cota de um
alienada
a terceiro com o objetivo de não ser
liquidada
a oficina - Nôvo estabelecimento
montado
pelo ex-sócio nas proximidades do
antigo
- Circunstâncias que demonstram malícia
no
negócio - Ação de indenização procedente
-
Apelação
provida.
-
Não é da liberdade de comerciar que nasce a
concorrência
desleal mas da má-fé alimentada
pelo
alienante. No caso de alienação de fundo de
comércio,
o contrato pode ser omisso quanto à
vedação
do alienante de regressar ao mesmo
ramo,
sob as mesmas condições." (RT 325/226).
"CONCORRÊNCIA
DESLEAL - Serviço funerário -
Direitos
comprados ao concessionário -
Instalação
da mesma indústria pelo vendedor com
licença
precária da Prefeitura - Ação de
indenização
contra esta e o vendedor -
Procedência
em face das provas - Recurso
provido
em parte - Voto vencido." (RT 342/203).
4.
CONCLUSÃO
De
acordo com o estudo realizado, pode-se afirmar que o
estabelecimento
comercial consiste num conjunto de bens
empregados
pelo empresário no exercício de sua atividade,
constituindo
uma universalidade de fato, uma vez que a
reunião
de tais bens ocorre pela vontade de seu proprietário,
para
a consecução de um objetivo .
Por
sua vez, o aviamento e a clientela não são elementos do
estabelecimento
comercial, nem podem ser tutelados de forma
independente
dele, sendo, na verdade, verdadeiros atributos
ou
qualidades do fundo de comércio e como tal protegidos.
Não
obstante a vitória da tese defendida por Rui Barbosa, no
Supremo
Tribunal Federal, acerca da possibilidade do
alienante
voltar a atuar no mesmo ramo, em face da ausência
de
cláusula proibitiva, hoje predomina a corrente que, já
naquela
época, era defendida por Carvalho de Mendonça, no
sentido
de que a vedação ao restabelecimento não precisa ser
expressa,
entendendo-se implícita no trespasse, em
decorrência
da garantia de que o vendedor precisar fazer boa
a
coisa vendida (art. 214, Código Comercial).
*retirado
de: http://www.teiajuridica.com/mz/restabel.htm